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Representação de personagens transgêneras em narrativas literárias brasileiras: um problema de gênero

Representation of transgender characters in Brazilian literary narratives: a gender trouble

RESUMO

Partindo da ideia de corpo-trans como metáfora para se compreender as diversas possibilidades de transgeneridade, este artigo tem como objetivo explorar como a personagem transgênera tem sido representada em narrativas literárias brasileiras. Para tanto, faz-se necessário comparar o modelo representacional de autores cisgêneros com a representação empreendida por autores e autoras transgêneros. Nessa empreitada, é importante encarar os textos de autoria trans a partir de uma visada transfeminista, isto é, de um escopo teórico criador por, e destinado às próprias pessoas trans. Nesse contexto, este artigo busca responder perguntas como: onde estão as personagens transgêneras criadas pela autoria trans? Quais padrões representacionais são observados na construção de tais personagens na autoria cis e na autoria trans? Por que quase nunca se fala em autoria trans mesmo quando o assunto é a representação de personagens transgêneras? As respostas sugeridas indicam um apagamento da autoria trans como consequência da cisheteronormatividade que influencia o campo literário editorial e acadêmico.

PALAVRAS-CHAVE:
personagens transgêneras; narrativas brasileiras; corpo-trans; transfeminismo

ABSTRACT

Starting from the idea of trans-body as a metaphor to understand the various possibilities of transgenderism, this paper aims to explore how the transgender character has been represented in Brazilian literary narratives. Therefore, it is necessary to compare the representational model of cisgender authors with the representation undertaken by transgender authors. In this endeavor, it is important to read the texts of trans authorship from a transfeminist point of view, that is, from a theoretical scope created by, and intended to the trans people themselves. In this context, this article seeks to answer questions such as: where are the transgender characters created by trans authorship? What representational patterns are observed in the construction of such characters in cis and trans authorship? Why is it that we seldom talk about trans authorship even when it comes to the representation of transgender characters? The suggested answers indicate an erasure of trans authorship as a consequence of the cisheteronormativity that influences the editorial and academic literary field.

KEYWORDS:
transgender characters; Brazilian narratives; trans-body; transfeminism

Primeiros apontamentos

Ao analisar a presença de personagens transgêneras em narrativas ficcionais brasileiras é necessário pensar nos termos que têm sido utilizados pela crítica para se referir ao que, no decorrer deste artigo, denominaremos de corpo-trans. A nossa definição de corpo-trans foge à padronização do discurso médico sobre o corpo e sobre a adequação desse corpo ao sexo biológico. O corpo-trans é, portanto, uma metáfora para as diversas possibilidades de se entender o gênero; sendo assim, ele não cabe na afirmação de um corpo “errado” que sedia uma alma desconforme. O corpo-trans é um corpo transgênero, que não necessariamente precisa sofrer modificações para se enquadrar na dinâmica “natural” dos corpos, como quer o dispositivo da cisheteronormatividade, é o corpo consciente de que as modificações cirúrgicas ou hormonais não são pré-requisitos imprescindíveis para a sua existência. O corpo-trans suporta o gênero-epifania.

A partir dessa breve conceituação, é necessário apontar, antes de tudo, que o termo com o qual iremos tratar tais personagens (a saber, transgêneros ou pessoas trans) é relativamente novo, se comparado a outros como homossexualidade, por exemplo, e que, portanto, a crítica e historiografia literárias (nos referimos àquelas praticadas nos séculos XIX e XX) quase nunca se referiam a essas personagens como pessoas trans, mas sim como homossexuais, como demonstra o estudo de Fernandes (2016FERNANDES, Carlos Eduardo Albuquerque. Um percurso pelas configurações do corpo de personagens travestis em narrativas brasileiras do século XX: 1960-1980. Tese (Doutorado em Letras). Universidade Federal da Paraíba, 2016. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/9301.
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) acerca deste tema. Dessa maneira, é comum encontrar estudos literários que analisam romances, contos e novelas que possuem personagens trans à luz do homoerotismo.

Se antes a crítica literária optou por utilizar o termo homoerotismo para se referir, por exemplo, a personagens travestis, tendo em vista o hibridismo que muitas vezes caracterizava tal identidade, nos parece anacrônico continuar tratando travestis como homossexuais, uma vez que os estudos de gênero e o transfeminismo nos fornecem material teórico que pauta, dentre outras coisas, a discussão sobre a identificação delas como mulheres.

Sendo assim, a ideia apontada por Mitidieri (2020MITIDIERI, André Luis. “Literatura brasileira e (re)configurações transviadas”. Revista de literatura brasileira , v. 33, p. 58-76, 2020.) de uma reconfiguração da literária homoerótica na qual uma nova abordagem (trans)viada se instaura na leitura dos textos literários nos parece mais adequada e em diálogo direto com o transfeminismo ao sugerir que as representações de sexualidades e gênero dissidentes vão além do “rótulo” homoerótico e interpelam-se com a dimensão política de tais textos:

Nesse caso, através do comprometimento político, sobreposto a uma discutível exigência estética, e exposto pelo espaço biográfico, corpos individuais ou coletivos confrontam o poder ao celebrarem o desejo e a reversão dos dispositivos que os interditam. Assim, o que chamamos provisoriamente de “configurações transviadas”, recuperando o potencial decolonizante que os editores do Lampião vislumbravam na palavra “guei”, consiste em histórias cujos entravamentos pelo atual cenário acadêmico brasileiro são bastante conhecidos. Apesar dos pesares e dos “corpos que importam”, grandíssima parte de docentes insiste em trabalhar com os clássicos e reserva pouca energia para autores e 87 textos ditos periféricos. Quando as margens são enfim atingidas, seus atributos literários custam a ser reconhecidos e, se isso ocorre, exculpam-nas por suas conformações (auto)biográficas. (MITIDIERI, 2020MITIDIERI, André Luis. “Literatura brasileira e (re)configurações transviadas”. Revista de literatura brasileira , v. 33, p. 58-76, 2020., p. 86-87)

Tendo em vista essa nova “configuração transviada”, vale salientar que, ao nos referirmos às personagens trans, não nos valeremos dos estudos homoeróticos aos moldes do século XX, mas, sim, a partir dessa guinada transviada endossada, também, pelo discurso transfeminista.

Não proporemos um panorama historiográfico de todas as vezes em que personagens trans foram representadas em textos literários, mas construiremos nosso raciocínio a partir de duas categorias de análise, corpo trans e ficção literária, para lançar luz sobre alguns pontos interessantes acerca de tais representações e, sobretudo, questionaremos: qual o local ocupado pela autoria trans no panorama literário brasileiro? Há espaço para a autorrepresentação trans no que se convencionou chamar de cânone literário? Pode o autor trans falar? Tais questionamentos serão entremeados por estudos como o de Fernandes (2016FERNANDES, Carlos Eduardo Albuquerque. Um percurso pelas configurações do corpo de personagens travestis em narrativas brasileiras do século XX: 1960-1980. Tese (Doutorado em Letras). Universidade Federal da Paraíba, 2016. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/9301.
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), que constrói um panorama das personagens travestis na literatura brasileira do século XX, observando padrões representacionais acerca do corpo-trans, e por uma coleção de artigos publicados por Amara Moira na versão digital do Suplemento Pernambuco entre fevereiro e agosto de 2018MOIRA, Amara. “Transgressão da primeira autora trans”. Suplemento Pernambuco. Recife, 05 de fev. de 2018. Disponível em: https://suplementopernambuco.com.br/artigos/2041-transgress%C3%B5es-da-primeira-autora-trans.html . Acesso em: 27 de abril de 2020.
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Personagens transgêneras na literatura brasileira: um problema de gênero

De acordo com Fernandes (2016FERNANDES, Carlos Eduardo Albuquerque. Um percurso pelas configurações do corpo de personagens travestis em narrativas brasileiras do século XX: 1960-1980. Tese (Doutorado em Letras). Universidade Federal da Paraíba, 2016. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/9301.
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), o primeiro texto literário brasileiro a trazer uma personagem transgênera como protagonista foi o conto A grande atração, de Raimundo Magalhães Jr., publicado em 1936. No conto, Luigi Bianchi é um homem com trejeitos femininos que cantava como soprano em um circo decadente; a personagem não passa por nenhuma intervenção corporal comum às travestis (aplicação de silicone, administração hormonal etc.) e todas as impressões de sua feminilidade são contadas através da ótica do narrador. Raimundo Magalhães Jr. utiliza o termo “o travesti” para nomeá-la, com certeza levado pelo entendimento que na época era vigente: travestis são homossexuais que se vestem como mulheres. O fato da personagem apresentar-se em um circo revela o teor excêntrico com o qual as performances dissidentes eram e são interpretadas uma vez que, à época, o picadeiro era um espaço onde as “aberrações” podiam ser contempladas pela plateia. O fato de parecer e de cantar como mulher faz com que Luigi Bianchi encontre no palco do circo o seu local de pertencimento, como se ali ele/ela pudesse ser a realização de si mesma: uma soprano.

