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Utilização da cannabis medicinal no tratamento da endometriose

RESUMO

JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS:

A endometriose é uma afecção ginecológica comum que atinge de 10% a 15% das mulheres no período reprodutivo e até metade das mulheres com dor pélvica crônica e/ou infertilidade. Estima-se que o número de mulheres com endometriose seja de 8 milhões no Brasil e de mais de 190 milhões no mundo. Em países industrializados, é uma das principais causas de hospitalização ginecológica. O objetivo deste estudo foi avaliar a literatura médica sobre o uso da cannabis no tratamento da endometriose.

CONTEÚDO:

A cannabis está cada vez mais disponível para o tratamento da dor crônica, mas sua eficácia permanece incerta devido à insuficiência de estudos randomizados.

CONCLUSÃO:

As evidências limitadas sugerem que a cannabis pode aliviar a dor em alguns pacientes, mas existem evidências insuficientes em relação a dose, formulações e melhor via de administração, o que impede uma recomendação definitiva da cannabis para alívio da dor pélvica crônica de origem ginecológica.

Descritores
Cannabis; Endometriose; Tratamento farmacológico.

ABSTRACT

BACKGROUND AND OBJECTIVES:

Endometriosis is a common gynecological condition, which affects 10% to 15% of women in the reproductive period and up to half of women with chronic pelvic pain and/or infertility. It is estimated that the number of women with endometriosis is 8 million in Brazil and more than 190 million worldwide. In industrialized countries, it is one of the main causes of gynecological hospitalization. The objective of this study was to evaluate the medical literature on the use of cannabis in the treatment of endometriosis.

CONTENTS:

Cannabis is increasingly available for the treatment of chronic pain, but its effectiveness remains uncertain due to the lack of randomized trials.

CONCLUSION:

Limited evidence suggests that cannabis may relieve pain in some patients, but there is insufficient evidence regarding dose, formulations and best route of administration that precludes a definitive recommendation on cannabis for the relief of chronic pelvic pain of gynecological origin.

Keywords
Cannabis; Endometriosis; Pharmacological treatment.

DESTAQUES

  • Endometriose é uma doença muito prevalente no mundo.

  • O uso da cannabis para tratamento de dor crônica já é consagrado.

  • Faltam estudos que suportem o uso da cannabis na endometriose.

DESTAQUES

  • Endometriose é uma doença muito prevalente no mundo.

  • O uso da cannabis para tratamento de dor crônica já é consagrado.

  • Faltam estudos que suportem o uso da cannabis na endometriose.

INTRODUÇÃO

A endometriose é uma afecção ginecológica comum que atinge de 10% a 15% das mulheres no período reprodutivo e até metade das mulheres com dor pélvica crônica e/ou infertilidade11 Viganò P, Parazzini F, Somigliana E, Vercellini P. Endometriosis: epidemiology and aetiological factors. Best Pract Res Clin Obstet Gynaecol. 2004;18(2):177-200.,22 Bellelis P, Dias JA Jr, Podgaec S, Gonzales M, Baracat EC, Abrão MS. Epidemiological and clinical aspects of pelvic endometriosis-a case series. Rev Assoc Med Bras. 2010;56(4):467-71.. Estima-se que o número de mulheres com endometriose seja de 8 milhões no Brasil e de mais de 190 milhões no mundo. Em países industrializados, é uma das principais causas de hospitalização ginecológica33 Zondervan KT, Becker CM, Missmer SA. Endometriosis. N Engl J Med. 2020;382(13):1244-56.. Apesar de ser uma das doenças mais estudadas em ginecologia, alguns aspectos continuam sendo alvo de pesquisa, destacando-se a busca pela sua etiopatogenia44 Abrao MS, Podgaec S, Dias JA Jr, Averbach M, Garry R, Ferraz Silva LF, Carvalho FM. Deeply infiltrating endometriosis affecting the rectum and lymph nodes. Fertil Steril. 2006;86(3):543-7. Além de significativamente impactar a qualidade de vida de uma mulher, sabe-se que os tratamentos clínico e cirúrgico da endometriose carregam uma carga econômica bastante considerável5.

