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Infusão intravascular de cetamina para o tratamento de dor crônica e depressão. Relato de caso

RESUMO

JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS:

A dor crônica e a depressão são duas comorbidades que se correlacionam em nível molecular no sistema nervoso central e promovem sofrimento ao paciente, sendo de difícil manejo. Nos últimos anos, diversos estudos demonstraram efeitos analgésicos e antidepressivos significativos a partir da infusão intravascular de cetamina, sendo uma opção alternativa para pacientes refratários ao tratamento convencional. Assim, o objetivo do estudo foi relatar o caso de uma paciente com dor crônica e depressão refratária submetida a infusões seriadas de doses únicas de cetamina.

RELATO DO CASO:

Paciente do sexo feminino, 33 anos, diagnosticada com cistite intersticial há 13 anos com refratariedade no manejo da dor e da depressão, submetida a infusões seriadas de cetamina intravascular. Foram realizadas 3 infusões seriadas que proporcionaram uma melhora significativa na dor e no humor. Entretanto, a paciente não tolerou os efeitos adversos, particularmente, de sensação de morte iminente e ataque de pânico, e abandonou o tratamento.

CONCLUSÃO:

A cetamina é uma opção de tratamento promissora para dor crônica e depressão e pode promover alívio significativo, embora transitório, da dor e humor utilizando dose subanestésica. No entanto, seus efeitos adversos podem ser uma limitação para o sucesso terapêutico. Estudos clínicos padronizados são necessários para compreender melhor a relação entre dor crônica e depressão e para estabelecer a melhor abordagem terapêutica.

Descritores:
Cetamina; Cistite instersticial; Depressão; Dor crônica

ABSTRACT

BACKGROUND AND OBJECTIVES:

Chronic pain and depression are two comorbidities that correlate at the molecular level in the central nervous system and cause sufering to the patient, being dificult to be managed. In recent years, several studies have shown significant analgesic and antidepressant efects from intravascular infusion of ketamine, being a promising alternative option for refractory patients. Tus, the aim of the study was to report the case of a patient with refractory chronic pain and depression submitted to serial ketamine single dose infusions.

CASE REPORT:

Female patient, 33 years old, diagnosed with interstitial cystitis 13 years ago with refractory chronic pain and depression, submitted to serial infusions of intravascular ketamine. Tree serial infusions were performed, providing a significant improvement in pain and mood. However, the patient could not tolerate the adverse efects, particularly, the transient sensation of impending death and panic attack, and abandoned the treatment.

CONCLUSION:

Ketamine is a safe and promising treatment option for chronic pain and depression and can promote significant, albeit transient, pain and mood relief using subanesthetic dosage. However, its adverse efects can be an important limitation for therapeutic success. Standardized clinical studies are needed to better understand the relationship between chronic pain and depression and to establish the best therapeutic approach.

Keywords:
Chronic pain; Depression; Interstitial cystitis; Ketamine

DESTAQUES

A cetamina é uma opção de tratamento segura e promissora para dor crônica e depressão e pode promover alívio significativo, ainda que transitório, da dor e do humor com a dosagem subanestésica.

O presente estudo observou que uma única infusão em baixas doses de cetamina pode aliviar rapidamente sintomas depressivos, pensamentos e ações suicidas em pacientes com depressão refratária.

Vale ressaltar que a infusão seriada de cetamina por determinado período é uma alternativa mais segura e eficaz para o tratamento da dor e da depressão quando comparada a uma única infusão intravenosa