O estudo feito por Fernandes revela, ainda, que em um século de produção são apenas 19 textos (entre contos, romances e textos teatrais) que possuem personagens trans e todos eles de autoria cisgênera. Além desse dado, o que nos chama a atenção são as cenas de violência que circunscrevem praticamente todas as representações das personagens como, por exemplo, a confusão terminológica com a qual as travestis tinham que lidar em relação à homossexualidade. Ser travesti era, na década 1970, confundido com ser um homossexual afeminado, com ser transformista (denominação usada para se referir a homossexuais que atuavam como drag queens) e muitas vezes as personagens representadas nestas narrativas tinham uma identificação híbrida em relação à travestilidade: ora se reconheciam como mulheres, ora como homens homossexuais que se “vestiam de mulher” para fazer programa.

Muito dessa indeterminação se dá pela maneira como a sociedade tem tratado as identidades trans, principalmente nas décadas de 1970 e 1980 quando as discussões de gênero sequer refletiam sobre tais identidades. No caso específico das travestis, os textos apontados por Fernandes revelam o comportamento recorrente de sempre colocá-las em um local de exclusão quando as comparam com homens gays, como se a travestilidade ocupasse um lugar no limbo da abjeção: se não podem ser lidas como mulheres, nem como homens (mesmo que homossexuais), as personagens travestis só merecem existir na diegese quando alocadas em espaços de vulnerabilidade.

Ainda tendo como referência o panorama feito por Fernandes, outro dado merece atenção, o fato de que nos textos publicados até a década de 1970 se evidencia uma necessidade dos autores em revelar aos leitores o nome de batismo das protagonistas trans. Lina Lee é Antônio de Barros Cavalcanti; Gina, a ruiva, é Juarez Moreira; Shirley é Waldir. Essa insistência em revelar os nomes masculinos demonstra, de certa maneira, uma tentativa de deslegitimar as identidades de tais personagens, como se a existência da nova persona estivesse sempre condicionada ao gênero atribuído no nascimento, o que inviabilizaria a legitimidade da nova pessoa que se forma no processo de transição. O que parece ser um recurso narrativo, com o intuito de apresentar um “antes e depois” das personagens, acaba por funcionar como um dispositivo de abjeção dentro das narrativas.

O estudo de Fernandes revela que a representação de personagens transgêneros (especificamente de travestis) está intrinsicamente ligada à violência, uma vez que todos os enredos, em maior ou menor intensidade, desenvolvem-se a partir de casos de abandono, estupro, assassinato, suicídio etc. São essas formas de violência, que vão do psicológico ao físico, que interferem sobremaneira na existência de tais personagens:

O aspecto mais comum às personagens travestis de nossa literatura é a aproximação dessas com a violência. Sem exceção, todas as personagens sofrem agressão seja física ou verbal e, costumeiramente, morrem pelas mãos de seus agressores ou ainda por suicídio atrelado a tais tensões. (FERNANDES, 2016FERNANDES, Carlos Eduardo Albuquerque. Um percurso pelas configurações do corpo de personagens travestis em narrativas brasileiras do século XX: 1960-1980. Tese (Doutorado em Letras). Universidade Federal da Paraíba, 2016. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/9301.
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, p. 163)

A ficção literária brasileira do século XX reverbera, dessa maneira, a realidade social que, implacavelmente, condena as identidades trans ao fim trágico da violência e da morte. Além disso, Fernandes aponta que o exílio como experiência do corpo-trans também é uma imagem recorrente nesse panorama das narrativas do século XX, como se, para existir no novo gênero que se constrói, as personagens precisassem, primeiramente, transicionar de espaço geográfico. A necessidade de renascer em um lugar diferente implica a rejeição que elas sofrem quando do abandono familiar, sendo assim, o que resta é tentar a nova vida em uma nova cidade (geralmente as capitais, os grandes centros urbanos).

O corpus analisado por Fernandes, que inclusive aborda textos e autores “fora do cânone” como Cassandra Rios, Roberto Freire e Adelaide Carraro, indica que pessoas transgêneras sempre foram representadas sob o prisma da violência e que, apesar dessa carga negativa, tais textos ficcionais precisam ser vistos, também, como denúncias sociais, uma maneira que a literatura encontra de fazer justiça social para esse grupo minoritário vilipendiado, o que funcionaria como uma espécie de mal necessário.

A questão do cânone suscita um debate importante no que se refere a tais representações trans, uma vez que, de acordo com o estudo de Regina Dalcastagnè (2012DALCASTAGNÈ, Regina. Literatura brasileira contemporânea: um território contestado. Vinhedo: Editora Horizonte, 2012.), o cânone é constituído, majoritariamente, por escritores (homens cisgêneros, brancos, de classe média):

Só para citar alguns números, em todos os principais prêmios literários brasileiros (Portugal Telecom, Jabuti, Machado de Assis, São Paulo de Literatura, Passo Fundo Zaffari & Bourbon), entre os anos de 2006 e 2011, foram premiados 29 autores homens e apenas uma mulher (na categoria estreante, do Prêmio São Paulo de Literatura). Outra pesquisa, mais extensa, coordenada por mim na Universidade de Brasília, mostra que de todos os romances publicados pelas principais editoras brasileiras, em um período de 15 anos (de 1990 a 2004), 120 em 165 autores eram homens, ou seja, 72,7%. Mais gritante ainda é a homogeneidade racial: 93,9% dos autores são brancos. Mais de 60% deles vivem no Rio de Janeiro e em São Paulo. Quase todos estão em profissões que abarcam espaços já privilegiados de produção de discurso: os meios jornalístico e acadêmico. (DALCASTAGNÈ, 2012DALCASTAGNÈ, Regina. Literatura brasileira contemporânea: um território contestado. Vinhedo: Editora Horizonte, 2012., p. 14)

Isso nos permite inferir que os escritores do século XX que ousaram criar seus textos tendo como protagonistas personagens travestis estiveram, por muito tempo, fora do cânone, isto é, fora do ciclo dos estudos literários formais, da crítica literária da academia e muitas vezes fora do próprio mercado editorial comercial.

Partindo da ideia de exclusão do cânone e tendo como parâmetro o panorama criado por Fernandes (2016FERNANDES, Carlos Eduardo Albuquerque. Um percurso pelas configurações do corpo de personagens travestis em narrativas brasileiras do século XX: 1960-1980. Tese (Doutorado em Letras). Universidade Federal da Paraíba, 2016. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/9301.
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), outra questão nos chama a atenção: onde estão os textos de autoria trans nesse processo? Todos os dados examinados até então dizem respeito a textos escritos por autores e autoras cis, portanto, a representação das personagens parte sempre da visão deles e do contexto histórico em que escreveram, mas não há menção a qualquer texto de autoria trans. Essa observação nos induziu a analisar a invisibilidade da autoria trans como um dado a ser problematizado: a representação de personagens transgêneras em narrativas brasileiras tem sido, também, uma questão de gênero, neste caso, cisgênero.

