Acessibilidade / Reportar erro

Manifestações clínicas em pacientes com dores musculoesqueléticas pós-chikungunya

RESUMO

JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS:

As manifestações clínicas crônicas da infecção pelo vírus chikungunya estão associadas a altos índices de incapacidade e piora da qualidade de vida, representando um dos grandes desafios para a saúde pública mundial. O objetivo deste estudo foi investigar a apresentação clínica-psico-funcional de indivíduos infectados pelo vírus chikungunya com queixas de dores musculoesqueléticas crônicas.

MÉTODOS:

Participaram do estudo 22 indivíduos com diagnóstico de infecção pelo vírus chikungunya e queixa de dor musculoesquelética persistente (≥3 meses). A avaliação clínica-psico-funcional foi realizada por meio da intensidade e aspecto afetivo-emocional da dor, qualidade de vida, cinesiofobia, percepção global de recuperação da dor pós-infecção e funcionalidade emocional. Ao final foi avaliado o limiar de dor por pressão e a modulação condicionada da dor.

RESULTADOS:

A apresentação clínica da dor revelou longa persistência, 17,5±7,4 meses; predominância nos membros inferiores (45,5%); intensidade média (5,5±2,1); alterações afetiva-emocionais leves a moderadas; moderada cinesiofobia (46±6,5) e baixa percepção global de melhora (1,5±2,5). O Inventário de Depressão de Beck e a escala analógica visual para ansiedade apresentaram pouca alteração. A qualidade de vida apresentou prejuízos leves a moderados, e a modulação da dor revelou pouco aumento do limiar de dor por pressão (6,3%).

CONCLUSÃO:

A fase crônica da infecção pelo vírus chikungunya tem como apresentação clínica dor persistente de moderada intensidade, em nível sensorial e afetivo, além de moderada cinesiofobia, piora na qualidade de vida, percepção de pouca recuperação pós-infecção e diminuição da ativação inibitória descendente da dor.

Descritores:
Dor crônica; Evolução clínica; Sinais e sintomas; Vírus chikungunya

ABSTRACT

BACKGROUND AND OBJECTIVES:

Chronic clinical manifestations of the chikungunya virus infection are associated with high rates of disability and worsening of quality of life, representing one of the major challenges for global public health. The objective of this study was to investigate the clinical-psycho-functional presentation of the chikungunya virus-infected individuals with complaints of chronic musculoskeletal pain.

METHODS:

Twenty-two individuals with a diagnosis of chikungunya virus infection and a complaint of persistent musculoskeletal pain (≥3 months) participated in the study. The clinical-psycho-functional evaluation was performed through the intensity and affective-emotional aspect of pain, quality of life, kinesophobia, global perception of post-infection pain recovery and emotional functionality. In the end, the pressure pain threshold and the conditioned pain modulation were evaluated.

RESULTS:

The clinical presentation of pain revealed long persistence 17.5±7.4 months; predominant in the lower limbs (45.5%); mean intensity (5.5±2.1); mild to moderate affective-emotional changes; moderate kinesophobia (46±6.5) and low overall perception of improvement (1.5±2.5). The Beck Depression Inventory and the visual analog scale for anxiety showed little change. Quality of life presented mild to moderate impairment, and pain modulation showed a slight increase in the pressure pain threshold (6.3%).

CONCLUSION:

The chronic phase of the chikungunya virus infection is characterized by persistent moderate-intensity pain, both in sensory and affective levels, with moderate kinesophobia, worsening of quality of life, perception of poor post-infection recovery, and a decrease in the pain descending inhibitory pathways.

