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Lugar de fala em romances brasileiros

Talking place in brazilian novels

RESUMO

Este texto aborda o conceito de “lugar de fala” como possível marca de aproximação de alguns livros brasileiros de ficção publicados no século XXI. Passagem do ponto de vista ao “lugar de fala”?

PALAVRAS-CHAVE:
literatura brasileira; lugar de fala; século XXI

ABSTRACT

This text approaches the concept of “place of speech” as a possible mark of approximation of some Brazilian fiction books published in the 21st century. The passage from the point of view to the “place of speech”?

KEYWORDS:
brazilian literature; place of speech; 21st century

Procedimentos narrativos

Umberto Eco ironiza (1984ECO, Umberto. Viagem na irrealidade cotidiana. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984., p. 91) o procedimento do “estudioso medieval” que “finge sempre não ter inventado nada e cita continuamente autoridade precedente”. De Aristóteles a Agostinho, passando por outros nomes menos vistosos, sempre um sábio deve legitimar qualquer afirmação feita, pois “nada de novo deve ser sustentado a não ser fazendo com que apareça como que já dito por outrem que nos procedeu”. Essa necessidade ainda é maior quando se imagina que tudo já tenha mesmo sido dito pelos gigantes do pensamento e da pesquisa. Conforme Eco o “discurso medieval” pode parecer um “enorme monólogo, sem variações, porque todos se preocupam em usar a mesma linguagem, as mesmas citações, os mesmos argumentos”. Um leitor precipitado poderia ver nessa citação uma crítica ao discurso acadêmico atual. Um leitor atento verá uma contradição: uma possível crítica às legitimações por autoridade amparada na autoridade de Eco.

A intenção, porém, é mais modesta: avisar o leitor que ele poderá se deparar com o que já conhece ou com o que peca por falta de autoridade ou de pertinência. Se não for simplesmente pela repetição. De que se falará? De como contar uma história, de como torná-la interessante ou de como legitimá-la. Jean-Yves Tadié (1990TADIÉ, Yves. Le roman u XX e siècle. Paris: Belfond, 1990., p. 80) diz que ao longo do século XX o romance assume diversas formas alheias a qualquer regra, modelo ou filosofia. Tudo é possível desde que encontre um público que aplauda. Bom é o que o leitor classifica como tal ou o que a crítica recomenda ou consagra. Se crítica e leitor gostarem, o que é raro, tem-se uma reputação feita. De certo modo, vale a máxima de Guy Debord (1997DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997., tese 12): “O espetáculo não diz nada além de o que é bom aparece, o que aparece é bom”.

Na prática, francamente falando, para quem tenta interpretar, é muito mais complicado do que isso. Por que um livro funciona e outro não? Em certos casos as fragilidades são tantas, que não é difícil apontar as razões de um fracasso. Em outras situações talvez se devesse usar a modéstia dos físicos e dizer, como no título de um best-seller, “não tenho a menor ideia” (CHAM; WHITESON, 2019CHAM, Jorge; WHITESON, Daniel. Não tenho a menor ideia: um guia para o universo desconhecido. Tradução Marcello Neto e Anna Maria Sotero. Rio de Janeiro: Best Seller, 2019.). A perspectiva relativista coloca todo gosto como subjetivo, quase um acidente, assim como certas pessoas gostam de figo e outras não suportam essa fruta. O fato de que certas obras conquistem a adesão de milhares ou milhões ao longo do tempo, em lugares diferentes, complica essa redução tão simples e confortável.

Na atualidade, a se levar em consideração o senso comum, o gosto seria o resultado de operações de marketing, da influência das marcas editoriais, do renome prévio dos autores e de pesquisas sobre os interesses dos possíveis leitores. Tudo é possível. O contrário também. Famosos fracassam ou triunfam, anônimos vendem muito ou nada, grandes editoras fazem apostas e erram. É possível, contudo, pensar em termos de tendência: um autor famoso publicando por uma grande editora, como uma boa divulgação, terá mais chances de conquistar os críticos, a mídia e leitores? Provavelmente. Mas não necessariamente. Um dos elos da cadeia pode não aderir. Resta sempre uma questão: por que este e não aquele? Como ser o escritor certo, na hora certa, na editora certa e para o leitor certo?

Ponto de vista (interno)

Uma estratégia adotada por escritores, em certo momento, para tornar interessantes temas que podiam ser repetidos, foi mudar o ponto de vista. Trata-se de um dispositivo interno à narrativa. Por exemplo, aquilo que fez a escritora gaúcha Letícia Wierzchowski (2002WIERZCHOWSKI, Letícia. A casa das sete mulheres. Rio de Janeiro: Record, 2002) em A casa das sete mulheres. Ela contou a história da maior guerra civil brasileira, a Revolução Farroupilha (1835-1845), do ponto de vista feminino. Não apenas o ponto de vista da autora, mas o ponto da vista narrativo das personagens.