INTRODUÇÃO

A dor é um importante problema de saúde pública. O estudo Global Burden of Disease 2016 da Organização Mundial da Saúde (OMS) revelou que a dor (distúrbios lombares, cervicais, musculoesqueléticos e enxaquecas) está entre as 10 principais causas de incapacidade no Brasil. No mesmo estudo da OMS, os distúrbios depressivos são a quinta maior causa de anos vividos com incapacidades11 GBD 2016 Brazil Collaborators. Burden of disease in Brazil, 1990-2016: a systematic subnational analysis for the Global Burden of Disease Study 2016. Lancet. 2018;392(10149):760-75.. A depressão, assim como a dor crônica, tem um caráter multidimensional e requer uma abordagem especializada. A depressão e a dor estão frequentemente interligadas e podem agravar as condições físicas e psicológicas, levando a piores resultados de tratamento e maior duração dos sintomas. Os mecanismos e vias comuns desses efeitos ainda não estão muito esclarecidos, mas vários estudos demonstraram que a depressão intensifica os sintomas ou reduz a capacidade de tolerância à dor22 IsHak WW, Wen RY, Naghdechi L, Vanle B, Dang J, Knosp M, Dascal J, Marcia L, Gogar Y, Eskander L, Yadegar J, Hanna S, Sadek A, Aguilar-Hernandez L, Danovitch I, Louy C. Pain and depression: a systematic review. Harv Rev Psychiatry. 2018;26(6):352-63..

O tratamento convencional da depressão inclui farmacoterapia e psicoterapia, além de várias outras abordagens destinadas a pacientes resistentes ao tratamento. Nos anos recentes, tem havido grande interesse no tratamento de transtornos de humor devido a sua morbidez e natureza refratária. Portanto, diferentes estudos têm encontrado efeitos promissores da infusão de cetamina para o tratamento tanto da dor crônica quanto da depressão. Desta forma, a American Society of Regional Anesthesia and Pain Medicine (Sociedade Americana de Anestesia Regional e Medicina da Dor) e a American Academy of Pain Medicine (Academia Americana de Medicina da Dor) desenvolveram uma diretriz consensual sobre o uso da cetamina para o tratamento da dor crônica33 Cohen SP, Bhatia A, Buvanendran A, Schwenk ES, Wasan AD, Hurley RW, Viscusi ER, Narouze S, Davis FN, Ritchie EC, Lubenow TR, Hooten WM. Consensus Guidelines on the Use of Intravenous Ketamine Infusions for Chronic Pain From the American Society of Regional Anesthesia and Pain Medicine, the American Academy of Pain Medicine, and the American Society of Anesthesiologists. Reg Anesth Pain Med. 2018;43(5):521-46.. Da mesma forma, a American Psychiatry Association (Associação Americana de Psiquiatria) publicou em 2017 uma declaração de consenso sobre o uso da cetamina para o tratamento de transtornos de humor refratários44 Sanacora G, Frye MA, McDonald W, Mathew SJ, Turner MS, Schatzberg AF, Summergrad P, Nemerof CB. A consensus statement on the use of ketamine in the treatment of mood disorders. JAMA Psychiatry. 2017;74(4):399-405..

A cetamina é uma substância derivada da fenciclidina disponível como uma mistura racêmica desenvolvida nos anos 60 e tem propriedades anestésicas, analgésicas e antipsicóticas. É uma droga segura devido a seu potencial anestésico e analgésico, efeito rápido e sedação hemodinamicamente estável por meio de estímulo simpático sem afetar a função respiratória. Entre suas limitações, a administração oral envolve baixa biodisponibilidade e altos efeitos colaterais devido à metabolização hepática de primeira passagem, o que torna a administração intravenosa (IV) a melhor escolha55 Andrade C. Oral ketamine for depression, 1: Pharmacologic considerations and clinical evidence. J Clin Psychiatry. 2019;80(2):19fl2820.. As principais contraindicações para seu uso incluem doenças cardiovasculares mal controladas, disfunção hepática, psicoses, delírios e abuso ativo de substâncias66 Bell RF, Kalso EA. Ketamine for pain management. Pain Rep. 2019;3(5):E674., 77 Yang Y, Maher DP, Cohen SP. Emerging concepts on the use of ketamine for chronic pain. Expert Rev Clin Pharmacol. 2020;13(2):135-46..

Dessa maneira, o presente estudo procurou entender melhor a relação entre estas condições clínicas complexas e os efeitos da infusão intravenosa de cetamina.

RELATO DE CASO

As diretrizes CARE (Case Report) para relatórios de casos foram utilizadas com o intuito de reduzir o risco de enviesamento e aumentar a transparência88 Riley DS, Barber MS, Kienle GS, Aronson JK, von Schoen-Angerer T, Tugwell P, Kiene H, Helfand M, Altman DG, Sox H, Werthmann PG, Moher D, Rison RA, Shamseer L, Koch CA, Sun GH, Hanaway P, Sudak NL, Kaszkin-Bettag M, Carpenter JE, Gagnier JJ. CARE guidelines for case reports: explanation and elaboration document. J Clin Epidemiol. 2017;89:218-235..