Keywords:
Chikungunya virus; Chronic pain; Clinical evolution; Signals and symptoms

INTRODUÇÃO

A chikungunya é uma doença arboviral pertencente à família Togaravidae transmitida pela picada do mosquito da espécie Aedes, como Ae. Aegypti e Ae. Albopictus11 Pialoux G, Gaüzère BA, Jauréguiberry S, Strobel M. Chikungunya, an epidemic arbovirosis. Lancet Infect Dis. 2007;7(5):319-27.. Desde o primeiro surto de chikungunya relatado na Tanzânia em meados de 195322 Ross RW. The Newala epidemic. III. The virus: isolation, pathogenic properties and relationship to the epidemic. J Hyg. 1956;54(2):177-91., houve um crescente aumento de infecção em países da Ásia33 Dash PK, Parida MM, Santhosh SR, Verma SK, Tripathi NK, Ambuj S, et al. East Central South African genotype as the causative agent in reemergence of Chikungunya outbreak in India. Vector Borne Zoonotic Dis. 2007;7(4):519-27.,44 Harapan H, Michie A, Mudatsir M, Nusa R, Yohan B, Wagner AL, et al. Chikungunya virus infection in Indonesia: a systematic review and evolutionary analysis. BMC Infect Dis. 2019;19(1):243. e África55 Gérardin P, Guernier V, Perrau J, Fianu A, Le Roux K, Grivard P, et al. Estimating Chikungunya prevalence in La Réunion Island outbreak by serosurveys: two methods for two critical times of the epidemic. BMC Infect Dis. 2008;8:99.,66 Simo FBN, Bigna JJ, Well EA, Kenmoe S, Sado FBY, Weaver SC, et al. Chikungunya virus infection prevalence in Africa: a contemporaneous systematic review and meta-analysis. Public Health. 2019;166:79-88.. No Brasil, os primeiros casos autóctones foram confirmados no Oiapoque (AP) em 201477 Ministério da Saúde. Boletim Epidemiológico. Secretaria de Vigilância em Saúde. 2014. 1-6p.. Desde então observou-se um aumento significativo de notificações confirmadas em todos os estados da federação, seja por critério laboratorial ou clínico.

As principais manifestações clínicas na fase aguda são parecidas às da dengue: febre alta, dor de cabeça, calafrios, náusea, vômito, fadiga, dor nas costas, mialgia e artralgia88 Castro AP, Lima RA, Nascimento JS. Chikungunya: vision of the pain clinician. Rev Dor. 2016;17(4):299-302.. A fase aguda ou febril dura até o 14° dia, porém em alguns casos há a persistência de sintomas como dores articulares por até três meses, caracterizada como fase subaguda. Quando as queixas de dores musculoesqueléticas persistem por um tempo superior a três meses, instala-se a fase crônica99 Brasil, M.d.S., Chikungunya: Manejo Clínico, S.d.V.e.S.S.d.A. Básica, Brasilia, Editor; 2017. 78p.. Os mecanismos envolvidos na cronicidade das dores musculoesqueléticas não estão totalmente compreendidos, porém, alguns fatores de risco têm sido apontados: predisposição genética; artropatia pré-existente ou outras comorbidades; lesão tecidual induzida diretamente pelo vírus; persistência de longa duração da infecção pela chikungunya em tecidos com inflamação e ativação de respostas autoimunes1010 McCarthy MK, Morrison TE. Chronic chikungunya virus musculoskeletal disease: what are the underlying mechanisms? Future Microbiol. 2016;11(3):331-4.. Além das queixas de dores musculoesqueléticas, a fase crônica está associada à incapacidade física e piora da qualidade de vida1111 Soumahoro MK, Gérardin P, Boëlle PY, Perrau J, Fianu A, Pouchot J, et al. Impact of Chikungunya virus infection on health status and quality of life: a retrospective cohort study. PLoS One. 2009;4(11):e7800.,1212 Couturier E, Guillemin F, Mura M, Léon L, Virion JM, Letort MJ, et al. Impaired quality of life after chikungunya virus infection: a 2-year follow-up study. Rheumatology. 2012;51(7):1315-22..

Embora os tratamentos atuais apresentem algum resultado para o alívio dos sintomas1313 Sales GM, Barbosa IC, Canejo Neta LM, Pelo PL, Leitão RA, Melo HMA. Treatment of chikungunya chronic arthritis: a systematic review. Rev Assoc Med Bras. 2018;64(1):63-70., manifestações clínicas de cronicidade ainda podem estar presentes anos após a infecção1414 Marimoutou C, Ferraro J, Javelle E, Deparis X, Simon F. Chikungunya infection: self-reported rheumatic morbidity and impaired quality of life persist 6 years later. Clin Microbiol Infect. 2015;21(7):688-93.. Nesse contexto, a avalição clínico-funcional da doença é de extrema importância para o planejamento de estratégias de prevenção e tratamento eficazes.