Para dialogar com a hipótese que por ora levantamos, a contribuição de Amara Moira (aqui a Amara professora e crítica literária), nos parece de suma importância, pois ela representa a perspectiva trans sobre o tema. Em ensaio intitulado “Monstruoso corpo de delito: personagens transexuais na literatura brasileira” (2018MOIRA, Amara. “Monstruoso corpo de delito: personagens transexuais na literatura brasileira”. Suplemento Pernambuco. Recife, 10 de dez. de 2018. Disponível em: https://www.suplementopernambuco.com.br/artigos/2198-monstruoso-corpo-de-delito-personagens-transexuais-na-literatura-brasileira.html . Acesso em: 27 de abril de 2021.
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), publicado na versão online do Suplemento Pernambuco, Moira refaz o percurso trilhado por Fernandes, citando as obras mais antigas em que há registros de personagens trans, mas também analisa o canônico caso de Diadorim e o que ela chama de “trans em uma perspectiva política”. Apesar de também focar o ensaio em obras escritas por autores cisgênero, Amara Moira não perde a oportunidade de se referir à autoria trans:

Não se estranhe o tratamento masculino dado a mulheres trans em praticamente todas essas narrativas do século XX: só algumas biografias já das duas décadas finais escapariam a essa flutuação, flutuação por sinal reveladora do abalo que essas identidades causam e de o quão complexo é o percurso que, só lentamente, vai desgenitalizando as compreensões de gênero (inclusive as nossas próprias). (Moira, 2018MOIRA, Amara. “Transgressão da primeira autora trans”. Suplemento Pernambuco. Recife, 05 de fev. de 2018. Disponível em: https://suplementopernambuco.com.br/artigos/2041-transgress%C3%B5es-da-primeira-autora-trans.html . Acesso em: 27 de abril de 2020.
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, s.p.)

Apesar de não mencionar os nomes dos autores dessas biografias e de parecer relutante em considerá-las literatura, talvez pela classificação que ela mesma faz de autobiografia, Amara Moira lança luz sobre a contribuição da autoria trans nesse panorama de personagens.

Entretanto, é em outro ensaio, também para o Suplemento Pernambuco, que Moira escreve sobre a primeira autora trans do Brasil: Ruddy Pinho. Durante a década de 1980RUDDY, -. Eu, Rudy. Rio de Janeiro: Avenir, 1980., Ruddy publicou quatro livros: Eu, Ruddy (1980RUDDY, -. Eu, Rudy. Rio de Janeiro: Avenir, 1980.); O sabor do cio (1981RUDDY, -. O sabor do cio. Rio de Janeiro: Trote, 1981.); Quando eu passo batom me embriago (1983RUDDY, -. Quando eu passo batom me embriago. Rio de Janeiro: Trote , 1983.); Certos movimentos do coração (1988RUDDY, -. Certos movimentos do coração. Rio de Janeiro: Achiamé, 1988.). Ela seguiu publicando livros durante os anos 1990: Liberdade ainda que profana (1998RUDDY, -. Liberdade ainda que profana. Rio de Janeiro: Razão Cultural, 1998.); In...Confidências Mineiras e Outras Histórias (1999RUDDY, -. In...confidências mineiras e outras histórias. Rio de Janeiro: Razão Cultural , 1999.) e também nos anos 2000, Nem tão bela, nem tão louca (2007RUDDY, -. Nem tão bela, nem tão louca. Rio de Janeiro: Razão Cultural , 2007. ).

Moira divide a produção de Ruddy em duas fases: a primeira engloba toda a produção da década de 1980, quando a autora ainda não se reconhecia como mulher trans, mas já explorava os vislumbres de uma existência fora do padrão cisheteronormativo; e a segunda que se inaugura com o livro de contos In...Confidências Mineiras e Outras HistóriaRUDDY, -. In...confidências mineiras e outras histórias. Rio de Janeiro: Razão Cultural , 1999., onde Ruddy assume o seu corpo-trans e prepara o caminho para os seus relatos mais autobiográficos seguintes.

Na primeira fase é comum observar a confusão pronominal típica das outras narrativas de autoria cisgênera, uma vez que a própria autora desconhecia os termos para se referir a si mesma, e não se lia como travesti o que, na época, era simplesmente uma forma de se referir a homossexuais que se vestiam como mulheres: “Ruddy, nessa época, conhecia o termo travesti, mas o via não como identidade e, sim, como o simples vestir-se com roupas femininas, coisa que ela já fazia sem nem precisar de desculpas [...]” (MOIRA, 2018MOIRA, Amara. “Transgressão da primeira autora trans”. Suplemento Pernambuco. Recife, 05 de fev. de 2018. Disponível em: https://suplementopernambuco.com.br/artigos/2041-transgress%C3%B5es-da-primeira-autora-trans.html . Acesso em: 27 de abril de 2020.
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, s.p).

Nos textos publicados por Ruddy existem referências a padrões de beleza e classe social que atenuam a distância que Ruddy travava em relação às travestis. Vale ressaltar que a escritora fez fama e sucesso profissional como cabeleireira de celebridades e que, portanto, sua experiência trans se afastava sobremaneira das experiências travestis (aquelas representadas pela literatura de autoria cisgênera), o que, de certa maneira, serve para ilustrar o estigma de vulnerabilidade e violência que se instaura acerca da imagem da travesti e que reverbera até hoje no imaginário do senso comum. Apesar de viver rodeada por celebridades e de poder gozar de uma vida confortável, descrita em inúmeras viagens internacionais em seus relatos autobiográficos, existe algo que liga Ruddy às personagens de ficção representadas no panorama criado por Fernandes (2016FERNANDES, Carlos Eduardo Albuquerque. Um percurso pelas configurações do corpo de personagens travestis em narrativas brasileiras do século XX: 1960-1980. Tese (Doutorado em Letras). Universidade Federal da Paraíba, 2016. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/9301.
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): o passado cercado por violência e rejeição familiar.

O ensaio “Transgressões da primeira autora trans” (2018) revela Ruddy como uma escritora multifacetada que se aventurou por vários gêneros (poesia, crônica, contos), mas que só atualmente começou a ter sua obra descoberta. Essa constatação nos leva a crer em duas possibilidades que antes de serem opostas, se complementam: 1) o fato de ser a obra de Ruddy, como Moira aponta, inundada, em maior ou menor grau, de autobiografismo afasta os textos da autora de serem considerados Literatura (com inicial maiúscula para representar a ideia elitista muitas vezes sustentada pela academia); 2) o fato de ser a autora uma pessoa trans inviabiliza qualquer possibilidade de ser entendida como escritora em espaços (editoriais e acadêmicos) dominados pela cisgeneridade.

Ambas as implicações são correlatas quando observadas pelo prisma do gênero: uma pessoa trans escrevendo sobre si mesma não pode ser validada pelo regime cisgênero que controla quem pode fazer literatura e quem pode ser considerado escritor/escritora. É uma equação simples em que o denominador comum é a anulação das identidades trans e a invisibilidade das expressões artísticas que as cerceiam.

Outra possibilidade para esse apagamento talvez seja a categoria com que a crítica tem tratado a representação das identidades trans na literatura brasileira: a personagem. Do ponto de vista da teoria literária, a personagem representa uma persona diferente da persona do autor, um processo de seleção de dados do mundo empírico e a alocação desses dados em uma nova realidade que possibilite a criação dessa nova “pessoa de palavras”, para utilizar termos da estética do efeito, de Iser (2002ISER, Wolfgang. “Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional”. In: LIMA, Luiz Costa (org.). Teoria da Literatura em suas fontes, vol. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.). Ao escrever sobre si, a autoria trans, mesmo quando cria personagens como o faz Ruddy em In...Confidências Mineiras e outras históriasRUDDY, -. In...confidências mineiras e outras histórias. Rio de Janeiro: Razão Cultural , 1999., é acusada de não respeitar o distanciamento necessário no processo de criação literária, como se falar de si inviabilizasse o processo criativo do texto, ou o transmutar-se em personagem fosse menos literário.

