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Função da glia no sistema endocanabinoide: revisão narrativa

RESUMO

JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS:

A evidência científica tem ressaltado um papel da ativação das células da glia e de sua interação com diversos sistemas neurais, com destaque para o sistema endocanabinoide e mecanismos envolvidos na cronificação e manutenção da dor. O objetivo deste estudo foi atualizar os dados publicados que mostrem a interação entre as células da glia com o sistema endocanabinoide na fisiopatologia da dor crônica e seu tratamento.

CONTEÚDO:

Foi realizada uma revisão narrativa baseada em pesquisa na base de dados Medline, com uso dos unitermos “endocannabinoid”, “glial cells”, “microglial”, “astrocytes”, “neuroinflammation”.

CONCLUSÃO:

O aprofundamento do conhecimento acerca da função das células da glia no sistema endocanabinoide abrirá a possibilidade de atuação sobre a origem fisiopatológica do processo de cronificação de dor, atenuando os mecanismos envolvidos na sensibilização central.

Descritores:
Dor; Inflamação neurogênica; Neuroglia; Receptores de canabinoides

ABSTRACT

BACKGROUND AND OBJECTIVES:

Evidence has highlighted a role of glial cell activation, and their interaction with different neural systems, especially the endocannabinoid system, in the mechanisms involved in the chronicity and maintenance of pain. The aim of this review is to bring an update on published data that demonstrate the interaction between glial cells and the endocannabinoid system in the pathophysiology of chronic pain and its treatment.

CONTENTS:

A narrative review was performed based on a research in the Medline database, using the Keywords “endocannabinoid”, “glial cells”, “microglial”, “astrocytes”, “neuroinflammation”.

CONCLUSION:

Deepening the knowledge about the function of glial cells in the endocannabinoid system will open the possibility of acting on the pathophysiological origin of the pain chronification process, attenuating the mechanisms involved in central sensitization.

Keywords:
Cannabinoids receptors; Neurogenic inflammation; Neuroglia; Pain

DESTAQUES

A ativação da micróglia está fortemente envolvida no desenvolvimento da dor neuropática secundária a lesão de nervo periférico.

O sistema endocanabinoide oferece um caminho para atenuação da inflamação neurogênica, envolvida no processo de cronificação da dor.

A micróglia exerce papel central na interação do sistema endocanabinoide com a fisiopatologia da dor crônica.

INTRODUÇÃO

A evidência acumulada ao longo dos últimos anos tem ressaltado um papel preponderante da ativação das células da glia e da interação destas com diversos sistemas neurais, nos mecanismos envolvidos na cronificação e manutenção da dor11 Ji RR, Berta T, Nedergaard M. Glia and pain: Is chronic pain a gliopathy? Pain. 2013;154:S10-28.. Dentre os sistemas que exercem e sofrem influência da glia, merece destaque o sistema endocanabinoide. Este sistema é visto como poderoso regulador da função sináptica por todo o sistema nervoso central (SNC), agindo através da redução da liberação de neurotransmissores na fenda sináptica, de forma transitória e de longa duração, e agindo sobre a função de canais iônicos na medula espinhal e gânglio da raiz dorsal (GRD)22 Castillo PE, Younts TJ, Chávez AE, Hashimotodani Y. Endocannabinoid signaling and synaptic function. Neuron. 2012;76(1):70-81.,33 van den Hoogen NJ, Harding EK, Davidson CED, Trang T. Cannabinoids in chronic pain: therapeutic potential through microglia modulation. Front Neural Circuits. 2022;15:816747.. A cronificação da dor pode ser sintetizada como um processo de plasticidade neuronal mal-adaptada, que resulta em sensibilização das vias dolorosas. Em decorrência destas alterações, há um desequilíbrio entre facilitação e inibição dos estímulos dolorosos no corno dorsal da medula, privilegiando o primeiro44 Matsuda M, Huh Y, Ji RR. Roles of inflammation, neurogenic inflammation, and neuroinflammation in pain. J Anesth. 2019;33(1):131-9.. Este estado de maior excitação do SNC resulta em uma amplificação patológica dos estímulos que entram e saem da medula espinhal11 Ji RR, Berta T, Nedergaard M. Glia and pain: Is chronic pain a gliopathy? Pain. 2013;154:S10-28.,33 van den Hoogen NJ, Harding EK, Davidson CED, Trang T. Cannabinoids in chronic pain: therapeutic potential through microglia modulation. Front Neural Circuits. 2022;15:816747.. Como consequência, ocorre a ativação das células da glia, levando a aumento de expressão de diversos receptores de membrana, proteínas intracelulares e fatores de transcrição que estão implicados no desenvolvimento e manutenção da dor crônica (DC). No entanto, dentre os receptores que têm sua expressão aumentada, estão os canabinoides CB1 e CB2, que, através de suas ações inibitórias, podem servir como alvo terapêutico para contrabalancear este estado de excitação neuronal33 van den Hoogen NJ, Harding EK, Davidson CED, Trang T. Cannabinoids in chronic pain: therapeutic potential through microglia modulation. Front Neural Circuits. 2022;15:816747..