O objetivo deste estudo foi investigar a apresentação clínica-psico-funcional de pacientes infectados pelo vírus chikungunya com queixas de dores musculoesqueléticas crônicas.

MÉTODOS

Trata-se de um estudo transversal, descritivo e exploratório, realizado no período de janeiro de 2018 a junho de 2019. Indivíduos com diagnóstico médico de chikungunya e queixas de dor musculoesquelética, pós-infecção, foram recrutados por meio de redes sociais e divulgação impressa em serviços de saúde públicos e privados na cidade de Parnaíba-PI. Para o cálculo amostral foi considerado o número de casos prováveis notificados (n=825), de acordo com o Boletim da 52ª Semana Epidemiológica (2017) divulgado pelo Governo do Estado do Piauí, e a população da cidade de Parnaíba (n=137.485). Adotando-se um intervalo de confiança e valor de precisão de 95% e ±0,07, respectivamente, o tamanho mínimo da amostra foi estimado em 41 sujeitos.

Os critérios de inclusão foram: 1) diagnóstico médico confirmado de infecção pelo vírus chikungunya; 2) ambos os sexos; 3) queixa persistente de dor musculoesquelética (sintomas ≥ a 3 meses). Foram excluídos os participantes com queixas de dor relacionadas com doenças prévias, como por exemplo, doença reumática inflamatória, lesões mioarticulares, doenças neurológicas ou neuropatia diabética.

Após o preenchimento dos critérios de inclusão, os participantes responderam a um questionário não estruturado contendo dados pessoais e características antropométricas. Em seguida foi realizada a avaliação da intensidade e aspecto sensorial-afetivo da dor, qualidade de vida, cinesiofobia, percepção global de recuperação da dor pós-infecção e funcionalidade emocional. Ao final foi avaliado o limiar de dor por pressão e a modulação condicionada da dor. A intensidade da dor foi avaliada por meio da escala numérica de 11 pontos (zero-10), sendo zero considerada nenhuma dor e 10 a pior dor possível1515 de Souza FS, Marinho Cda S, Siqueira FB, Maher CG, Costa LO. Psychometric testing confirms that the Brazilian-Portuguese adaptations, the original versions of the Fear-Avoidance Beliefs Questionnaire, and the Tampa Scale of Kinesiophobia have similar measurement properties. Spine. 2008;33(9):1028-33.. O aspecto sensorial e afetivo da dor foi verificado por meio do questionário de McGill, versão curta, (SF-MPQ) contendo 15 descritores de sensação de dor (11 sensoriais e 4 afetivas), com cada descritor classificado numa escala de 4 pontos, sendo zero=nenhuma, 15=leve, 25=moderada e 35=intensa1616 Menezes Costa Lda C, Maher CG, McAuley JH, Hancock MJ, de Melo Oliveira W, Azevedo DC. et al., The Brazilian-Portuguese versions of the McGill Pain Questionnaire were reproducible, valid, and responsive in patients with musculoskeletal pain. J Clin Epidemiol. 2011;64(8):903-12..

A qualidade de vida foi avaliada por meio do questionário EQ-5D que contempla cinco domínios de saúde: mobilidade, cuidados pessoais, atividades habituais, dor/mal-estar, ansiedade/depressão. Esse questionário ainda contempla uma escala analógica visual (EAV), cujo valor de zero indica pior estado de saúde imaginável e 100 indica o melhor estado de saúde imaginável1717 EuroQol-Group. EQ-5D: a standardised instrument for use a measure of health outcome EQ-5D translations. 2010 [cited 2019 March, 26]; Available from: www.euroqol.org.
www.euroqol.org...
.