Mas o que a leitura destes textos revela é justamente um trabalho criativo que borra os limites do gênero fazendo com que, muitas vezes, o leitor se questione sobre quem, de fato, escreve as narrativas. Em In...confidências mineirasRUDDY, -. In...confidências mineiras e outras histórias. Rio de Janeiro: Razão Cultural , 1999., por exemplo, Ruddy, em diversos contos, cria narradores e histórias que parecem ser completamente alheias à sua realidade, contudo, em outros, vislumbra-se o teor autorrepresentativo em que há claras referências à experiência do corpo-trans de um indivíduo que viveu todo esse processo quando ainda não havia palavras para determinar sua condição:

Por duas vezes tive de apelar seriamente pelo meu lado macho. Uma vez foi em um baile de carnaval no Canecão quando um senhor me agrediu, ao me interpelar passando a mão em minha bunda, por cima de um maiô dourado, todo bordado. [...]. Noutra vez, depois de já estar completamente adaptada ao meu lado mulher, fui resolver um problema no banco. O gerente, já meu conhecido, começou a me tratar como “mulherzinha burra”. Dei um soco na mesa e disse: - Já que o senhor está me ignorando e me tratando desse jeito, lembre-se do meu passado, me chame de senhor, e me dê a devida atenção e respeito. (RUDDY, 1999RUDDY, -. In...confidências mineiras e outras histórias. Rio de Janeiro: Razão Cultural , 1999., p. 35)

O fato de ser a autobiografia o gênero textual que geralmente está atrelado à produção trans faz com que a categoria “personagem” se torne uma flutuação analítica justamente pelo fato de os escritores e escritoras trans escreverem sobre si mesmos. Mas é necessário problematizar a taxonomia dos gêneros literários e analisar o processo de escrita de si como um procedimento ficcional no qual o estatuto da ficção, de acordo com a estética do efeito, também é utilizado. Escrever sobre si é também escrever sobre um outro eu transfigurado em palavras e, nesse ínterim, o processo de criação da personagem de ficção segue o mesmo padrão daquele utilizado nas narrativas escritas por autores cis, por exemplo.

A partir desses apontamentos, o apagamento da autoria trans dentro do escopo dos estudos literários estaria atrelado a questões de gênero: o gênero trans dos autores e das autoras e o gênero literário (autobiográfico) com o qual as experiências trans imprimem-se em texto. Esse “problema de gênero” revela que é necessário se pensar a autoria trans no nível da representatividade, e não simplesmente da representação, isto é, pensar esses textos como dispositivos de reescrita das identidades trans a partir da própria perspectiva trans, em um processo de autorrepresentação e de escrita de si.

A ausência de autores e autoras trans, mesmo quando o panorama é constituído por obras que, historicamente, estão fora do cânone brasileiro, demonstra que a produção de autoria trans sofreu e sofre um processo de apagamento comum às pessoas transgêneras. É sintomático que, socialmente, as travestis, transexuais e pessoas de gênero fluido têm sido invisibilizadas pela cisnormatividade e que, consequentemente, a produção artística própria desse grupo - incluída a literatura enquanto expressão de suas vivências - tenha sido igualmente invisibilizada.

Ainda sobre o padrão encontrado no que se refere à representação de personagens trans nos textos de ficção, bem como ao apagamento da autoria transgênera e de suas vivências literárias, gostaríamos de discutir as consequências da cisnormatividade e de como ela atua para reforçar a exclusão e a abjeção das pessoas trans.

Corpo-trans e violência: o problema da cisnormatividade

De maneira ampla, podemos entender a cisnormatividade como o regime que submete os corpos à relação direta entre órgão genital e gênero, colocando as pessoas cisgêneras (aquelas que tiveram seus gêneros atribuídos de acordo com as normas do pênis = masculino e vagina = feminino, e com eles convivem normalmente) em um patamar de superioridade em relação às pessoas transgêneras (que transicionam de gênero). Em outras palavras, a cisnormatividade funciona como uma gramática que regula como os corpos devem se comportar, tendo como parâmetro o discurso biológico da pretensa naturalidade e normalidade acerca do gênero.

Note-se que a desinência “normatividade” tende a criar critérios de exclusão no que se refere aos sujeitos que, de alguma maneira, estão fora do cistema1 1 Utilizaremos o termo “cistema” sempre que nos referirmos ao sistema cisgênero sob o qual as relações de gênero são comumente compreendidas na sociedade e em consonância com os usos sugeridos na dissertação de mestrado de Viviane Vergueiro Simakawa (2015) intitulada Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade, na qual a autora aponta a influência política que a cisgeneridade (e o cistema) exercem sobre os corpos e identidades de gênero desconformes. e quem está fora dele é, justamente, a transgeneridade e seus corpos-trans. Mas como a cisnormatividade atua para excluir esses corpos dissidentes? As discussões travadas na última sessão nos apontam uma resposta: por meio da violência.

As várias formas de violência que se observam nos contos e romances analisados no estudo de Fernandes (2016FERNANDES, Carlos Eduardo Albuquerque. Um percurso pelas configurações do corpo de personagens travestis em narrativas brasileiras do século XX: 1960-1980. Tese (Doutorado em Letras). Universidade Federal da Paraíba, 2016. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/9301.
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) são, quase totalmente, incitadas pela dicotomia cis x trans, desde a rejeição familiar, ao exílio para os centros urbanos e até os casos mais extremos como os assassinatos. É sempre a soberania da cisnormatividade que se impõe sobre a existência das personagens trans. Essa soberania é potencializada, nas décadas de oitenta e noventa, pelo advento da aids e sua atribuição à comunidade LGBT, em especial às travestis e transexuais.

As violências físicas e psicológicas representadas pelas personagens estão diretamente ligadas às performatividades de gênero que o corpo-trans desempenha. Queremos dizer com isso que existe uma relação entre violência e passabilidade, ou a falta de passabilidade. “Passabilidade” é o termo utilizado por algumas transfeministas para designar o corpo-trans cuja expressão de gênero (a maneira como vivem seus gêneros através das roupas, dos gestos, da aparência física etc.) se aproxima da matriz cisgênera, sendo assim, as personagens trans são sempre rejeitadas ou violentadas quando se percebe que elas não são “mulheres de verdade” ou quando suas expressões de gênero não convencem o padrão cisnormativo.

Essa questão nos leva a afirmar que a cisnormatividade está muito mais ligada às performances do corpo do que, de fato, ao gênero, isso porque, como foi dito, os casos de passabilidade não caem na malha do juízo cisnormativo. Quando pensamos em personagens transgêneras que vivem suas experiências de gênero fora do binômio masculino-feminino (aquelas que não fazem questão de parecerem mulheres extremamente femininas, ou que se identificam como gender fluid), percebemos que essas são, de fato, o alvo da violência cisnormativa.

Os romances da década de 1980 representam bem a marginalização das travestis; por não alcançarem o “corpo ideal”, aquele mais próximo da mulher cis, seus corpos são facilmente identificados enquanto corpos-trans, isto é, corpos que se utilizam de várias biotecnologias para expressarem suas performatividades. A performatividade das travestis nos anos 1980 foi se moldando, durante toda década de 1990 e anos 2000, ao ideal do corpo cisgênero, como sugere Benedetti (2005BENEDETTI, Marcos. Toda Feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.):

O ato de vestir-se com roupas de mulher é comumente designado nesse universo pelo termo êmico montação e montagem. A montagem é um processo de manipulação e construção de uma apresentação que seja suficientemente convincente, sob o ponto de vista das travestis, de sua qualidade feminina. (BENEDETTI, 2005BENEDETTI, Marcos. Toda Feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro: Garamond, 2005., p. 67)

Contudo, essa tendência tem encontrado resistência contemporaneamente em decorrência do ativismo transgênero, que, dentre outras coisas, prescreve que o corpo-trans pode ser lido e identificado como uma matéria em perene transformação sem, necessariamente, pagar tributo ao ideal da cisnormatividade:

O processo de transformação corporal de transexuais (e travestis) não ocorre de forma independente ou alheia a estas mudanças de referências e valores do corpo na contemporaneidade. As tensões cotidianas por que passam transexuais, na produção de “novos” corpos, devem ser também compreendidas a partir de suas dificuldades para atingir ou se chegar a um modelo ideal da “boa forma” feminina - uma feminilidade que pareça “natural”. (SILVA; LOPES, p. 31, 2014SILVA, Luís Augusto Vasconcelos; LOPES, Maycon. “Corpos híbridos e transexualidade: para além da dicotomia de gênero”. In: COELHO, Maria Thereza Ávila Dantas; SAMPAIO, Liliana Lopes (orgs.). Transexualidades: um olhar multidisciplinar. Salvador: EDUFBA, 2014.)