Esse procedimento pode ser encontrado ao longo da história da literatura. Um exemplo extremo e bem-sucedido é o de Franz Kafka em A metamorfose. Pode-se recuar no tempo em busca da primeira aplicação dessa ferramenta desconcertante. Se a ironia, como sustenta Tadié (1990TADIÉ, Yves. Le roman u XX e siècle. Paris: Belfond, 1990., p. 25), dominou a narrativa romanesca do século XX, será possível ironicamente perguntar o que chocou mais alguns espíritos: o narrador inseto ou a guerra dos homens contada pelas mulheres? Tempos de concepção e publicação diferentes. Não deixa de ser passível de observação que o narrador inseto tenha chegado primeiro. Seria o caso de ver nisso uma prova de que a literatura, apesar dos exemplos em contrário, esteve dominada pelo macho? Macho branco? Seriam as escritoras grandes exceções confirmando a regra?

Não é necessário multiplicar os exemplos para consolidar essa caricatura. Cada caso pode remeter a uma necessidade estética e a consequências na recepção. Apenas a passagem do narrador onisciente para a narrativa em primeira pessoa já povoa densas páginas de teoria e reflexão. Por um lado, há sempre a busca por originalidade, inventividade, criatividade. Por outro lado, há busca de legitimação. Uma pergunta foi ganhando corpo: quem narra? Dessa pergunta nasceram outras: por que narra? Como narra? Para quem narra? Sobre o que narra? Em oposição, é possível imaginar questões negativas: quem não narrava? Por que não narrava? O que não se contava? O ponto de vista não era só a vista de um ponto. Era também uma visão de mundo, uma cosmovisão, uma ideologia, uma lente, um foco.

Escolher um ponto de vista significa impor um recorte. A lente condiciona, posiciona, reflete, deforma, conforma, informa. O ponto de vista impõe e impõe-se como uma fonte discursiva. Não cabe sustentar aqui que ele seja autoritário ou excludente. Autores, afinal de contas, podem escolher narrar a partir de múltiplos pontos de vista para quebrar o monopólio narrativo de um único olhar ou do olhar único, embora afetado pelo olhar encoberto do escritor. O ponto de vista, com o devido perdão pelo clichê, muda tudo. Será que muda o autor? Será que ele se modifica sob a pressão da coerência psicológica do seu narrador personagem? Será que, ao final, há outro autor, ou o ato de escrever se dá em segurança máxima?

Deslocamento temático? Transbordamento. O desencobrimento dialógico não está blindado contra os monólogos e as digressões. Neste caso, monologar não deixa de ser um diálogo. O mesmo se dá na relação autor/narrador/personagem. Quem diz o quê a quem? Alterar o ponto de vista só pode significar um deslizamento interno para melhor capturar a complexidade do externo. Não há limite para essa experiência radical. O desafio parece ser sempre o mesmo: alcançar a verossimilhança. Ou a sua dispensa. Terá a mudança de ponto de vista se esgotado? Ou, como força dominante, há novos pontos de vista triunfantes: racial, de gênero? Há mudança de escala ou de substância? De quantidade ou de profundidade?

Flora Süssekind (1990SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.) explora a questão do “destino” na formação e desenvolvimento da literatura brasileira. Eterno retorno às origens:

O destino é indissociável: regressar à origem., descobrir o Brasil. O cenário também: natural, pitorescamente natural. Ficção numa nota só. Cabem variações, mas a base é uma só. Do Pero Vaz de Caminha condenado, enquanto personagem de Varnhagen, a redescobrir o Brasil e a renarrar a chegada de Cabral em folhetins seriados do Diário do Rio de Janeiro ao Júlio de O enjeitado, de Paula Brito, em busca dos seus ‘lugares de infância’ e do nome dos seus pais; do Augusto e da Carolina de A moreninha, à procura de velhas prendas, das crianças que foram e de uma história de amor passada, ao narrador do conto ‘Luísa’, de Pereira da Silva, tentando desvendar o segredo de um lugar ermo e solitário, temido por todos, às margens do Iguaçu, variam as trilhas da prosa de ficção brasileira (novela histórica, melodramática, de costumes ou de mistério) nas décadas de 30 e 40 do século XIX, mas repete-se a nota, a meta geográfica - a demarcação de um centro, de uma origem, de uma cena primitiva de descoberta.

A literatura brasileira do século XXI estaria reatando com o século XIX para dar um gigantesco salto à frente? Novo retorno às origens em busca desse destino interrompido, dessa cena primeva nunca descartada, desse cenário “natural”, agora sem artifícios coloniais, sem o pitoresco, com novas notas, outro diapasão, outra musicalidade, lugares da infância coletiva renarrados, com novos formatos, para adensar a descrição e revelar outras subjetividades? A principal característica desta nova literatura, pois toda literatura se quer nova, é a demarcação de um novo centro por meio de uma nova narrativa da descoberta, da colonização, da ruptura e da construção de uma identidade? Como hipótese: o salto estaria na ênfase em pontos de vista específicos (mulheres, negros, gays, indígenas), mas sobretudo na referência a um “lugar de fala”? Muda o narrado? Ou o autor?

