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O atleta escolhe sentir dor!

Convidamos nossos leitores a perceberem e apreciarem o significado dos seguintes relatos de corredores que foram incluídos em um de nossos projetos de pesquisa: 1. “A corrida sempre mostra que eu posso ir além. Eu quis, fui e fiz! Mesmo sentindo câimbras por 10 km durante o percurso, o coração me impulsionava à linha de chegada. Foi bom. É sempre bom e sofrido”; 2. “A única coisa que me faria parar de correr seria uma lesão extremamente grave, algo que me impedisse de caminhar, porque se eu caminhar, eu vou dar um jeito de correr”; 3. “A pessoa que é fissurada por corrida faz de tudo, aguenta dor, aguenta tudo”! 4. “Quem nunca sentiu dor, não é? Se você treina forte, se você quer evoluir, você vai sentir dor, a dor faz parte do processo. Não tem como deixar de lado!”. Com base nesse tipo de relato diário que temos obtido e ancorados na literatura vigente, apresentamos pontos importantes que respaldam o título deste editorial: o atleta escolher sentir dor.

A prática regular de exercícios físicos, de modo geral, colabora para a redução da sensibilidade à dor e os exercícios de resistência (endurance) são apontados como os principais moduladores dessas respostas. Com isso, esse tipo de exercício se torna uma excelente opção para indivíduos que procuram reduzir quadros de dor, principalmente relacionados à dor crônica (por exemplo, fibromialgia), que estão associados à hipersensibilidade e à redução da inibição endógena da dor11 Edwards RR. Individual differences in endogenous pain modulation as a risk factor for chronic pain. Neurology. 2005;65(3):437-43..

Quando se trata do atleta, a percepção de dor surge em um contexto completamente diferente e, quando comparado com indivíduos com dor crônica, que sofrem de dor incontrolável e imprevisível, podemos perceber que, muitas vezes, é uma escolha, ou seja, a dor é voluntária e autoprovocada, muitas vezes, por treinamento rigoroso e competições exaustivas22 Geisler M, Ritter A, Herbsleb M, Bär KJ, Weiss T. Neural mechanisms of pain processing differ between endurance athletes and nonathletes: a functional connectivity magnetic resonance imaging study. Hum Brain Mapp. 2021;42(18):5927-42..

Sim, os atletas decidem sentir dor! E, nesses casos, é importante ressaltar que nem sempre as experiências de dor indicam condições físicas prejudiciais, que necessariamente causarão lesões ou comprometimentos aos treinamentos e competições. Pelo contrário, o que se espera com a prática regular de exercícios é que as vias de dor se habituem ao estímulo, que se adaptem de forma positiva, levando, assim, a uma condição de menor sensibilidade neural.

Em termos de sensibilidade à dor, os atletas representam uma população distinta, apresentando maior tolerância à dor em comparação com não atletas33 Tersarz J, Schuster AK, Hartmann M, Gerhardt A, Eich W. Pain perception in athletes compared to normally active controls: a systematic review with meta-analysis. Pain. 2012;153(6):1253-62., mas a questão, no entanto, é: quais mecanismos podem levar a diferenças na percepção da dor em atletas? Até hoje não se sabe ao certo a ordem: se os atletas melhoram a sua tolerância e limiar à dor com o treinamento e se tornam atletas de elite, ou se é algo relacionado à seleção natural (inato) e somente os mais tolerantes e com limiares mais altos fazem parte desse grupo seleto.

As experiências de dor acompanham os atletas nos horários e dias de treinamentos, nos dias seguintes aos treinamentos, todos os dias, por muitos anos, e o esperado é que eles se ajustem à necessidade de suportar esses eventos dolorosos. Várias hipóteses foram propostas, como a de que a exposição repetitiva para dor de baixa intensidade pode induzir tolerância física e mental à dor ou que o aumento da sensibilidade do barorreflexo pode influenciar a tolerância à dor22 Geisler M, Ritter A, Herbsleb M, Bär KJ, Weiss T. Neural mechanisms of pain processing differ between endurance athletes and nonathletes: a functional connectivity magnetic resonance imaging study. Hum Brain Mapp. 2021;42(18):5927-42., mas nada ainda fechado. No âmbito competitivo, a dor pode ser muito intensa e, ainda assim, não ser aversiva, existindo fortemente um componente afetivo-emocional, no que tange à paixão pela modalidade, muitas vezes obsessiva, envolvendo o prazer, a recompensa e a superação, que faz com que o atleta sinta dor e continue competindo. Isso reflete uma interação complexa entre o limiar de dor (componente discriminativo-sensorial da dor), a tolerância à dor (percepção psicológica da dor) e componentes afetivo-emocionais44 Thornton C, Sheffield D, Baird A. A longitudinal exploration of pain tolerance and participation in contact sports. Scand J Pain. 2017;16:36-44., que são crucias para entendermos a capacidade do atleta suportar e vencer seus próprios limites.

REFERENCES

  • 1
    Edwards RR. Individual differences in endogenous pain modulation as a risk factor for chronic pain. Neurology. 2005;65(3):437-43.
  • 2
    Geisler M, Ritter A, Herbsleb M, Bär KJ, Weiss T. Neural mechanisms of pain processing differ between endurance athletes and nonathletes: a functional connectivity magnetic resonance imaging study. Hum Brain Mapp. 2021;42(18):5927-42.
  • 3
    Tersarz J, Schuster AK, Hartmann M, Gerhardt A, Eich W. Pain perception in athletes compared to normally active controls: a systematic review with meta-analysis. Pain. 2012;153(6):1253-62.
  • 4
    Thornton C, Sheffield D, Baird A. A longitudinal exploration of pain tolerance and participation in contact sports. Scand J Pain. 2017;16:36-44.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2023
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