A violência como experiência diária parece ser, para as personagens trans, um ritual inevitável. Assim como a morte é uma certeza para quem se crê vivo, a violência é, para elas, a inexaurível consequência da ousadia em performatizar seus gêneros. Parece impossível desvirtuar a violência da vida dessas personagens, uma vez que elas precisam lutar pelo direito de ter um nome, por exemplo. Os textos literários revelam quase sempre seus nomes “verdadeiros”, seus nomes “de homem”, como se a nova identidade que criaram para si fosse apenas uma brincadeira, quando, na verdade, o nome é o critério imprescindível da existência. A negação do nome é, talvez, a primeira grande violência que tais personagens sofrem e é aí que se iniciam seus processos de abjeção.

Quando falamos em violência na experiência transexual, queremos evidenciar que, para além da forma física, as pessoas trans são, a todo momento, pressionadas pelo discurso violento da cisnormatividade e seus vários dispositivos de opressão, que vão desde o respaldo do discurso naturalista e biomédico, às discussões de determinadas alas de feminismos (como o feminismo radical, por exemplo).

A cisnormatividade instaura-se, dessa maneira, na estrutura que sustenta as relações de gênero sob a ótica da ciência médica e reverbera na tessitura social na forma da transfobia. O corpo-trans passa a ser o principal alvo dentro desse cistema, pois é nele que está impressa a dissidência do gênero, é esse corpo que funciona como a exceção da regra na gramática cisgênera. Nesse processo, o corpo-trans é brutalmente silenciado e até mesmo apagado quando se é negado o direito ao nome, por exemplo: “Um dos principais objetivos da violência cissexista é o apagamento das vozes das pessoas trans, de suas potencialidades, das suas ações por reconhecimento e por cidadania no processo civilizatório pelo qual passa a humanidade” (FERREIRA, 2014FERREIRA, Guilherme Gomes. “A prisão sobre o corpo trans: gênero e significados sociais”. In: JESUS, Jaqueline Gomes de [et al]. Transfeminismo: teorias e práticas. Rio de Janeiro: Metanoia, 2014., p. 108).

A negação da cidadania para o corpo-trans significa inscrever esse corpo fora da civilidade, isto é, as questões atreladas à experiência trans não são dignas nem de serem tratadas no âmbito social. Nesse sentido, a falta de humanidade com que se pensa o corpo-trans, acaba por estigmatizar ainda mais a existência desse corpo ao considerá-lo inumano.

Nessa discussão, o transfeminismo também desponta como ideia contrária à opressão cisnormativa e soma forças para uma concepção mais abrangente no que se refere à transgeneridade, ou seja, atua para desmistificar a ideia do transexual perfeito que, de acordo com Berenice Bento (2014BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Natal: EDUFRN, 2014.), é um produto do sistema médico imbuído das concepções naturalistas e biológicas acerca do gênero e da sexualidade: “Não existe uma forma mais verdadeira de ser mulher ou homem, mas configurações de práticas que se efetivam mediante interpretações negociadas com as idealizações do feminino e do masculino (BENTO, 2014BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Natal: EDUFRN, 2014., p. 127). A partir de uma ótica que tenha o indivíduo trans como referência é que se torna possível minar o cistema e reverter o local de abjeção e de violência com que o corpo-trans tem sido tratado.

Dessa maneira, o transfeminismo soma forças nessa empreitada contra a cisnormatividade que não só tem fundamentado a transfobia, como também tem reverberado, no próprio campo literário, a exclusão dos autores e autoras trans da discussão acerca de suas experiências estético-literárias. É também da alçada transfeminista a ideia de se compreender o corpo-trans em sua pluralidade de formas, uma concepção que engloba o corpo não cirurgiado, o corpo não hormonizado, o corpo que estampa em sua superfície o gênero fluido entre outras formas de transgeneridade.

Quando utilizamos os pressupostos transfeministas na leitura dos textos de autoria trans, percebemos diferentes nuances no que se refere à experiência da violência em relação aos textos escritos por autores cis. Nesse sentido, o próximo tópico busca relativizar e contrapor as narrativas criadas por escritores trans com as de autoria cis com o objetivo de discutir os limites entre a representação e a representatividade.

Representação e representatividade: contrapondo personagens

Observa-se o real da janela do ônibus, ou do apartamento, ou da torre mais alta do mundo e constata-se que este real é inapreensível. Por mais palavras que o dicionário comporte e por mais palavras novas que a urgência da vida nos obrigue a criar, parece impossível verter a realidade nesses signos linguísticos. É dessa incapacidade que nasce a representação. Representar é apresentar de novo, é apresentar de outra maneira aquilo que os olhos viram.

A arte é representação porque está o tempo todo re(a)presentando e buscando novas maneiras de traduzir o real. Nessa busca incansável, encontram-se diversas formas de reconstrução da realidade, por isso o conceito filosófico da verdade universal não encontra solo fértil nas paragens da arte.

A literatura, por sua vez, utiliza-se principalmente dos signos linguísticos para contestar verdades e para criar novas possibilidades de real. Em sua forma mais dura, a teoria da literatura, o conceito de mímesis está sempre atrelado ao de realidade. Realidade não como objeto-fim, mas como objeto-processo, isto é, como um percurso do texto entre a verdade e a ficção, entre o que se vive no mundo e o como se representa essa experiência em texto. Há a seleção dos dados empíricos e a realocação deles em novas formas de se ver o mundo, é o que nos diz a estética do efeito.

Para quem representa (o escritor, o pintor, o músico), a realidade é sempre um abismo que precisa ser transposto e a representação é a ponte atravessada sobre esse abismo. Nesse sentido, o artista possui um papel fundamental nesse processo: o de ressignificar as experiências do mundo. Não fosse a arte, o mundo seria como um paciente decrépito, incapaz de dizer de onde veio, quais seus laços afetivos e os desejos que o motivam.

A representação é, também, o álibi do escritor durante o seu processo criativo. É o que lhe permite criar vozes diferentes, universos diferentes, personas diferentes, pois, só sendo outro, o escritor é capaz de criar as outras formas de se ver o mundo. A representação é o reflexo no espelho que se cansa de imitar os gestos do seu criador e avança para o mundo de cá, entre cacos, para dizer: eis aqui a minha verdade. A verdade desse reflexo anarquista é o combustível da representação.

Quando falamos, anteriormente, que a violência é uma constante na representação das personagens transgêneras, isso significa que a maneira como diferentes escritores enxergaram as experiências de pessoas transgêneras no mundo foi sempre transpassada pela violência. Nesse sentido, a ficção literária também funciona como um termômetro social que, no caso específico das personagens analisadas, revela como as pessoas trans são, de certa maneira, tratadas na sociedade.

A representatividade também é representação. A diferença reside na autoria, na escritura do texto. A representatividade é muito mais um critério de demarcação cultural em que a estética se molda a novas formas de criar, funcionando como uma voz que, historicamente, tem sido silenciada, mas que agora pode falar e esse discurso está impregnado de uma verdade experienciada na pele. Apesar desse critério de valor sócio-histórico de quem fala, os critérios de representação continuam os mesmos: a seleção dos dados empíricos e a alocação desses dados em contextos diferentes para criar novas formas de dizer o real.

Quando falamos das escritoras e escritores transexuais que, por algum motivo, não estavam incluídos nem nos compêndios de literatura brasileira, nem em estudos mais recentes acerca das personagens trans, tocamos justamente no quesito da representatividade. Há motivos para que tais escritores tenham sido apagados da história da literatura e esses motivos estão diretamente ligados ao fato de serem eles pessoas trans, pois, como se percebe pela representação nos textos literários que, de certa maneira, reflete o imaginário social, o lugar dessas pessoas é na rua fazendo programa ou mendigando afeto e atenção de seus familiares após o abandono.