O objetivo deste estudo foi atualizar os dados publicados que mostram interação entre as células da glia com o sistema endocanabinoide na fisiopatologia da DC e seu tratamento.

CONTEÚDO

Células da glia e dor

As células da glia existentes no SNC são os astrócitos, a micróglia e os oligodendrócitos. Já no sistema nervoso periférico (SNP), são encontradas as células gliais satélites no GRD e gânglio do trigêmeo e células de Schwann nos nervos periféricos.

As células micróglia são macrófagos residentes no SNC, com origem na linhagem dos monócitos produzidos na medula óssea. No SNC, essas células se distribuem de forma heterogênea, interagindo de forma dinâmica com as sinapses, de modo a manter a homeostase cerebral. A micróglia pode ser ativada em decorrência de insultos ao tecido neural. Quando isto ocorre, dá-se início a uma rápida proliferação destas células na medula espinhal, associado a mudanças na sua morfologia, adotando um formado ameboide11 Ji RR, Berta T, Nedergaard M. Glia and pain: Is chronic pain a gliopathy? Pain. 2013;154:S10-28..

A ativação da micróglia está fortemente envolvida no desenvolvimento da dor neuropática secundária à lesão de nervo periférico e depende da presença de mediadores como ATP, fator de estimulação de colônia 1 (CSF1), quimiocinas (CCL2 e CX3CL1) e proteases, provenientes dos neurônios sensitivos lesados ou ativados. Paralelamente, há aumento da expressão de receptores para ATP e CX3CL1 (P2X4, P2X7, P2Y12, CX3CR1) na própria micróglia da medula espinhal55 Ji RR, Chamessian A, Zhang YQ. Pain regulation by non-neuronal cells and inflammation. Science. 2016;354(6312):572-7..

A posterior ativação destes receptores leva a sinalização intracelular mediada pela fosforilação da proteína quinase p38 para aumento de produção e liberação de citocinas inflamatórias, tais como TNF-α, interleucinas IL-1β, IL-18, fator de crescimento derivado do cérebro (BDNF) e ciclo-oxigenase (COX). Estes mediadores são capazes de amplificar a transmissão sináptica, e portanto potencializar a transmissão dolorosa para o cérebro55 Ji RR, Chamessian A, Zhang YQ. Pain regulation by non-neuronal cells and inflammation. Science. 2016;354(6312):572-7.. Algumas alterações na micróglia têm potencial de produzir efeitos prolongados. Em um estudo que avaliou enhancers na micróglia espinhal, foi mostrada a existência de modificações persistes próximas a genes regulados por transcrição. Enhancers são áreas de cromatina aberta que definem o ponto de ligação de fatores de transcrição celular. Alterações nestas regiões podem estar implicadas na persistência do estado de facilitação, o que permite a manutenção da DC66 Denk F, Crow M, Didangelos A, Lopes DM, McMahon SB. Persistent alterations in microglial enhancers in a model of chronic pain. Cell Rep. 2016;15(8):1771-81..