A cinesiofobia foi avaliada por meio da Escala Tampa de Cinesiofobia. Essa escala contém 17 itens que buscam mensurar o medo excessivo ou aversão ao movimento e atividade física. Cada item possui quatro opções de resposta: discordo totalmente (1 ponto); discordo parcialmente (2 pontos); concordo parcialmente (3 pontos) e concordo totalmente (4 pontos). A soma dos itens respondidos pode indicar menor (17 pontos) ou maior cinesiofobia (68 pontos)1515 de Souza FS, Marinho Cda S, Siqueira FB, Maher CG, Costa LO. Psychometric testing confirms that the Brazilian-Portuguese adaptations, the original versions of the Fear-Avoidance Beliefs Questionnaire, and the Tampa Scale of Kinesiophobia have similar measurement properties. Spine. 2008;33(9):1028-33.. A percepção global de recuperação pós-infecção foi avaliada pela escala numérica de percepção global (EPG). Essa escala contém 11 pontos, variando de -5 a +5, sendo - 5 a percepção de estar extremamente pior; zero: sem modificação; e +5 a percepção de estar completamente recuperado1515 de Souza FS, Marinho Cda S, Siqueira FB, Maher CG, Costa LO. Psychometric testing confirms that the Brazilian-Portuguese adaptations, the original versions of the Fear-Avoidance Beliefs Questionnaire, and the Tampa Scale of Kinesiophobia have similar measurement properties. Spine. 2008;33(9):1028-33..

O limiar de dor foi avaliado por meio do algômetro de pressão manual (FORCE TEN FDX, USA). A ponteira do algômetro, com cerca 1cm2 de espessura, foi aplicada perpendicularmente à superfície da pele, no braço dominante, sobre o tendão do músculo extensor curto do carpo a 2cm distal ao epicôndilo lateral. Foram realizadas três mensurações, e em cada teste os participantes foram instruídos a responder “pare” à primeira sensação de dor causada pelo estímulo mecânico do algômetro1818 Shiro Y, Ikemoto T, Terasawa Y, Arai YP, Hayashi K, Ushida T, et al. Physical activity may be associated with conditioned pain modulation in women but not men among healthy individuals. Pain Res Manag. 2017;2017:9059140..

A modulação condicionada da dor (MCD) foi avaliada por meio do teste de resfriamento tecidual1919 Knudsen L, Drummond PD. Cold-induced limb pain decreases sensitivity to pressure-pain sensations in the ipsilateral forehead. Eur J Pain. 2009;13(10):1023-9.. Os participantes permaneceram sentados com o antebraço dominante sobre um apoio, e o antebraço contralateral imerso em um balde com gelo e água a 10ºC de temperatura (estímulo condicionante). O limiar de dor por pressão (LDP) (estímulo teste) foi mensurado durante quatro intervalos: (1) antes da imersão, (2) após 30s de imersão, (3) após 1min 30s de imersão e (4) 1min após a retirada da mão imersa no sistema de resfriamento. A MCD foi estimada pela diferença no LDP entre a condição basal (pré-imersão) e as condições pós-imersão1818 Shiro Y, Ikemoto T, Terasawa Y, Arai YP, Hayashi K, Ushida T, et al. Physical activity may be associated with conditioned pain modulation in women but not men among healthy individuals. Pain Res Manag. 2017;2017:9059140..

Os sintomas de ansiedade e depressão foram avaliados pela versão brasileira do Inventário de Depressão de Beck (IDB) e a EAV para ansiedade, respectivamente. O IDB é uma medida de autoavaliação da depressão que utiliza um questionário com 21 itens, cuja intensidade varia de zero a 3 (maiores pontuações indicam mais sintomas depressivos)2020 Gorenstein C, Andrade L, Vieira Filho AH, Tung TC, Artes R. Psychometric properties of the Portuguese version of the Beck Depression Inventory on Brazilian college students. J Clin Psychol. 1999;55(5):553-62.. A EAV para ansiedade geral é avaliada por meio de uma linha horizontal de 100mm de comprimento. A extrema ponta esquerda significa sem ansiedade e a extrema ponta direita significa pior ansiedade possível2121 Williams VS, Morlock RJ, Feltner D. Psychometric evaluation of a visual analog scale for the assessment of anxiety. Health Qual Life Outcomes. 2010;8:57..

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal do Piauí (UFPI) sob nº 2.883.331/2018. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Análise estatística

Os dados foram tabulados no software Microsoft Excel ® versão 2010 para Windows. Realizaram-se análises descritivas das variáveis investigadas por meio de médias, frequências (absoluta e relativa) e desvios padrões. Todos os dados foram analisados através do software IBM SPSS v.20 para o Windows.