CONTEÚDO

Tratamento clínico

O objetivo do tratamento clínico é promover alívio da dor provocada pela endometriose, além de tentar prevenir ou retardar a progressão da doença. Devido à sua característica de doença crônica secundária, faz-se necessário tratamentos de longa duração para obter controle dos sintomas. Não há como uniformizar o tratamento e, portanto, este deverá ser individualizado de acordo com os sintomas referidos, o desejo ou não de engravidar e a tolerância aos efeitos adversos apresentados pelas opções farmacológicas66 Simoens S, Dunselman G, Dirksen C, Hummelshoj L, Bokor A, Brandes I, Brodszky V, Canis M, Colombo GL, DeLeire T, Falcone T, Graham B, Halis G, Horne A, Kanj O, Kjer JJ, Kristensen J, Lebovic D, Mueller M, Vigano P, Wullschleger M, D’Hooghe T. The burden of endometriosis: costs and quality of life of women with endometriosis and treated in referral centres. Hum Reprod. 2012;27(5):1292-9.,77 Della Corte L, Di Filippo C, Gabrielli O, Reppuccia S, La Rosa VL, Ragusa R, Fichera M, Commodari E, Bifulco G, Giampaolino P. The Burden of Endometriosis on Women’s Lifespan: A Narrative Overview on Quality of Life and Psychosocial Wellbeing.Int J Environ Res Public Health. 2020;17(13):4683..

Tratamento cirúrgico

Sabe-se ainda que o tratamento cirúrgico pode restaurar a anatomia e a fertilidade de uma mulher, no entanto, em decorrência da não padronização da técnica cirúrgica e de ser dependente da habilidade e experiência da equipe cirúrgica, a taxa de recorrência apresenta índices bastante variados no mundo inteiro. Desta maneira, não é incomum a ocorrência de múltiplas intervenções88 Ianieri MM, Mautone D, Ceccaroni M. Recurrence in deep infiltrating endometriosis: a systematic review of the literature. J Minim Invasive Gynecol. 2018;25(5):786-93.,99 Ceccaroni M, Bounous VE, Clarizia R, Mautone D, Mabrouk M. Recurrent endometriosis: a battle against an unknown enemy. Eur J Contracept Reprod Health Care. 2019;24(6):464-74..

DISCUSSÃO

Sendo assim, um tratamento clínico que promova bom controle da dor e com baixos efeitos adversos se faz necessário. Um esstudo1010 Dmitrieva N, Nagabukuro H, Resuehr D, Zhang G, McAllister SL, McGinty KA, Mackie K, Berkley KJ. Endocannabinoid involvement in endometriosis. Pain. 2010;151(3):703-10. utilizando um modelo de endometriose em ratos, mostrou que os receptores CB1 são expressos nas fibras nervosas dos neurônios sensitivos e fibras simpáticas que inervavam as lesões de endometriose. Além disto, os mesmos autores também identificaram que os agonistas de CB1 diminuem a hiperalgesia causada pela endometriose, enquanto os antagonistas a aumentam.

Neste outro estudo in vitro, os autores utilizaram um agonista dos receptores CB1 e CB2 (WIN 55212-2) e observaram diminuição do tamanho dos nódulos em modelos animais. Os autores concluem que esta ação ocorre através da inativação da via proteína kinase e que o uso de cannabis medicinal parece ser algo promissor para o tratamento da endometriose profunda1111 Leconte M, Nicco C, Ngô C, Arkwright S, Chéreau C, Guibourdenche J, Weill B, Chapron C, Dousset B, Batteux F. Antiproliferative effects of cannabinoid agonists on deep infiltrating endometriosis. Am J Pathol. 2010;177(6):2963-70..

Além disto, já é sabido que a cannabis medicinal tem uso adequado para dor crônica e com baixos efeitos adversos há mais de uma década1212 Bonfá L, Vinagre RC, de Figueiredo NV. Cannabinoids in chronic pain and palliative care. Rev Bras Anestesiol. 2008;58(3):267-79. e que a adenomiose também tem uma relação importante com os receptores CB1 e CB2, com relação direta com a gravidade dos sintomas álgicos1313 Shen X, Duan H, Wang S, Gan L, Xu Q, Li JJ. Decreased expression of cannabinoid receptors in the eutopic and ectopic endometrium of patients with adenomyosis. Biomed Res Int. 2019;20;2019:5468954..