Há mudança de perspectiva quando evidenciamos os escritores transexuais, pois, de personagens de papel, eles passam a ser detentores do poder do verbo e, com isso, da criação. Ao analisar os textos desses escritores, nos deparamos com formas diferentes de representações nas quais a perspectiva patológica das identidades trans não é levada em conta, ou o julgamento pela vivência da experiência trans se dá de maneira diferente, mesmo que os temas mais comuns ainda sejam similares. Ao contrapormos as personagens criadas pelos autores cisgêneros com a escrevivência - para usar um termo de Conceição Evaristo - dos autores transexuais percebemos que as várias formas de violência também se fazem presentes em seus relatos.

Em Viagem Solitária (2011NERY, João W. Viagem solitária: memórias de um transexual 30 anos depois. São Paulo: Leya, 2011.), João W. Nery conta, 30 anos depois, seu processo de transição e sua experiência como o primeiro homem trans a realizar cirurgias de redesignação sexual. Seu relato foca nas memórias da infância e em sua já inadequação ao universo feminino, passando pela adolescência conturbada e os conflitos consigo mesmo e com sua família na primeira fase da vida adulta, na qual a exigência por um relacionamento se tornou um estorvo na vida do autor-personagem.

Diferentemente da maioria das personagens que compõem o panorama sugerido por Fernandes (2016FERNANDES, Carlos Eduardo Albuquerque. Um percurso pelas configurações do corpo de personagens travestis em narrativas brasileiras do século XX: 1960-1980. Tese (Doutorado em Letras). Universidade Federal da Paraíba, 2016. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/9301.
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), o eu de João W. Nery vem de uma família de classe média, bem estruturada financeiramente e com acesso à educação, inclusive superior. Aqui encontramos a primeira grande diferença entre João e as outras personagens: a situação socioeconômica. Vale salientar que, para a maioria das personagens trans, o único caminho possível para se ganhar algum dinheiro e sobreviver é através da prostituição. Isso esclarece o fato de serem tais personagens pertencentes a um grupo socioeconômico vulnerável para quem educação superior é algo inimaginável.

Durante a transição, João não pôde mais atuar como psicólogo ou como professor de psicologia, profissões que ele possuía quando ainda sustentava a identidade feminina, contudo, ao transicionar, ele tinha passabilidade, ou seja, sua estatura e o corpo adquirido com os longos anos de prática de natação deram a ele a aparência masculina necessária para conseguir emprego como taxista.

Amara Moira em E se eu fosse puta (2016MOIRA, Amara. E se eu fosse puta. São Paulo: Hoo Editora, 2016.) também nos conta sua história como travesti, utilizando seus relatos como modelo de sua escrevivência. Neles, a autora, que na época da publicação do livro era estudante de doutorado e professora, narra suas aventuras como travesti de programa e como chegou até as ruas. Não há muita diferença entre os causos representados nos textos cujas personagens são travestis de programa com o livro de Amara, o que muda são os detalhes, as descrições e o papel de protagonismo da narradora, mas o teor de medo, violência e humilhação de quem ganha dinheiro com o corpo ainda se fazem presentes.

Como exemplo de representatividade podemos citar a escolha do tipo de narrador. Ainda sobre o estudo de Fernandes (2016FERNANDES, Carlos Eduardo Albuquerque. Um percurso pelas configurações do corpo de personagens travestis em narrativas brasileiras do século XX: 1960-1980. Tese (Doutorado em Letras). Universidade Federal da Paraíba, 2016. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/9301.
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), nos romances e contos da década de 1980 e 1990, a maioria dos textos é escrita com narração em terceira pessoa. Esse tipo de narrador se distancia da história que conta e utiliza-se dos diálogos para construir as impressões das personagens. Já nos relatos de João W. Nery e de Amara Moira, a narração é em primeira pessoa, na qual o trabalho com a subjetividade parece estar mais em evidência. Subjetividade essa que, talvez, seja o que melhor qualifica a representatividade da autoria trans.

Parece improvável tentar conceituar o que seria a subjetividade, uma vez que a palavra, metalinguisticamente, tenta dar conta do inapreensível, mas, para Sartre (2015SARTRE, Jean-Paul. O que é subjetividade? Tradução de Estela dos Antos Abreu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. ), a subjetividade é uma objetividade internalizada, isto é, antes de ser algo puramente imaterial e inapreensível, a subjetividade diz respeito a maneira como o sujeito retotaliza a sua experiência social e, no caso da narrativa literária, como ele expressa essa retotalização em palavras. Dessa maneira, quando dizemos que o que caracteriza a escrita de autoria trans é a subjetividade, intentamos demonstrar que a experiência social do sujeito trans é determinante para a criação da subjetividade que se autorrepresenta em texto e que, portanto, essa subjetividade se difere, sobremaneira, da representação praticada pelos autores cisgêneros porque a eles falta justamente a experiência da retotalização. Sartre ainda fala sobre a capacidade que a arte possui de exprimir a realidade, ou seja, de como através da arte é dado ao artista a autorização de relatar a sua experiência, sua subjetividade: “Na arte, sentimos que a expressão deve ser total e que tudo o que existe na realidade deve ser exprimido: tudo o que existe na realidade não deve ser negado, mas, ao contrário, exprimido” (SARTRE, 2015SARTRE, Jean-Paul. O que é subjetividade? Tradução de Estela dos Antos Abreu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. , p. 68-69)

Ainda sobre a subjetividade, e de acordo com os estudos de Rosane Preciosa (2010PRECIOSA, Rosane. Rumores discretos da subjetividade: sujeito e escritura em processo. Porto Alegre: Sulina: Editora da UFRGS, 2010.), podemos comentar com mais propriedade o que observamos nos textos de Nery e Moira. O livro de Preciosa não conceitua a subjetividade, ele é muito mais um guia que tem como objetivo sugerir o que vem a ser a subjetividade, utilizando, para isso, a crítica à poesia de Waly Salomão e outros textos literários. Nesse emaranhado de incertezas, a autora traça um caminho em busca de um conceito de subjetividade:

Inicia seu projeto, decidido a se deixar transportar pelas sensações, por registros informes, desmemórias, e por seu faro animal, guiado por uma tosca escritura. Inquieto, pergunta-se o tempo todo o que a vida afinal quer com ele. Desempanturrado de si, libera-se para expressar todos e ninguém em especial. É apenas um alguém mutante convocado a receitar sua humanidade (...). Sentia como se fosse quase possível materializar o imponderável, o inquieto, o inabordável, toda a intensidade desse cotidiano em que transitava. (PRECIOSA, 2010PRECIOSA, Rosane. Rumores discretos da subjetividade: sujeito e escritura em processo. Porto Alegre: Sulina: Editora da UFRGS, 2010., p. 20)

A narração em primeira pessoa parece nos dar exatamente a sensação de inquietude e de registros desmemoriados. Inclusive a forma como Nery e Moira trabalham seus textos, recriando suas vivências a partir da memória, sugere essa escrita fragmentária na qual, muitas vezes, a cronologia dos fatos parece se perder em meio ao fluxo de consciência que caracteriza os textos. Além disso, essa “intensidade do cotidiano” vem à tona por meio de uma linguagem que não se permite podar, como se a materialização das experiências vividas pelos narradores dependesse de uma forma de dizer que sustentasse toda a violência que subscreve suas vidas:

Sentada no ônibus a caminho de casa, quase madrugada, noite vazia e fria, celular em mãos, é assim que ganham corpo meus relatos, é assim que ganham cor, ganham vida. O que acabei de viver, tudo ainda fresco na memória, a maquiagem borrada, gosto de camisinha na boca, o cheiro do cliente em meu rosto não importa o que eu faça, o seu cheiro de homem já tão diferente do meu - serão os hormônios? Palavras-chave marcantes vindo à tona assim que me ponho a escrever, dentes, línguas, dedos, lábios, uma puxando a outra meio que naturalmente, o texto saindo do encontro delas mas também desde antes, desde eu já na rua tramando amores, namorando olhares: travesti que se descobre escritora ao tentar ser puta e puta ao bancar a escritora. (MOIRA, 2016MOIRA, Amara. E se eu fosse puta. São Paulo: Hoo Editora, 2016., p. 19)

Esse é o relato que abre o livro de Amara Moira; nele podemos ver exatamente o que se disse sobre a subjetividade: uma escritura cujo mote é a própria experiência e essa experiência se traduz por meio de uma linguagem que tenta dar conta do inapreensível, utilizando-se, para tanto, de recursos como o fluxo de consciência, o diálogo interno e o devir de quem escreve.