RESULTADOS

Quarenta e nove sujeitos foram recrutados para avaliação clínica. No entanto, 27 indivíduos foram excluídos pois não apresentavam mais queixas de dor (n=8); sem diagnóstico médico (n=9) e 10 indivíduos se recusaram a participar do estudo. Vinte e dois sujeitos (86,4% sexo feminino) com diagnóstico médico de infecção pelo vírus chikungunya participaram do estudo. A média (±DP) de idade, massa, estatura e índice de massa corporal (IMC) foram de 46,4anos (12,0), 63,3kg (17,5), 1,6m (0,1) e 26,1kg/m2 (4,4), respectivamente. O nível de escolaridade predominante foi ensino médio (31,8%) e fundamental (31,8%), seguido de ensino superior (27,3%) e sem escolaridade (9%). A maioria dos participantes não praticava atividade física (59,1%) e todos negaram tabagismo. O tempo médio de dor foi de 17,5 meses (7,4) e os locais de maiores queixas foram os membros inferiores (45,5%), membros inferiores e membros superiores (45,5%) e membros superiores (9,1%). As características clínicas, qualidade de vida e modulação condicionada da dor estão descritas nas tabelas 1, 2 e 3, respectivamente.

Tabela 1
Características clínicas dos participantes
Tabela 2
Qualidade de vida dos participantes
Tabela 3
Modulação condicionada da dor

DISCUSSÃO

A análise dos dados demonstrou que a infecção pelo vírus chikungunya leva a dores persistentes, com características temporais de cronicidade e magnitudes de média a elevada intensidade. O aspecto sensorial e afetivo da dor variou entre leve a moderado. Embora os sintomas de depressão e ansiedade não tenham sido avaliados previamente, e nem contemplaram critérios de inclusão/exclusão, em geral os participantes não apresentaram alterações clinicamente relevantes nos sintomas de depressão [(10,9±5,9) escore de 0-63] e ansiedade [(3,1±2,4) escore de 0-100]. Por outro lado, os domínios depressão e ansiedade, avaliados por meio do questionário de qualidade de vida EQ-5D, demonstraram que essas morbidades psiquiátricas estavam presentes em magnitudes de leve a moderada. Há poucos relatos na literatura sobre morbidades psiquiátricas associadas à chikungunya, o que torna difícil a comparação com os presentes resultados. Um estudo indiano preliminar verificou a presença de morbidades psiquiátricas em 20 sujeitos infectados, principalmente nas formas de episódios de depressão (n=5) e desordens de ansiedade (n=3)2222 Bhatia MS, Gautam P, Jhanjee A. Psychiatric morbidity in patients with chikungunya fever: first report from India. J Clin Diagn Res. 2015;9(10):VC01-VC03..

Apesar das divergências na avaliação dos sintomas de depressão e ansiedade observou-se moderado nível de cinesiofobia, indicando que as queixas de dor persistente podem induzir a uma maior percepção de medo excessivo ou aversão ao movimento e atividade física. No entanto, por se tratar de uma única avaliação, é possível que essas alterações já estivessem presentes antes da avaliação clínica. No contexto da reabilitação física, a presença de cinesiofobia pode indicar um mal prognóstico ou maior dificuldade de aderência ao tratamento por meio de exercícios. Nesses casos é possível que estratégias de reconceituação de crenças e mudanças de atitudes, como a terapia cognitivo-comportamental2323 Hofmann SG, Asnaani A, Vonk IJ, Sawyer AT, Fang A. The efficacy of cognitive behavioral therapy: a review of meta-analyses. Cognit Ther Res. 2012;36(5):427-40., possam diminuir a cinesiofobia e aumentar as chances dos pacientes se beneficiarem do efeito hipoalgésico dos exercícios terapêuticos2424 Naugle KM, Fillingim RB. Riley JL 3rd. A meta-analytic review of the hypoalgesic effects of exercise. J Pain. 2012;13(12):1139-50.,2525 Polaski AM, Phelps AL, Kostek MC, Szucs KA, Kolber BJ. Exercise-induced hypoalgesia: a meta-analysis of exercise dosing for the treatment of chronic pain. PLoS One. 2019;14(1):e0210418..