A paciente, uma mulher de 33 anos, com cistite intersticial (CI), tem um histórico progressivo de dor crônica e depressão resistente. Ela foi diagnosticada com CI aos 20 anos de idade, quando começou a receber tratamento urológico especializado. Desde então, ela passou por vários tratamentos urológicos sem nenhuma melhora significativa, e atualmente necessita de um acompanhamento regular.

Simultaneamente ao diagnóstico de CI, a paciente começou o tratamento da dor com amitriptilina, seguido ao longo dos anos pelo uso gradual de doses iniciais a ótimas de combinação codeína-paracetamol, tramadol e, eventualmente, oxicodona, todos sem melhora persistente. Com o tempo, houve um agravamento progressivo da dor e a morfina por via subaracnoidea via bomba de infusão implantada foi sugerida. A paciente relatou um alívio relativo da dor após o procedimento, entretanto, houve a necessidade de aumentar cada vez mais a dose de medicamentos à medida que a doença progredia. Diante de uma condição complexa de tratamento resistente tanto à CI quanto à depressão, a paciente procurou nossos cuidados para o tratamento da dor crônica e da depressão. O exame neurológico era normal e não mostrava sinais de disfunção cognitiva, motora ou sensível. Ela reportou agravamento progressivo do humor, ansiedade, insônia, ganho de peso significativo, fadiga, adinamia e dor pélvica persistente. Além disso, ela relatou ideação suicida e histórico de tentativa de suicídio anterior. Ela estava em uso de quetiapina (600 mg/dia), escitalopram (20 mg/dia), valproato de sódio (1,5 g), clonazepam (75 mg), morfina subaracnoidea (2,1 g/dia) e morfina oral (720 mg/dia).

Após avaliação, foi proposto à paciente sessões semanais de infusão intravenosa (IV) de cetamina (dose) por oito semanas para o tratamento de dor crônica e depressão, considerando a resistência ao tratamento farmacológico convencional. As infusões foram realizadas em ambiente hospitalar seguro e consistiram de uma única dose de cetamina (1 mg) diluída em soro fisiológico (100 mL de 0,9%) sem uso de outros fármacos imediatamente antes e depois da infusão.

A pontuação na escala de classificação de depressão Hamilton (HAM-D) antes da primeira infusão era 40 e a intensidade da dor era 9 na Escala Analógica Visual (EAV). Não houve efeitos adversos documentados durante a primeira sessão de infusão de cetamina e a paciente relatou melhora significativa no humor e percepção de dor, assim como ideação suicida imediatamente após o procedimento. A partir dessa melhora, foi possível reduzir a dose de morfina oral. Por outro lado, durante a segunda sessão, ela apresentou sintomas transitórios de náusea, sintomas dissociativos, dispneia e ataque de pânico, descrevendo a experiência como uma das piores sensações de sua vida.

A melhora no humor e na percepção da dor persistiu após a segunda infusão e foi possível continuar a diminuição da dose de morfina oral até 600 mg/dia e diminuir ainda mais a dosagem de morfina subaracnoidea (0,8 g/dia). Durante a terceira sessão, os mesmos efeitos adversos relatados anteriormente foram observados, e a melhora no humor e na percepção da dor persistiu. O efeito antidepressivo e analgésico da cetamina foi documentado por uma diminuição na HAM-D e VAS para 14 e 4, respectivamente, durante o tratamento. Entretanto, a paciente abandonou o tratamento após a terceira sessão devido à significativa intolerância aos efeitos adversos, particularmente, devido à sensação de morte iminente e ataque de pânico durante a infusão, apesar dos efeitos analgésicos e antidepressivos benéficos documentados. Ela voltou para um acompanhamento duas semanas após a terceira sessão de cetamina relatando dor progressiva e deterioração do humor com a necessidade de reajustar a dosagem de morfina para a linha de base de antes da infusão de cetamina e permanece em acompanhamento regular até o momento do estudo. A paciente assinou um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), e o estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa em Seres Humanos da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (CAAE: 33852820.4.0000.0037), o que está de acordo com a Declaração de Helsinki.