Os astrócitos são as células presentes em maior número no SNC e, apesar de histologicamente possuírem função estrutural como células de suporte, é sabido que estão envolvidas no desenvolvimento de doenças neurológicas agudas e crônicas, neurodegenerativas, neuropsiquiátricas e gliomas11 Ji RR, Berta T, Nedergaard M. Glia and pain: Is chronic pain a gliopathy? Pain. 2013;154:S10-28.. Diferentemente das demais células da glia, os astrócitos possuem ligação intercelular física, determinadas pelas junções comunicantes, formando a barreira hematoencefálica e realizando outras funções fisiológicas, como regulação da concentração iônica, modulação da transmissão sináptica, entre outros55 Ji RR, Chamessian A, Zhang YQ. Pain regulation by non-neuronal cells and inflammation. Science. 2016;354(6312):572-7.. Assim como ocorre com a micróglia, ativação dos astrócitos leva a um estado de neuroinflamação, com participação na fisiopatogenia e manutenção da DC77 Ji RR, Donnelly CR, Nedergaard M. Astrocytes in chronic pain and itch. Nat Rev Neurosci. 2019;20(11):667-85..

Apesar de ambas as células estarem envolvidas no desenvolvimento da DC, algumas diferenças marcam a participação de cada uma delas. Os astrócitos estão envolvidos em praticamente todas as doenças que cursam com dor persistente, enquanto a ativação da micróglia parece ocorrer em apenas algumas situações específicas. Lesões de nervo periférico exibem participação de ambas as células, porém, na neuropatia induzida por quimioterapia, foi identificada participação apenas dos astrócitos. Da mesma forma, apenas astrogliose (e não microgliose) foi observada no corno da raiz dorsal de pacientes com neuropatia relacionada ao vírus da imunodeficiência humana. Modelos de dor neuropática decorrente de câncer ósseo também mostram envolvimento de astrócitos, porém a participação da micróglia, nestes casos, ainda não é definitiva77 Ji RR, Donnelly CR, Nedergaard M. Astrocytes in chronic pain and itch. Nat Rev Neurosci. 2019;20(11):667-85..

Por fim, os oligodentrócitos, células encarregadas da produção da bainha de mielina, também foram associados ao processo de cronificação da dor. Foi mostrado que a expressão de IL-33 derivada dos oligodendrócitos contribuiu, de maneira preponderante, para o desenvolvimento de dor neuropática após lesão de nervo periférico. Um dado interessante é que a ablação mediada por toxina destas células leva ao desenvolvimento de sintomas de dor neuropática, sugerindo papel protetor dos oligodendrócitos na DC55 Ji RR, Chamessian A, Zhang YQ. Pain regulation by non-neuronal cells and inflammation. Science. 2016;354(6312):572-7..

SISTEMA ENDOCANABINOIDE

O conhecimento acerca do sistema endocanabinoide como modulador das sinapses no SNC vem sendo construído ao longo dos últimos 25 anos, e evidências robustas apontam para sua atuação como mensageiro retrógrado, capaz de suprimir a liberação de neurotransmissores de maneira transitória e prolongada, tanto nas sinapses excitatórias, quanto inibitórias22 Castillo PE, Younts TJ, Chávez AE, Hashimotodani Y. Endocannabinoid signaling and synaptic function. Neuron. 2012;76(1):70-81..

O sistema endocanabinoide é uma rede biológica complexa, constituído pelos receptores canabinoides (CB1 e CB2), por seus respectivos ligantes endógenos, glicerol 2-araquidonoil (2-AG) e etanolamina O-araquidonoil (AEA), bem como suas enzimas sintetizadoras e degradadoras. Fisiologicamente, está relacionado à manutenção da homeostase e, para tanto, seus componentes são encontrados dispersos por todo o corpo, a exemplo de SNC, células do sistema imunológicos, fígado, sistema reprodutor, respiratório, gastrointestinal, cardiovascular e musculoesquelético88 Kasatkina LA, Rittchen S, Sturm EM. Neuroprotective and immunomodulatory action of the endocannabinoid system under neuroinflammation. Int J Mol Sci. 2021;22(11):5431.,99 Haspula D, Clark MA. Cannabinoid receptors: an update on cell signaling, pathophysiological roles and therapeutic opportunities in neurological, cardiovascular, and inflammatory diseases. Int J Mol Sci. 2020;21(20):7693..