A avaliação da qualidade de vida demonstrou que a maioria dos participantes apresentavam prejuízos leves (nível 2, escore de 1 a 5) a moderados (nível 3, escore de 1 a 5). Em relação aos domínios de saúde, dor e/ou mal-estar e mobilidade foram considerados um problema moderado em 55 e 45% dos participantes, respectivamente. Houve também prejuízos nos domínios cuidados pessoais (moderado) e atividades habituais (leve). A perda da qualidade de vida pós-infecção pode estar relacionada à manutenção ou exacerbação das queixas álgicas1111 Soumahoro MK, Gérardin P, Boëlle PY, Perrau J, Fianu A, Pouchot J, et al. Impact of Chikungunya virus infection on health status and quality of life: a retrospective cohort study. PLoS One. 2009;4(11):e7800., onde o fator tempo de infecção tem relação direta com o aumento dos sintomas de dor e perda da capacidade funcional2626 de Souza CG, da Costa JF, de Sousa Dantas D, de Abreu Freitas RP, Lopes JM, et al. Evaluation of pain, functional capacity and kinesiophobia in women in the chronic stage of chikungunya virus infection: a cross-sectional study in northeastern Brazil. Acta Trop. 2018;199:104853. [Epub ahead of print].. Quando comparados ao período inicial dos sintomas, os participantes relataram percepção global de pouca recuperação pós-infecção [(1,5±2,5) escore de -5 a +5], demonstrando que a chikungunya pode impactar negativamente na saúde dos indivíduos a longo prazo1111 Soumahoro MK, Gérardin P, Boëlle PY, Perrau J, Fianu A, Pouchot J, et al. Impact of Chikungunya virus infection on health status and quality of life: a retrospective cohort study. PLoS One. 2009;4(11):e7800..

A avaliação da MCD, revelou pouco aumento (6,3%) do limiar de dor por pressão, durante o estímulo condicionante (água fria), em relação à condição basal. Esse resultado sugere pouca ativação da via inibitória descendente da dor, indicando que a fase crônica da infecção pelo vírus chikungunya interfere negativamente na capacidade endógena de analgesia. A avaliação da disfunção dos mecanismos modulatórios endógenos de dor, presente em diversas condições de dor crônica2727 Lewis GN, Rice DA, McNair PJ. Conditioned pain modulation in populations with chronic pain: a systematic review and meta-analysis. J Pain. 2012;13(10):936-44., pode fornecer importantes informações para guiar estratégias mais eficazes de prevenção e tratamento. Por exemplo, falha na MCD durante a fase pré-operatória está associada a maior probabilidade de dores crônicas na fase pós-operatória2828 Yarnitsky D, Crispel Y, Eisenberg E, Granovsky Y, Ben-Nun A, Sprecher E, et al. Prediction of chronic post-operative pain: pre-operative DNIC testing identifies patients at risk. Pain. 2008;138(1):22-8.,2929 Wilder-Smith OH, Schreyer T, Scheffer GJ, Arendt-Nielsen L. Patients with chronic pain after abdominal surgery show less preoperative endogenous pain inhibition and more postoperative hyperalgesia: a pilot study. J Pain Palliat Care Pharmacother. 2010;24(2):119-28.. Em relação ao tratamento, estratégias terapêuticas que ativem mecanismos inibitórios de dor similares à MCD, como exercícios3030 Vaegter HB, Handberg G, Graven-Nielsen T. Similarities between exercise-induced hypoalgesia and conditioned pain modulation in humans. Pain. 2014;155(1):158-67. ou técnicas não invasivas de neuromodulação3131 O'Connell NE, Marston L, Spencer S, DeSouza LH, Wand BM. Non-invasive brain stimulation techniques for chronic pain. Cochrane Database Syst Rev. 2018;3:CD008208., podem ser um dos caminhos para o alívio da dor crônica.

A principal limitação deste estudo se refere ao tamanho da amostra. Embora tenha-se utilizado uma ampla estratégia de recrutamento, o estado do Piauí vem apresentando significativas reduções de novos casos. De acordo com o Boletim da 3ª Semana Epidemiológica - 2019 houve redução de 95,6% da incidência em relação ao mesmo período de 2018. Outras limitações também podem ter influenciado os resultados encontrados: (1) Variáveis de confusão, como sintomas prévios de depressão, ansiedade e cinesiofobia; e (2) Método utilizado para a avaliação da MCD.

