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O ensino sobre dor além do conhecimento técnico: uma reflexão sobre soft skills para profissionais de saúde

A dor, especialmente a crônica, pode ser considerada um problema de saúde pública responsável por gerar incapacidade para atividades diárias e trabalho, assim como altos custos individuais e sociais11 Gaskin DJ, Richard P. The economic costs of pain in the United States. J Pain. 2012;13(8):715-24.. É relevante que os profissionais de saúde sejam treinados adequadamente para o manejo das pessoas com dor. Com o objetivo de estabelecer os conteúdos específicos para a educação e o treinamento em dor dos profissionais de saúde, a Associação Internacional para o Estudo da Dor (International Association for the Study of Pain - IASP) estabeleceu a recomendação de currículo, o “IASP Core Curriculum”, para a formação de diversos profissionais da área da saúde, incluindo psicólogos, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, enfermeiros, médicos, dentistas, assistentes sociais e farmacêuticos22 DeSantana JM, Souza JB, Reis FJJ, Gosling AP, Paranhos E, Barboza HFG, Baptista AF, Comissão de Fisioterapia da Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor. Pain curriculum for graduation in Physiotherapy in Brazil. Rev Dor. 2017;18(1):72-8.,33 Sardá Junior JJ, Perissinotti DMN, Ros MA, Siqueira JLD. Pain curricular guidelines for Psychologists in Brazil. BrJP. 2019;;2(1):61-6.. O objetivo dos currículos é definir o conhecimento e as habilidades necessárias para o avanço da ciência e do manejo da dor, levando em consideração as competências de cada profissional e seu papel na equipe de saúde44 Fishman SM, Young HM, Lucas Arwood E, Chou R, Herr K, Murinson BB, Watt-Watson J, Carr DB, Gordon DB, Stevens BJ, Bakerjian D, Ballantyne JC, Courtenay M, Djukic M, Koebner IJ, Mongoven JM, Paice JA, Prasad R, Singh N, Sluka KA, St Marie B, Strassels SA. Core competencies for pain management: results of an interprofessional consensus summit. Pain Med. 2013;14(7):971-81.. Esses currículos foram estabelecidos em quatro pilares que se baseiam em conceitos fundamentais sobre a complexidade e o manejo da dor, incluindo a natureza multidimensional da dor, a avaliação, o manejo da dor e de condições clínicas específicas55 Dochy F, Segers M, Van den Bossche P, Gijbels D. Effects of problem-based learning: a meta-analysis. Learning and Instruction. 2003;13(5):533-68.. Em 2017, esses currículos foram revisados pela IASP e alguns sofreram adaptações para o contexto brasileiro22 DeSantana JM, Souza JB, Reis FJJ, Gosling AP, Paranhos E, Barboza HFG, Baptista AF, Comissão de Fisioterapia da Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor. Pain curriculum for graduation in Physiotherapy in Brazil. Rev Dor. 2017;18(1):72-8.,33 Sardá Junior JJ, Perissinotti DMN, Ros MA, Siqueira JLD. Pain curricular guidelines for Psychologists in Brazil. BrJP. 2019;;2(1):61-6..

A definição dos currículos com os conhecimentos e as habilidades importantes para a abordagem das pessoas com dor é uma medida importante para promover o treinamento adequado dos profissionais. No entanto, as menções sobre os aspectos humanísticos dos cuidados de saúde são raramente apresentadas e estão limitadas à necessidade da empatia, à relação interprofissional e à comunicação com o paciente e a família. É importante destacar que os profissionais de saúde necessitam ter competências que derivam da combinação de habilidades técnicas, específicas e tradicionalmente ensinadas (“hard skills”), e as não técnicas (“soft skills), para lidar com as pessoas na sua prática profissional.

As soft-skills são apresentadas aqui como habilidades socioemocionais, ou seja, habilidades associadas ao perfil comportamental e emocional de cada indivíduo e, portanto, são menos tangíveis e mais difíceis de ensinar e avaliar. As soft skills envolvem habilidades de desenvolvimento emocional, comportamental e cognitivo, como a comunicação, o pensamento crítico e estruturado, a resolução de problemas, a capacidade de trabalho em equipe, a negociação, a consciência cultural, a sociabilidade, a empatia e o respeito à diversidade, entre outras. A literatura mostra que ensinar os profissionais de saúde a praticarem a validação empática que se refere à capacidade de compreender e compartilhar os sentimentos e experiências de outra pessoa, pode facilitar a comunicação e fazer com que os pacientes se sintam mais aceitos e satisfeitos com seus tratamentos66 Linton SJ, Flink IK, Nilsson E, Edlund S. Can training in empathetic validation improve medical students’ communication with patients suffering pain? A test of concept. Pain Rep. 2017;2(3):e600..

Apesar de serem entendidas como importantes para a prática profissional em uma equipe interdisciplinar que atende pessoas com dor, o treinamento das soft skills não é suficientemente ou igualmente gerenciado como são as hard skills. Justificativas para essa carência podem ser a valorização da formação conteudista, o estabelecimento de poucos objetivos de ensino-aprendizagem relacionados às habilidades atitudinais e ao desenvolvimento de profissionalismo, e a necessidade de capacitação docente para compreender e sistematizar o processo de avaliação do progresso do estudante nesses tópicos77 Hodges B, Paul R, Ginsburg S, The Ottawa Consensus Group Members. Assessment of professionalism: From where have we come - to where are we going? An update from the Ottawa Consensus Group on the assessment of professionalism. Med Teach. 2019;41(3):249-55.. Como resultado, habilidades não técnicas ficam relegadas ao currículo oculto, trabalhadas de forma extraoficial e não planejada, ou são simplesmente negligenciadas. É, portanto, relevante trazer para a discussão como os profissionais de saúde podem desenvolver, de maneira sistemática e intencional, soft skills durante a sua formação.