DISCUSSÃO

A CI é uma doença crônica incomum caracterizada principalmente por dor pélvica e sintomas urinários com ou sem uma causa identificada e tem alto impacto na qualidade de vida dos pacientes99 Marcu I, Campian EC, Tu FF. Interstitial cystitis/bladder pain syndrome. Semin Reprod Med. 2018;36(2):123-35.. A fisiopatologia não é completamente elucidada e envolve a desregulação sensorial da consciência vesical, associada à ruptura na camada celular apical do urotélio. Sua apresentação e severidade podem variar, no entanto, devido à sua natureza crônica. Os pacientes normalmente progridem em direção ao agravamento dos sintomas e o prognóstico pode ser incapacitante. Junto com o tratamento urológico especializado, a abordagem da CI envolve o tratamento precoce da dor para melhorar a qualidade de vida1010 McLennan MT. Interstitial cystitis: epidemiology, pathophysiology, and clinical presentation. Obstet Gynecol Clin North Am. 2014;41(3):385-95..

De acordo com o caso exposto, o tratamento farmacológico da dor deve ser individualizado e envolve antidepressivos, antiepilépticos, analgésicos e opioides. No entanto, apenas cerca de 30-40% dos pacientes com dor crônica, em geral, têm uma melhora com o tratamento farmacológico1111 Niesters M, Martini C, Dahan A. Ketamine for chronic pain: risks and benefits. Br J Clin Pharmacol. 2014;77(2):357-67., 1212 Dworkin RH, O’Connor AB, Audette J, Baron R, Gourlay GK, Haanpää ML, Kent JL, Krane EJ, Lebel AA, Levi RM, Machey SC, Mayer J, et al. Recommendations for the pharmacological management of neuropathic pain: an overview and literature update. Mayo Clin Proc. 2010;85(3Suppl):S3-14., 1313 Finnerup NB, Otto M, McQuay HJ, Jensen TS, Sindrup SH. Algorithm for neuropathic pain treatment: An evidence based proposal. Pain. 2005;118(3):289-305.. Em paralelo, a dor crônica e a depressão estão geralmente interligadas e podem intensificar os sintomas e diminuir o limiar da dor22 IsHak WW, Wen RY, Naghdechi L, Vanle B, Dang J, Knosp M, Dascal J, Marcia L, Gogar Y, Eskander L, Yadegar J, Hanna S, Sadek A, Aguilar-Hernandez L, Danovitch I, Louy C. Pain and depression: a systematic review. Harv Rev Psychiatry. 2018;26(6):352-63.. Considerando esta comorbidade complexa, a abordagem do tratamento pode ser longa e difícil e, portanto, torna os efeitos analgésicos e antidepressivos da infusão IV de cetamina descritos em vários estudos uma descoberta promissora44 Sanacora G, Frye MA, McDonald W, Mathew SJ, Turner MS, Schatzberg AF, Summergrad P, Nemerof CB. A consensus statement on the use of ketamine in the treatment of mood disorders. JAMA Psychiatry. 2017;74(4):399-405., 1414 Peltoniemi MA, Hagelberg NM, Olkkola K T, Saari TI. Ketamine: a review of clinical pharmacokinetics and pharmacodynamics in anesthesia and pain therapy. Clin Pharmacokinet. 2016;55(9):1059-77., 1515 Berman RM, Cappiello A, Anand A, Oren DA, Heninger GR, Charney DS, Krystal JH. Antidepressant efects of ketamine in depressed patients. Biol Psychiatry. 2000;47(4):351-4., 1616 Serafini G, Howland R, Rovedi F, Girardi P, Amore M. Te role of ketamine in treatment-resistant depression: a systematic review. Curr Neuropharmacol. 2014;12(5):444-61..