O receptor CB1 é expresso primordialmente no sistema nervoso, com maior evidência para as terminações axonais GABAérgicas. Já os CB2 estão presentes principalmente nas células do sistema imunológico, inclusive na micróglia. No entanto, este receptor também está presente no SNC, especialmente no tronco encefálico e nas vias dopaminérgicas mesencefálicas. Diferentemente dos CB1, que estão entre os receptores acoplados a proteína G com maior expressão no SNC, o CB2 tem um quantitativo basal reduzido e conta com alta inductilidade frente a estímulo inflamatório99 Haspula D, Clark MA. Cannabinoid receptors: an update on cell signaling, pathophysiological roles and therapeutic opportunities in neurological, cardiovascular, and inflammatory diseases. Int J Mol Sci. 2020;21(20):7693..

Na glia, os astrócitos expressam receptores CB1, com função de regular a síntese de glutamina-sintase e, por conseguinte, controlar a quantidade de glutamato disponível na fenda sináptica e o influxo de cálcio, modulando a força da sinapse. Já a micróglia, expressa, principalmente, CB2 e participa da modulação entre os estados pró-inflamatório e anti-inflamatório88 Kasatkina LA, Rittchen S, Sturm EM. Neuroprotective and immunomodulatory action of the endocannabinoid system under neuroinflammation. Int J Mol Sci. 2021;22(11):5431.,99 Haspula D, Clark MA. Cannabinoid receptors: an update on cell signaling, pathophysiological roles and therapeutic opportunities in neurological, cardiovascular, and inflammatory diseases. Int J Mol Sci. 2020;21(20):7693.. Ambos CB1 e CB2 são receptores acoplados a proteína G com função inibitória, com sua ativação levando ao bloqueio de canais de sódio, ativação de canais de potássio e inibição da adenilatociclase33 van den Hoogen NJ, Harding EK, Davidson CED, Trang T. Cannabinoids in chronic pain: therapeutic potential through microglia modulation. Front Neural Circuits. 2022;15:816747.. A ativação dos receptores canabinoides atua modulando a transmissão da nocicepção, já tendo sido mostrada a atenuação do comportamento doloroso em modelos animais1010 Finn D P, Haroutounian S, Hohmann AG, Krane E, Soliman N, Rice AS. Cannabinoids, the endocannabinoid system, and pain: a review of preclinical studies. Pain. 2021;162(Suppl 1):S5-25..

O principal mecanismo pelo qual ocorre modulação da função sináptica é a sinalização retrógrada. Isto ocorre quando uma atividade pós-sináptica leva à produção de endocanabinoides, que se liga a CB1 expresso na membrana pré-sináptica, o que leva a inibição da liberação de neutransmissores (glutamato). No entanto, o ligante endocanabinoide pode agir ainda através da ativação de receptor vaniloide (TRPV1) e CB1 pós-sináptico, bem como através da ativação das células da glia22 Castillo PE, Younts TJ, Chávez AE, Hashimotodani Y. Endocannabinoid signaling and synaptic function. Neuron. 2012;76(1):70-81..

Micróglia e sinalização endocanabinoide

Como já descrito, em situações em que há nocicepção, é esperado engajamento da micróglia a partir da ativação de suas células, levando a indução e perpetuação da neuroinflamação e a um estado de facilitação, que torna propício o desenvolvimento da cronificação da dor. No entanto, a ativação de receptores CB2 pode modificar profundamente a função imune da micróglia, convertendo-a para um estado anti-inflamatório, em que há limitação da migração da fagocitose, aumento da produção de mediadores anti-inflamatórios e redução da produção de pró-inflamatórios33 van den Hoogen NJ, Harding EK, Davidson CED, Trang T. Cannabinoids in chronic pain: therapeutic potential through microglia modulation. Front Neural Circuits. 2022;15:816747..