Uma das grandes diferenças entre a produção de autoria trans e a dos demais autores cis reside justamente na maneira como a subjetividade se mostra, nesse mergulho vertiginoso do narrador em primeira pessoa e na possibilidade de terem as suas vozes ouvidas. A representatividade desempenha um papel importante quando nos permite visualizar outras nuances da experiência transgênera, nos fazendo desconstruir estereótipos.

Apesar da violência ser uma constante também nas narrativas de autoria trans, ela não se pauta em uma tendência patológica, isto é, não existe uma necessidade de culpabilização das identidades trans, a fim de colocá-las em patamar inferior em relação à cisgênera, como se o simples fato de ser uma pessoa trans fosse suficiente para justificar a violência sofrida pelas personagens. O que há nos relatos de Nery e Moira, é justamente a reflexão acerca da violência, a descrição do medo constante de ser descoberto e, inevitavelmente, os conflitos que circunscrevem a experiência da transição:

Aos 17 anos, deu-se a “segunda tomada da cicuta”. Denominei-a assim, porque foi quando me conscientizei de que havia gastado todos os meus recursos infrutiferamente. As crises existenciais iam gradativamente aumentando em frequência e intensidade. (...). Quase todas as noites, sonhava com cenas sexualizadas, onde tinha um enorme pênis e podia fazer tudo o que, acordado, não me era possível. Os sonhos eram tão nítidos que, geralmente, ao despertar, ainda me deliciava com a inebriante sensação de estar ejaculando. Chegava a levar a mão à genitália, ainda ao sabor da sonolência. Mas, ao verificar a cruel e inerte realidade, levantava-me assustado. Faltava muita coisa! (NERY, 2011NERY, João W. Viagem solitária: memórias de um transexual 30 anos depois. São Paulo: Leya, 2011., p. 60-61)

As reverberações sobre os conflitos internos que encerram a experiência de ser uma pessoa transexual, sobretudo no caso específico de João W. Nery, que a viveu na década de 1970, não aparecem com profundidade nos textos de autoria cis apontados por Fernandes (2016FERNANDES, Carlos Eduardo Albuquerque. Um percurso pelas configurações do corpo de personagens travestis em narrativas brasileiras do século XX: 1960-1980. Tese (Doutorado em Letras). Universidade Federal da Paraíba, 2016. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/9301.
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) e é aí que a subjetividade encontra terreno fértil para proliferar. A maioria das personagens que habita os textos das décadas de 1980 e 1990 não realiza esse exercício de consciência simplesmente porque suas identidades são tidas como doentias, inferiores, e o que resta a elas são as comiserações feitas pelo narrador em terceira pessoa.

Dessa maneira, a representatividade trans importa porque faz ampliar os paradigmas impostos pela cisnormatividade. Ela está atrelada também ao conhecimento teórico que visa ao entendimento e à transposição das novas perspectivas de se entender o corpo e o gênero, conhecimentos estes que se pautam nas teorias feministas interseccionais para construir a base do transfeminismo.

À guisa de esclarecimentos, em Transfeminismo (2015PRECIADO, Paul B. Transfeminismo. São Paulo: n-1 edições, 2015.), Paul B. Preciado escreve um texto anárquico no qual utiliza seu próprio corpo para teorizar sobre o assunto. Como pessoa trans, vivendo sua experiência de trans-homem, o filósofo traça críticas severas ao feminismo ao dizer que, desde o movimento da revolução sexual, as diversas vertentes do feminismo não visam outra coisa a não ser criar caixas envoltas em rótulos identitários:

Durante o século XX, o feminismo proliferou em um campo heterogêneo, com diversas teorias e estratégias: feminismo direitista, feminismo socialista, feminismo liberal, feminismo cristão. Mas, se juntássemos todos na mesma sala, eles acabariam se matando uns aos outros. Eles têm um problema político em comum: todos operam pela lógica de políticas identitárias. Eles naturalizam a noção de “mulheres” e, enquanto brigam pelo seu reconhecimento na esfera pública, tendem a normatizar o sujeito que querem libertar. (PRECIADO, 2015PRECIADO, Paul B. Transfeminismo. São Paulo: n-1 edições, 2015., p. 8-9)

A perspectiva transfeminista seria, então, um alargamento da compreensão do que é ser mulher e das leituras feitas acerca do gênero feminino. Preciado localiza o transfeminismo no agora, em uma inevitável busca pela implosão do modelo binário e cisnormativo.

No Brasil, o nome de Jaqueline Gomes de Jesus aparece como uma referência na discussão do transfeminismo. Segundo ela, o transfeminismo surge de uma demanda semelhante àquela que fez nascer o feminismo negro: discutir as práticas feministas tendo como norte uma especificidade de mulheres (no caso do feminismo negro, das mulheres negras e, no caso do transfeminismo, das mulheres trans e travestis). Para a autora:

O transfeminismo, algumas vezes chamado de feminismo transgênero, prolifera pela internet, anuncia-se em blogs e se confraterniza em redes sociais, e pode ser definido como uma linha de pensamento e de práticas feministas que rediscute a subordinação morfológica de gênero (como construção psicossocial) ao sexo (como biologia), condicionada por processos históricos, criticando-a como uma prática social que tem servido como justificativa para a opressão sobre quaisquer pessoas cujos corpos não estão conformes à norma binária homem/pênis e mulher/vagina, incluindo-se aí: homens e mulheres transgênero; mulheres cisgêneros histerectomizadas e/ou mastectomizadas; homens cisgêneros orquiectomizados e/ou “emasculados”; e casais heterossexuais com práticas e papéis afetivossexuais divergentes dos tradicionalmente atribuídos, entre outras pessoas. (JESUS, 2014JESUS, Jaqueline Gomes de . [et al.]. Transfeminismo: teorias e práticas. Rio de Janeiro: Metanoia , 2014., p. 6)

Significa dizer que o transfeminismo é mais uma intersecção do feminismo em que se busca entender e valorizar a especificidade da experiência trans feminina. Essas especificidades vão desde o pretenso privilégio masculino antes da transição, até a luta árdua pelo direito de ter suas identidades reconhecidas pela sociedade e pelo Estado, isto é, a luta pelo direito de existir e sobreviver em uma sociedade na qual a expectativa de vida de uma mulher trans ou travesti é em torno de 35 anos, segundo dados do site Cidadania Trans.

Sendo assim, podemos pensar o transfeminismo como um aparato teórico-metodológico que se debruça, especificamente, sobre a experiência transgênera fora da órbita do cistema e, quando observamos as narrativas de autoria trans sob esta ótica, podemos perceber diferenças no padrão representacional criado pelos autores cisgênero, como sugerem nossas conclusões a seguir.

Apontamentos finais

A violência física e psicológica, o abandono familiar, o movimento migratório que marca o processo de transição, o assassinato e o suicídio são alguns dos padrões observados nos textos analisados por Fernandes (2016FERNANDES, Carlos Eduardo Albuquerque. Um percurso pelas configurações do corpo de personagens travestis em narrativas brasileiras do século XX: 1960-1980. Tese (Doutorado em Letras). Universidade Federal da Paraíba, 2016. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/9301.
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) em seu estudo sobre a presença de personagens travestis em narrativas do século XX. Percebemos que alguns desses padrões repetem-se quando da leitura de textos de autoria trans, mas a forma como tais autores representam suas experiências em textos difere do modelo representacional adotado por autores cisgêneros.