A cetamina tem um mecanismo complexo de ação e atua principalmente como um antagonista não competitivo dos receptores N-Metil-D-Aspartato (NMDA) no sistema nervoso central, intervindo diretamente na entrada sensorial, mediando as respostas de dor, memória e emoções, com propriedades dissociativas. Ela promove efeitos em vários outros receptores que têm uma relação com a dor e regulação do humor, como o agonista receptor opioide, antagonista dos receptores nicotínicos e muscarínicos, bloqueio dos canais de sódio e potássio, tem alta afinidade com os receptores dopamina D2 e canais dependentes do cálcio, aumenta a atividade do ácido aminobutírico (GABA) e intensifica as vias modulatórias descendentes33 Cohen SP, Bhatia A, Buvanendran A, Schwenk ES, Wasan AD, Hurley RW, Viscusi ER, Narouze S, Davis FN, Ritchie EC, Lubenow TR, Hooten WM. Consensus Guidelines on the Use of Intravenous Ketamine Infusions for Chronic Pain From the American Society of Regional Anesthesia and Pain Medicine, the American Academy of Pain Medicine, and the American Society of Anesthesiologists. Reg Anesth Pain Med. 2018;43(5):521-46.. Em estudos pré-clínicos, foi observado que a cetamina reduziu a tolerância opioide e a hiperalgesia1717 Orhurhu V, Orhurhu MS, Bhatia A, Cohen S P. Ketamine infusions for chronic pain: a systematic review and meta-analysis of randomized controlled trials. Anesth Analg. 2019;129(1):241-54.. Além disso, as infusões de cetamina foram associadas a reduções significativas na dor crônica e podem gerar uma diminuição de 2 pontos ou 30% na pontuação da dor, correspondendo a uma melhora clinicamente importante, considerando que os parâmetros da dor não são lineares1818 Farrar JT, Young JP, LaMoreaux L, Werth JL, Poole RM. Clinical importance of changes in chronic pain intensity measured on an 11-point numerical pain rating scale. Pain. 2001;94(2):149-58.. Assim, este caso apresentou uma melhora de 5 pontos na EAV, comparável a um alívio clinicamente significativo de aproximadamente 55%, durante o tratamento.

Vários estudos publicados foram capazes de demonstrar os efeitos antidepressivos da cetamina, como foi inicialmente demonstrado pelo estudo1515 Berman RM, Cappiello A, Anand A, Oren DA, Heninger GR, Charney DS, Krystal JH. Antidepressant efects of ketamine in depressed patients. Biol Psychiatry. 2000;47(4):351-4., com a dose IV padrão de 0,5mg/kg por 40 minutos de cetamina. O efeito antidepressivo dos estudos, em média, apresentou uma eficácia maior com 24 h de pós-infusão e teve uma duração média transicional de 1-2 semanas. Além disso, observou-se que infusões de cetamina em dose única intravenosa em doses subanestésicas resultam em taxas de resposta de aproximadamente 37 a 71% em pacientes com depressão resistente ao tratamento1616 Serafini G, Howland R, Rovedi F, Girardi P, Amore M. Te role of ketamine in treatment-resistant depression: a systematic review. Curr Neuropharmacol. 2014;12(5):444-61.. A duração do efeito antidepressivo tem sido bastante variável em estudos clínicos, variando de horas a semanas, e a maioria dos pacientes eventualmente tem recaídas. Assim, vários estudos têm explorado o ensaio de infusão de cetamina IV em série e semanal por um certo período para manter o efeito analgésico e antidepressivo curto e transitório1919 Corriger A, Pickering G. Ketamine and depression: a narrative review. Drug Des Devel Ter. 2019;13:3051-67..

O presente estudo observou que uma única infusão em baixas doses de cetamina pode aliviar rapidamente sintomas depressivos, pensamentos e ações suicidas em pacientes com depressão refratária. De acordo com os ensaios clínicos, o paciente apresentou uma melhora de 65% no humor durante o tratamento, passando de uma pontuação de depressão muito grave (40 pontos) para uma depressão moderada (14 pontos) na HAM-D.