Com a ativação do CB2, algumas mudanças são esperadas na resposta da micróglia a injúria. Pode ser observada redução da produção de óxido nítrico, redução da síntese de IL-1β, TNF-α e BDNF, em decorrência de atenuação da via da proteína quinase p38, e redução da proliferação da micróglia mediada por ERK33 van den Hoogen NJ, Harding EK, Davidson CED, Trang T. Cannabinoids in chronic pain: therapeutic potential through microglia modulation. Front Neural Circuits. 2022;15:816747.,1111 Correa F, Hernangómez M, Mestre L, Loría F, Spagnolo A, Docagne F, Di Marzo V, Guaza C. Anandamide enhances IL-10 production in activated microglia by targeting CB 2 receptors: roles of ERK1/2, JNK, and NF-κB. Glia. 2010;58(2):135-47.. A ativação do CB2 também está associada a aumento da liberação de IL-10, citocina anti-inflamatória1111 Correa F, Hernangómez M, Mestre L, Loría F, Spagnolo A, Docagne F, Di Marzo V, Guaza C. Anandamide enhances IL-10 production in activated microglia by targeting CB 2 receptors: roles of ERK1/2, JNK, and NF-κB. Glia. 2010;58(2):135-47.. Foi mostrada ainda uma redução da expressão do receptor purinérgico P2X4 após ativação de CB21212 Wu J, Hocevar M, Bie B, Foss J F, Naguib M. Cannabinoid type 2 receptor system modulates paclitaxel-induced microglial dysregulation and central sensitization in rats. J Pain. 2019;20(5):501-14.. A mudança para um estado anti-inflamatório esteve também associada a redução do comportamento doloroso33 van den Hoogen NJ, Harding EK, Davidson CED, Trang T. Cannabinoids in chronic pain: therapeutic potential through microglia modulation. Front Neural Circuits. 2022;15:816747..

Estudos sugerem ainda a presença de receptores não-CB1 e não-CB2 na micróglia, que são ativados por ligantes canabinoides, e levam a redução na liberação de IL-1α e TNF-α, citocinas pró-inflamatórias1313 Puffenbarger RA, Boothe AC, Cabral GA. Cannabinoids inhibit LPS-inducible cytokine mRNA expression in rat microglial cells. Glia. 2000;29(1):58-69.,1414 Facchinetti F, Del Giudice E, Furegato S, Passarotto M, Leon A. Cannabinoids ablate release of TNFalpha in rat microglial cells stimulated with lypopolysaccharide. Glia. 2003;41(2):161-8..

Uma outra via que vem ganhando destaque é a do ácido graxo palmitoiletanolamida (PEA), que, apesar de não se ligar ao CB2, possui ação anti-inflamatória e antinociceptiva mediada indiretamente por este receptor. Isto pôde ser observado a partir da reversão de seu efeito por um antagonista do CB21515 Iannotti FA, Di Marzo V, Petrosino S. Endocannabinoids and endocannabinoid-related mediators: Targets, metabolism and role in neurological disorders. Prog Lipid Res. 2016;62:107-28..

A micróglia não apenas expressa os receptores canabinoides, mas também produz endocanabinoides. Com uma produção pelo menos 20 vezes superior a de outras células da glia ou neurônios, a micróglia é a maior responsável pela produção de endocanabinoides no SNC33 van den Hoogen NJ, Harding EK, Davidson CED, Trang T. Cannabinoids in chronic pain: therapeutic potential through microglia modulation. Front Neural Circuits. 2022;15:816747.. A produção destes ligantes depende de sinalização através da ativação de receptores purinérgicos (P2X4 e P2X7), com consequente aumento do cálcio intracelular33 van den Hoogen NJ, Harding EK, Davidson CED, Trang T. Cannabinoids in chronic pain: therapeutic potential through microglia modulation. Front Neural Circuits. 2022;15:816747.. Em situações como presença de dor neuropática, a micróglia aumenta a produção de endocanabinoides, bem como reduz a expressão de sua enzima degradadora, amida hidrolase de ácidos graxos (FAAH)33 van den Hoogen NJ, Harding EK, Davidson CED, Trang T. Cannabinoids in chronic pain: therapeutic potential through microglia modulation. Front Neural Circuits. 2022;15:816747..