CONCLUSÃO

A fase crônica da infecção pelo vírus chikungunya tem como apresentação clínica dor persistente de moderada intensidade, em nível sensorial e afetivo, além de moderada cinesiofobia, piora na qualidade de vida, percepção de pouca recuperação pós-infecção e diminuição da ativação inibitória descendente da dor.

  • Fontes de fomento: não há.

REFERENCES

  • 1
    Pialoux G, Gaüzère BA, Jauréguiberry S, Strobel M. Chikungunya, an epidemic arbovirosis. Lancet Infect Dis. 2007;7(5):319-27.
  • 2
    Ross RW. The Newala epidemic. III. The virus: isolation, pathogenic properties and relationship to the epidemic. J Hyg. 1956;54(2):177-91.
  • 3
    Dash PK, Parida MM, Santhosh SR, Verma SK, Tripathi NK, Ambuj S, et al. East Central South African genotype as the causative agent in reemergence of Chikungunya outbreak in India. Vector Borne Zoonotic Dis. 2007;7(4):519-27.
  • 4
    Harapan H, Michie A, Mudatsir M, Nusa R, Yohan B, Wagner AL, et al. Chikungunya virus infection in Indonesia: a systematic review and evolutionary analysis. BMC Infect Dis. 2019;19(1):243.
  • 5
    Gérardin P, Guernier V, Perrau J, Fianu A, Le Roux K, Grivard P, et al. Estimating Chikungunya prevalence in La Réunion Island outbreak by serosurveys: two methods for two critical times of the epidemic. BMC Infect Dis. 2008;8:99.
  • 6
    Simo FBN, Bigna JJ, Well EA, Kenmoe S, Sado FBY, Weaver SC, et al. Chikungunya virus infection prevalence in Africa: a contemporaneous systematic review and meta-analysis. Public Health. 2019;166:79-88.
  • 7
    Ministério da Saúde. Boletim Epidemiológico. Secretaria de Vigilância em Saúde. 2014. 1-6p.
  • 8
    Castro AP, Lima RA, Nascimento JS. Chikungunya: vision of the pain clinician. Rev Dor. 2016;17(4):299-302.
  • 9
    Brasil, M.d.S., Chikungunya: Manejo Clínico, S.d.V.e.S.S.d.A. Básica, Brasilia, Editor; 2017. 78p.
  • 10
    McCarthy MK, Morrison TE. Chronic chikungunya virus musculoskeletal disease: what are the underlying mechanisms? Future Microbiol. 2016;11(3):331-4.
  • 11
    Soumahoro MK, Gérardin P, Boëlle PY, Perrau J, Fianu A, Pouchot J, et al. Impact of Chikungunya virus infection on health status and quality of life: a retrospective cohort study. PLoS One. 2009;4(11):e7800.
  • 12
    Couturier E, Guillemin F, Mura M, Léon L, Virion JM, Letort MJ, et al. Impaired quality of life after chikungunya virus infection: a 2-year follow-up study. Rheumatology. 2012;51(7):1315-22.
  • 13
    Sales GM, Barbosa IC, Canejo Neta LM, Pelo PL, Leitão RA, Melo HMA. Treatment of chikungunya chronic arthritis: a systematic review. Rev Assoc Med Bras. 2018;64(1):63-70.
  • 14
    Marimoutou C, Ferraro J, Javelle E, Deparis X, Simon F. Chikungunya infection: self-reported rheumatic morbidity and impaired quality of life persist 6 years later. Clin Microbiol Infect. 2015;21(7):688-93.
  • 15
    de Souza FS, Marinho Cda S, Siqueira FB, Maher CG, Costa LO. Psychometric testing confirms that the Brazilian-Portuguese adaptations, the original versions of the Fear-Avoidance Beliefs Questionnaire, and the Tampa Scale of Kinesiophobia have similar measurement properties. Spine. 2008;33(9):1028-33.
  • 16
    Menezes Costa Lda C, Maher CG, McAuley JH, Hancock MJ, de Melo Oliveira W, Azevedo DC. et al., The Brazilian-Portuguese versions of the McGill Pain Questionnaire were reproducible, valid, and responsive in patients with musculoskeletal pain. J Clin Epidemiol. 2011;64(8):903-12.