Outro fato relevante no caso apresentado foi a diminuição significativa e gradual dos opioides durante o período de tratamento. A diminuição no uso de morfina por via subaracnoidea e oral utilizada durante o tratamento em série com infusão de cetamina representa menor toxicidade sistêmica, nefrotoxicidade e hepatotoxicidade, além de melhorar a qualidade de vida dos pacientes. Além disso, foi demonstrado que os efeitos antidepressivos da cetamina podem ser prolongados com esquemas de infusão em série e intermitentes, gerando efeitos terapêuticos mais significativos quando comparados a uma única infusão2020 Strong CE, Kabbaj M. On the safety of repeated ketamine infusions for the treatment of depression: efects of sex and developmental periods. Neurobiol Stress. 2018;9:166-75.. Este efeito tem especial relevância considerando pacientes com depressão refratária e pacientes em risco de suicídio, uma vez que a cetamina demonstrou um potencial terapêutico rápido, seguro e eficaz para esta situação.

De todo modo, uma grande desvantagem e obstáculo de seu uso são os efeitos adversos, a saber: aumento da frequência respiratória, alucinações, diplopia, sintomas dissociativos, agitação, náuseas e vômitos77 Yang Y, Maher DP, Cohen SP. Emerging concepts on the use of ketamine for chronic pain. Expert Rev Clin Pharmacol. 2020;13(2):135-46.. Seu uso a longo prazo está relacionado aos riscos de doenças urinárias graves e persistentes, comprometimento cognitivo, dependência química, e estes são dependentes da dose e do tempo de exposição. Entretanto, ainda faltam estudos demonstrando os efeitos a longo prazo e infusões em série de cetamina, tanto para o tratamento da dor como para a depressão. A paciente apresentou sintomas dissociativos, sensação de morte iminente e medo inexplicável desde a segunda sessão até a terceira infusão, o que foi crucial para a intolerância ao tratamento, apesar da melhora significativa no humor e na dor.

Finalmente, é importante salientar que a infusão em série de cetamina por um determinado período é uma alternativa mais segura e eficaz ao tratamento da dor e depressão quando comparada a um único regime de infusão IV. Na verdade, tratamentos com uma dose IV padrão de 0,5 mg/kg por 40 minutos apresentaram melhores resultados clínicos, permitindo maior tolerância aos efeitos adversos33 Cohen SP, Bhatia A, Buvanendran A, Schwenk ES, Wasan AD, Hurley RW, Viscusi ER, Narouze S, Davis FN, Ritchie EC, Lubenow TR, Hooten WM. Consensus Guidelines on the Use of Intravenous Ketamine Infusions for Chronic Pain From the American Society of Regional Anesthesia and Pain Medicine, the American Academy of Pain Medicine, and the American Society of Anesthesiologists. Reg Anesth Pain Med. 2018;43(5):521-46., 44 Sanacora G, Frye MA, McDonald W, Mathew SJ, Turner MS, Schatzberg AF, Summergrad P, Nemerof CB. A consensus statement on the use of ketamine in the treatment of mood disorders. JAMA Psychiatry. 2017;74(4):399-405., 1616 Serafini G, Howland R, Rovedi F, Girardi P, Amore M. Te role of ketamine in treatment-resistant depression: a systematic review. Curr Neuropharmacol. 2014;12(5):444-61., 1717 Orhurhu V, Orhurhu MS, Bhatia A, Cohen S P. Ketamine infusions for chronic pain: a systematic review and meta-analysis of randomized controlled trials. Anesth Analg. 2019;129(1):241-54..

Os pontos fortes deste caso estão relacionados à possibilidade de aplicar infusões seriais de cetamina como um tratamento alternativo para a depressão resistente ao tratamento, porém em doses baixas e através de infusão contínua por um determinado período, em oposição à aplicação de dose única. No entanto, houve limitações relacionadas ao acompanhamento imediatamente após o tratamento, já que a paciente decidiu abandonar a terapia após a terceira sessão, a qual poderia determinar melhor o efeito transitório das propriedades analgésicas e antidepressivas da cetamina.

CONCLUSÃO

A cetamina é uma opção de tratamento promissora para dor crônica e depressão e pode promover alívio considerável, embora temporário, do humor usando uma dose subanestésica. Entretanto, os efeitos adversos podem ser uma limitação a ser considerada.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Out 2022
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2022

Histórico

  • Recebido
    22 Jun 2021
  • Aceito
    13 Set 2022
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