A literatura destaca que os métodos de ensino centrados no professor, como as aulas expositivas, podem não ser adequados para que se desenvolva as habilidades interpessoais durante a graduação ou na educação continuada88 Widad A, Abdellah G. Strategies used to teach soft skills in Undergraduate Nursing Education: a Scoping Review. J Prof Nurs. 2022;42:209-18.. Assim, a abordagem formal para o problema seria incorporar essas habilidades interpessoais durante a formação do profissional de saúde. Uma maneira estratégica para oferecer o treinamento de soft skills aos alunos é incorporá-las ao ensino de hard skills. A inclusão do treinamento das soft skills pode ser efetivamente integrada em cada disciplina, utilizando ferramentas didáticas que ajudem os alunos a desenvolvê-las, baseadas em estratégias de metodologias ativas de ensino, como trabalhos elaborados em forma de projeto, simulação, estudos de caso em grupo, aprendizagem pela ação, debate, entre outras. Essas estratégias de ensino podem contribuir significativamente para o ensino-aprendizagem das soft skills, estimulando o envolvimento dos estudantes de forma ativa na compreensão e cuidado, diante das experiências de sofrimento dos pacientes, sem reduzir, julgar, negar ou substituir os relatos. Como exemplo, podemos citar o Problem-based Learning (PBL) e o ensino baseado em projetos (Project-based Learning), que se baseiam na resolução de problemas simulados ou reais em grupo como forma de combinar o desenvolvimento de habilidades socioemocionais e a construção de um conhecimento técnico colaborativo e significativo99 Ibrahim ME, Al-Shahrani AM, Abdalla ME, Abubaker IM, Mohamed ME. The effectiveness of problem-based learning in acquisition of knowledge, soft skills during basic and preclinical Sciences: Medical Students’ Points of View. Acta Inform Med. 2018;26(2):119-24.-1010 Oliveira A. Ensinamos prática clínica informada por ciência aos nossos estudantes? Movimenta. 2022;15(2). https://doi.org/10.31668/movimenta.v15i2.13518.
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Destacamos nesse editorial a importância do conhecimento e do treinamento técnico (hard skills), mas também salientamos a necessidade da discussão sobre incluir de forma intencional e sistematizada o treinamento adequado em soft skills na formação dos profissionais de saúde. O desenvolvimento dessas habilidades não técnicas parece desempenhar um papel crucial na equipe interdisciplinar e na abordagem integral do paciente, permitindo que os profissionais estabeleçam uma comunicação eficaz, demonstrem empatia, promovam a colaboração e compreendam a experiência de sofrimento vivida pelas pessoas com dor.

Dessa maneira, trazemos a discussão sobre a necessidade de se repensar o conjunto de objetivos, oportunidades e avaliação do ensino-aprendizagem das habilidades socioemocionais de profissionais de saúde, considerando estratégias ativas e centradas no aluno, que permitam o desenvolvimento dessas habilidades de maneira prática e significativa. Essas abordagens têm o potencial de melhorar significativamente a qualidade do cuidado e o bem-estar dos pacientes. Destacamos também a necessidade de que os estudos sobre a influência das soft skills na prática clínica, assim como os métodos de ensino-aprendizagem, sejam investigados no contexto da formação do profissional de saúde brasileiro.

REFERENCES

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    Sardá Junior JJ, Perissinotti DMN, Ros MA, Siqueira JLD. Pain curricular guidelines for Psychologists in Brazil. BrJP. 2019;;2(1):61-6.
  • 4
    Fishman SM, Young HM, Lucas Arwood E, Chou R, Herr K, Murinson BB, Watt-Watson J, Carr DB, Gordon DB, Stevens BJ, Bakerjian D, Ballantyne JC, Courtenay M, Djukic M, Koebner IJ, Mongoven JM, Paice JA, Prasad R, Singh N, Sluka KA, St Marie B, Strassels SA. Core competencies for pain management: results of an interprofessional consensus summit. Pain Med. 2013;14(7):971-81.
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    Dochy F, Segers M, Van den Bossche P, Gijbels D. Effects of problem-based learning: a meta-analysis. Learning and Instruction. 2003;13(5):533-68.
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    Linton SJ, Flink IK, Nilsson E, Edlund S. Can training in empathetic validation improve medical students’ communication with patients suffering pain? A test of concept. Pain Rep. 2017;2(3):e600.
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    Widad A, Abdellah G. Strategies used to teach soft skills in Undergraduate Nursing Education: a Scoping Review. J Prof Nurs. 2022;42:209-18.
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    Oliveira A. Ensinamos prática clínica informada por ciência aos nossos estudantes? Movimenta. 2022;15(2). https://doi.org/10.31668/movimenta.v15i2.13518
    » https://doi.org/10.31668/movimenta.v15i2.13518

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2023
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