O material vegetal de cannabis normalmente contém mais de 450 compostos diferentes, com mais de 100 classificados como fitocanabinoides. Os dois fitocanabinoides mais estudados até o momento no contexto da pesquisa médica são o delta 9-tetrahidrocanabinol (THC, o principal constituinte psicoativo) e o canabidiol (CBD). As evidências sugerem efeitos antinociceptivos de canabinoides e moduladores dos próprios canabinoides endógenos do corpo (endocanabinoides). Os efeitos analgésicos do THC são mediados principalmente pelo agonismo do canabinoide1 (CB1) e do canabinoide2 (CB2), sendo o primeiro o principal responsável por seus efeitos psicoativos. Em contraste, o CBD não ativa os receptores CB1 ou CB2 e parece ter uma farmacologia complexa com atividade em vários outros receptores envolvidos na dor1414 Fisher E, Moore RA, Fogarty AE, Finn DP, Finnerup NB, Gilron I, Haroutounian S, Krane E, Rice ASC, Rowbotham M, Wallace M, Eccleston C. Cannabinoids, cannabis, and cannabis-based medicine for pain management: a systematic review of randomised controlled trials. Pain. 2021;162(Suppl 1):S45-S66..

Os opioides são comumente prescritos para dor crônica primária. No entanto, o aumento da conscientização sobre os modestos benefícios e riscos de dependência, overdose e morte gerou interesse por estratégias alternativas de manejo, assim como o uso da cannabis medicinal.

Foi realizado um estudo sobre as preferências em relação a cannabis medicinal entre pacientes que vivem com dor crônica, que evidenciou que a maioria dos pacientes que usam cannabis medicinal relataram atitudes positivas em relação ao seu uso, com melhora da dor e redução dos medicamentos prescritos como fatores importantes que influenciam positivamente a decisão dos pacientes de usar cannabis medicinal. Por outro lado, as preocupações com dependência, perda de controle social, dependência, alterações comportamentais e consequências sociais negativas estão associadas à relutância em usar cannabis medicinal15.

CONCLUSÃO

A cannabis está cada vez mais disponível para o tratamento da dor crônica primária e secundária, mas sua eficácia permanece incerta devido à falta de estudos randomizados. As evidências limitadas sugerem que a cannabis pode aliviar a dor em algumas pacientes com endometriose, mas existem evidências insuficientes em relação a dose, formulações e melhor via de administração que impedem uma recomendação definitiva sobre cannabis para alívio da dor pélvica crônica de origem ginecológica.

REFERENCES

  • 1
    Viganò P, Parazzini F, Somigliana E, Vercellini P. Endometriosis: epidemiology and aetiological factors. Best Pract Res Clin Obstet Gynaecol. 2004;18(2):177-200.
  • 2
    Bellelis P, Dias JA Jr, Podgaec S, Gonzales M, Baracat EC, Abrão MS. Epidemiological and clinical aspects of pelvic endometriosis-a case series. Rev Assoc Med Bras. 2010;56(4):467-71.
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    Zondervan KT, Becker CM, Missmer SA. Endometriosis. N Engl J Med. 2020;382(13):1244-56.
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    Abrao MS, Podgaec S, Dias JA Jr, Averbach M, Garry R, Ferraz Silva LF, Carvalho FM. Deeply infiltrating endometriosis affecting the rectum and lymph nodes. Fertil Steril. 2006;86(3):543-7
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    Simoens S, Dunselman G, Dirksen C, Hummelshoj L, Bokor A, Brandes I, Brodszky V, Canis M, Colombo GL, DeLeire T, Falcone T, Graham B, Halis G, Horne A, Kanj O, Kjer JJ, Kristensen J, Lebovic D, Mueller M, Vigano P, Wullschleger M, D’Hooghe T. The burden of endometriosis: costs and quality of life of women with endometriosis and treated in referral centres. Hum Reprod. 2012;27(5):1292-9.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    20 Jul 2022
  • Aceito
    27 Fev 2023
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