  • 17
    EuroQol-Group. EQ-5D: a standardised instrument for use a measure of health outcome EQ-5D translations. 2010 [cited 2019 March, 26]; Available from: www.euroqol.org
    » www.euroqol.org
  • 18
    Shiro Y, Ikemoto T, Terasawa Y, Arai YP, Hayashi K, Ushida T, et al. Physical activity may be associated with conditioned pain modulation in women but not men among healthy individuals. Pain Res Manag. 2017;2017:9059140.
  • 19
    Knudsen L, Drummond PD. Cold-induced limb pain decreases sensitivity to pressure-pain sensations in the ipsilateral forehead. Eur J Pain. 2009;13(10):1023-9.
  • 20
    Gorenstein C, Andrade L, Vieira Filho AH, Tung TC, Artes R. Psychometric properties of the Portuguese version of the Beck Depression Inventory on Brazilian college students. J Clin Psychol. 1999;55(5):553-62.
  • 21
    Williams VS, Morlock RJ, Feltner D. Psychometric evaluation of a visual analog scale for the assessment of anxiety. Health Qual Life Outcomes. 2010;8:57.
  • 22
    Bhatia MS, Gautam P, Jhanjee A. Psychiatric morbidity in patients with chikungunya fever: first report from India. J Clin Diagn Res. 2015;9(10):VC01-VC03.
  • 23
    Hofmann SG, Asnaani A, Vonk IJ, Sawyer AT, Fang A. The efficacy of cognitive behavioral therapy: a review of meta-analyses. Cognit Ther Res. 2012;36(5):427-40.
  • 24
    Naugle KM, Fillingim RB. Riley JL 3rd. A meta-analytic review of the hypoalgesic effects of exercise. J Pain. 2012;13(12):1139-50.
  • 25
    Polaski AM, Phelps AL, Kostek MC, Szucs KA, Kolber BJ. Exercise-induced hypoalgesia: a meta-analysis of exercise dosing for the treatment of chronic pain. PLoS One. 2019;14(1):e0210418.
  • 26
    de Souza CG, da Costa JF, de Sousa Dantas D, de Abreu Freitas RP, Lopes JM, et al. Evaluation of pain, functional capacity and kinesiophobia in women in the chronic stage of chikungunya virus infection: a cross-sectional study in northeastern Brazil. Acta Trop. 2018;199:104853. [Epub ahead of print].
  • 27
    Lewis GN, Rice DA, McNair PJ. Conditioned pain modulation in populations with chronic pain: a systematic review and meta-analysis. J Pain. 2012;13(10):936-44.
  • 28
    Yarnitsky D, Crispel Y, Eisenberg E, Granovsky Y, Ben-Nun A, Sprecher E, et al. Prediction of chronic post-operative pain: pre-operative DNIC testing identifies patients at risk. Pain. 2008;138(1):22-8.
  • 29
    Wilder-Smith OH, Schreyer T, Scheffer GJ, Arendt-Nielsen L. Patients with chronic pain after abdominal surgery show less preoperative endogenous pain inhibition and more postoperative hyperalgesia: a pilot study. J Pain Palliat Care Pharmacother. 2010;24(2):119-28.
  • 30
    Vaegter HB, Handberg G, Graven-Nielsen T. Similarities between exercise-induced hypoalgesia and conditioned pain modulation in humans. Pain. 2014;155(1):158-67.
  • 31
    O'Connell NE, Marston L, Spencer S, DeSouza LH, Wand BM. Non-invasive brain stimulation techniques for chronic pain. Cochrane Database Syst Rev. 2018;3:CD008208.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    03 Jun 2019
  • Aceito
    23 Set 2019
Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor Av. Conselheiro Rodrigues Alves, 937 Cj2 - Vila Mariana, CEP: 04014-012, São Paulo, SP - Brasil, Telefones: , (55) 11 5904-2881/3959 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: dor@dor.org.br