Ao trazer para a discussão os textos de autoria trans, nosso propósito inicial foi o de tornar notável a produção de autores e autoras transgêneros, tendo em vista o apagamento que se observa na esfera dos estudos literários, o que acaba por ser um reflexo da abjeção social que as pessoas trans enfrentam cotidianamente. Quando falamos em dinamizar o cânone, nos referimos justamente à pouca expressividade de narrativas de autoria trans nos estudos que se comprometem em tomar a experiência trans enquanto objeto, e também da não-participação de autores e autoras trans no que chamamos de “off cânone”, espécie de cânone às margens do cânone oficial. Isso significa dizer que mesmo entre os autores não-canônicos, a ausência de escritores e escritoras transgêneros é sintomática de um silenciamento que se instaura para além da tessitura social.

A partir dessa constatação, os ensaios de Amara Moira, publicados no Suplemento Pernambuco em 2018MOIRA, Amara. “Transgressão da primeira autora trans”. Suplemento Pernambuco. Recife, 05 de fev. de 2018. Disponível em: https://suplementopernambuco.com.br/artigos/2041-transgress%C3%B5es-da-primeira-autora-trans.html . Acesso em: 27 de abril de 2020.
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, lançam luz sobre a existência de narrativas de autoria trans desde a década de 1980, o que nos permitiu inferir que a representação de personagens transgêneras na literatura brasileira passa, indisfarçavelmente, pelo crivo do gênero, isto é, antes mesmo de se pensar em qualquer juízo de valor atrelado à crítica literária, o apagamento da autoria trans revela-se como um produto da atuação do cistema. Esse dado não significa uma improdutividade ou incapacidade da crítica em abordar tais narrativas trans, antes, ele demonstra que o campo literário (o mercado editorial, o espaço da academia, as pesquisas etc.), de alguma maneira, reproduz o movimento de abjeção que tem apagado a voz das pessoas trans em diversos campos do saber.

Nesse sentido, a inclusão de autores e autoras trans no escopo da representação de personagens transgêneras revela outros padrões na criação destas personagens quando observadas pelo prisma da autorrepresentação, um dispositivo narrativo de representar a si mesmo, tendo como ponto de partida a própria experiência do autor. À semelhança do que sugere Conceição Evaristo (2005EVARISTO, Conceição. “Da representação à auto-representação da mulher negra na literatura brasileira”. Revista Palmares . Volume 1, ano 1, p. 52-57, agosto, 2005.) em ensaio dedicado à representação e à autorrepresentação da mulher negra na literatura brasileira, nosso intuito foi o de mostrar o discurso das pessoas trans a partir das narrativas ficcionais criadas por elas. Partindo dessa ideia, foi possível observar nuances que se afastam do modelo representacional de autores cisgêneros, principalmente no que se refere ao aprofundamento da subjetividade na construção do corpo-trans, à afetividade e à tendência em humanizar as personagens trans.

Em E se eu fosse putaMOIRA, Amara. E se eu fosse puta. São Paulo: Hoo Editora, 2016., Amara Moira trata o tema da prostituição sob uma ótica diferente da explorada pelos autores cisgêneros das décadas de 1980 e 1990. Se antes a prostituição existe como único meio possível de sobrevivência para as travestis, no relato de Amara Moira ela se coloca, inicialmente, como uma opção e como uma busca por aceitação. Ao declarar-se prostituta, professora, e doutoranda, e circulando alternadamente entre a pista e o espaço da academia, Moira destrincha a experiência de ser travesti de programa ao mesmo tempo em que se descobre escritora e, nesse processo, a autora apresenta outras nuances do universo da prostituição que, se em determinados pontos assemelham-se ao padrão apresentado pelas narrativas de autores cisgêneros, por outro lado revelam uma tendência em ressignificar o imaginário social acerca das travestis de programa quando aponta o cistema como o principal vilão. Compreender-se escritora e escrever sobre suas experiências está no cerne da questão da autorrepresentação, pois, ao fazer isso, a autora transfigura-se em personagem e nos oferece camadas profundas não exploradas anteriormente pelos autores cisgêneros.

Os relatos de Moira desconstroem a imagem da travesti violenta e desfazem o estigma que as relaciona diretamente à aids ao apontar os clientes, homens cis e heterossexuais, como os responsáveis pela desvalorização do corpo-trans prostituído e quando revelam serem eles, os clientes, os entusiastas da prática sexual sem preservativo. Ao denunciar o apagamento causado pelo cistema na tessitura social e revelar a hipocrisia que se observa na pista, E se eu fosse putaMOIRA, Amara. E se eu fosse puta. São Paulo: Hoo Editora, 2016. apresenta, ainda, a afetividade como um tema central. Se no ambiente da prostituição os clientes se esquecem da força motriz cisnormativa, fora dele, o corpo-trans volta a ser subjugado e deslegitimado, sendo assim, a autora questiona: quem ama a travesti? Essa pergunta retórica desmantela o discurso com o qual a identidade travesti tem sido construída (também nos textos literários) ao atribuir uma camada humana à experiência das travestis de programa.

Viagem solitáriaNERY, João W. Viagem solitária: memórias de um transexual 30 anos depois. São Paulo: Leya, 2011., de João W. Nery, também apresenta novidades em relação à representação de personagens transgêneras. A primeira delas diz respeito ao fato de ser João um homem trans, já que no século XX o levantamento feito por Fernandes (2016FERNANDES, Carlos Eduardo Albuquerque. Um percurso pelas configurações do corpo de personagens travestis em narrativas brasileiras do século XX: 1960-1980. Tese (Doutorado em Letras). Universidade Federal da Paraíba, 2016. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/9301.
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) revela que a representação de personagens trans era composta, basicamente, por personagens travestis. Além disso, percebemos que na autorrepresentação feita por João W. Nery os aspectos da infância e da angústia de ser transexual (do ponto de vista da disforia de gênero) são verticalizados de maneira a revelar recortes de subjetividades que tentam transferir aos leitores a desconformidade do corpo-trans.

A velhice de João vem acompanhada da paternidade e, consequentemente, da afetividade. À semelhança do que observamos em E se eu fosse puta, em toda a extensão de Viagem solitáriaNERY, João W. Viagem solitária: memórias de um transexual 30 anos depois. São Paulo: Leya, 2011., a questão da afetividade desponta como uma urgência, como se a humanidade do corpo-trans estivesse atrelada ao afeto, seja de um companheiro ou companheira, seja da aceitação familiar e, no caso de Nery, da paternidade. Ao concluir o ciclo de sua vida, passando pelo pioneirismo em ser o primeiro homem trans a realizar cirurgias de modificação corporal, até atingir a velhice e a experiência da paternidade, a autorrepresentação de João W. Nery nos mostra que existem outras realidades possíveis para as pessoas trans nas quais a morte prematura e a condenação do corpo-trans não são fatores determinantes.

Concluímos que a dimensão política que se instaura nas narrativas de autoria trans diz respeito, justamente, ao ímpeto de observar a existência do corpo-trans sob uma ótica que evite os estereótipos e os lugares-comuns com que comumente as personagens transgêneras são representadas nas narrativas ficcionais brasileiras, sobretudo naquelas cujos autores são homens cisgêneros. Dessa maneira, concluímos que entre a representação e a autorrepresentação existem diferenças acentuadas no que diz respeito à representatividade, pois se as narrativas criadas por autores cisgêneros reforçam estereótipos observados já na produção literária do século XX, as narrativas de autoria trans vão além, elas buscam uma modificação profunda na forma como o corpo-trans é compreendido socialmente, elas revelam o anseio em reescrever a história das identidades transgêneras tendo o transfeminismo como principal referência.

REFERÊNCIAS

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    Utilizaremos o termo “cistema” sempre que nos referirmos ao sistema cisgênero sob o qual as relações de gênero são comumente compreendidas na sociedade e em consonância com os usos sugeridos na dissertação de mestrado de Viviane Vergueiro Simakawa (2015SIMAKAWA, Viviane Vergueiro. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015. Disponível em: http://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/19685
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    ) intitulada Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade, na qual a autora aponta a influência política que a cisgeneridade (e o cistema) exercem sobre os corpos e identidades de gênero desconformes.

Editado por

Editor-chefe:

Gerson Roberto Neumann

Editor executivo:

Regina Zilberman

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2021
  • Aceito
    15 Jun 2021
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