Além da ação dos endocanabinoides sobre seus receptores, outras ações antinociceptivas são observadas a partir da ação destes ligantes em outros sistemas. Em nível espinhal, há inibição da atividade da adenilato ciclase e redução do AMP cíclico, que reduz a sinalização nociceptiva para neurônios de ordem superior33 van den Hoogen NJ, Harding EK, Davidson CED, Trang T. Cannabinoids in chronic pain: therapeutic potential through microglia modulation. Front Neural Circuits. 2022;15:816747.. Os endocanabinoides também inibem a via serotoninérgica 5-HT3, reduzem o influxo de sódio e bloqueiam canais de cálcio voltagem-dependentes (Cav3.2) pré-sinápticos33 van den Hoogen NJ, Harding EK, Davidson CED, Trang T. Cannabinoids in chronic pain: therapeutic potential through microglia modulation. Front Neural Circuits. 2022;15:816747..

Astrócitos e sinalização endocanabinoide

Os astrócitos expressam principalmente receptores CB1, que estão envolvidos na homeostase neuronal e controle de funções metabólicas77 Ji RR, Donnelly CR, Nedergaard M. Astrocytes in chronic pain and itch. Nat Rev Neurosci. 2019;20(11):667-85.. No entanto, estudos experimentais têm trazido à tona evidência de que a ativação deste receptor exerce papel na modulação da inflamação neurogênica e nocicepção. Este efeito pôde ser observado em estudo que demonstrou que a ativação do CB1 levou a atenuação da alodinia, da ativação persistente dos astrócitos na medula espinhal e da fosforilação da proteína quinase p38 nos astrócitos espinhais em modelo de incisão plantar1616 Stella N. Cannabinoid and cannabinoid-like receptors in microglia, astrocytes, and astrocytomas. Glia. 2010;58(9):1017-30..

Interação da glia e sistema endocanabinoide: perspectivas

As evidências de um papel central da inflamação neurogênica na fisiopatologia da cronificação e perpetuação da DC têm se tornado cada vez mais robustas44 Matsuda M, Huh Y, Ji RR. Roles of inflammation, neurogenic inflammation, and neuroinflammation in pain. J Anesth. 2019;33(1):131-9.. E é natural que haja a busca por mecanismos que sejam capazes de amenizar ou reverter estes processos.

Os dados obtidos, em sua maioria, de estudos experimentais acerca da influência que o sistema endocanabinoide exerce na inflamação neurogênica e sobre as vias de nocicepção, trazem um importante direcionamento para que este objetivo seja alcançado. Estes achados nos mostram que, ao serem estimulados, os receptores canabinoides, em particular os CB2 presentes na micróglia, previnem o desenvolvimento de um estado inflamatório, tanto agudo quanto de longa duração. Desta forma, seria também prevenida a sensibilização central, passo determinante na evolução para DC.

Os canabinoides exibem grande potencial no tratamento da dor, inclusive na prevenção dos processos envolvidos na cronificação da dor. No entanto, a eficácia e as consequências do uso em longo prazo destes agentes ainda estão sob cheque na literatura. Até o momento, entidades como a Associação Internacional para Estudo da Dor (IASP) ainda não colocam os canabinoides como primeira linha de tratamento para DC1717 Rice ASC, Belton J, Arendt Nielsen L. Presenting the outputs of the IASP Presidential Task Force on Cannabis and Cannabinoid Analgesia. Pain. 2021;162(Suppl 1):S3-S4.. Novos estudos são necessários para que eficácia e segurança destes agentes sejam assegurados.

CONCLUSÃO

O aprofundamento do conhecimento acerca da função das células da glia no sistema endocanabinoide abrirá a possibilidade de atuação sobre a origem fisiopatológica do processo de cronificação de dor, atenuando os mecanismos envolvidos na sensibilização central.

REFERENCES

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    17 Jul 2022
  • Aceito
    13 Fev 2023
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