Lugar de fala (externo)

Djamila Ribeiro (2017RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala?. Belo Horizonte: Letramento, 2017., p. 34) situa, apesar de admitir a origem imprecisa da expressão, “lugar de fala”. Mostra que não se trata de “afirmar as experiências individuais, mas de entender como o lugar social que certos grupos ocupam restringem oportunidades”. Em consequência, “ao ter como objetivo a diversidade de experiências, há a consequente quebra de uma visão universal”. Uma universalidade abstrata falsa que se apresenta como neutra. A base é esta: “Uma mulher negra terá experiência distintas de uma mulher branca por conta de sua localização social”. Portanto, “vai experenciar gênero de outra forma”. Logo, mesmo que possa não ser a compreensão da autora, a individualidade, como produto social, conta.

Jovens autores negros passaram a ter acesso a grandes editoras brasileiras dominadas historicamente por escritores brancos. É o caso de Itamar Vieira Júnior (Todavia, 2019VIEIRA JUNIOR, Itamar. Torto arado. São Paulo: Todavia, 2019.), Jeferson Tenório (Companhia das Letras, 2020TENÓRIO, Jeferson. O avesso da pele. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.) e José Falero (Todavia, 2020FALERO, José. Os supridores. São Paulo: Todavia, 2020.). No campo das humanidades é possível citar a própria Djamila Ribeiro (Companhia das Letras, 2019RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.). O mesmo pode ser dito em relação a outros segmentos tradicionalmente excluídos. Tome-se o caso de Aílton Krenak (Companhia das Letras, 2019KRENAK, Aílton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.). Estratégia de marketing ou abertura para uma nova sensibilidade social? Tomar essa transformação como simples operação de venda pode diminuir a importância do fato e colocar talentosos escritores na condição de simples explorados por editores atentos aos desejos do mercado. Por trás dessa leitura pode haver ressentimento ou um olhar racista. Afinal, brancos, mesmo com acesso a grandes editoras, não são considerados vítimas de um capitalismo cultural impiedoso. Publicar por uma grande editora é um negócio visto como bom para as partes envolvidas nas proporções de ganho em voga. Ignorar, no entanto, essa possibilidade poderá ser visto por alguém como ingenuidade. Mercado e mudança social se encontram para avançar?

Djamila Ribeiro alerta com base nas suas referências teóricas e de ativista: “O privilégio social resulta no privilégio epistêmico, que deve ser confrontado para que a história não seja contada apenas pelo ponto de vista do poder” (2019RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 65). Mas não é o ponto de vista interno que se altera. É o “lugar de fala”. Não basta que um escritor branco conte a história do ponto de vista de um personagem negro, indígena, trans. A grande mutação é externa. Não se dá em nível de narrador, mas de autor. A polêmica está instalada. O escritor Bernardo Carvalho, em entrevista em junho de 2021 para o jornal O Globo, afirmou: “Sou solidário às lutas identitárias. Quero mais autores e críticos negros. Defendia as cotas quando gente que hoje é aliada do movimento negro era contra. Mas a literatura é lugar de risco, não de fala”1 1 Bernardo Carvalho: “Literatura é lugar de risco, não de fala. Entrevista a Juan de Souza Gabriel em 24 de junho de 2021. https://oglobo.globo.com/cultura/bernardo-carvalho-literatura-lugar-de-risco-nao-de-fala-25074088. . O que isso pode significar?

Talvez o mais talentoso escritor dessa nova safra, José Falero, oriundo da periferia pobre de Porto Alegre, prefere uma abordagem crua sobre os diferentes fatores capazes de explicar as oportunidades surgidas para os grupos sociais excluídos: “Tem um fator que é a grana. Tem uma demanda reprimida por esse tipo de literatura. Não são só essas pessoas que já leem, mas também pessoas que não veem muita graça na literatura e que podem ser atraídas por essas obras”2 2 Entrevista a Juremir Machado da Silva. Porto Alegre: Correio do Povo, 17 de abril de 2021, p. 4-5. . Itamar Vieira Júnior, multipremiado por Torto Arado (2019VIEIRA JUNIOR, Itamar. Torto arado. São Paulo: Todavia, 2019.), procura reservar ao autor a máxima liberdade de criação, não dando ao “lugar de fala” soberania sobre a autonomia autoral. As protagonistas do seu romance consagrado são mulheres: “A literatura é esse lugar da alteridade. A gente vive a vida do outro”3 3 Entrevista a Juremir Machado da Silva. Porto Alegre: Correio do Povo, 23 de setembro de 2020, p. 2. . Essa ideia, segundo Luiz Maurício Azevedo, já não pode ser usada: “Esse exercício se perdeu na literatura. A possibilidade de eu experimentar o que não sou, de usar a literatura para mostrar o novo mundo já não está mais disponível.”4 4 Entrevista a Juremir Machado da Silva. Porto Alegre: Correio do Povo, 5 de fevereiro de 2021, Caderno de Sábado, p. 4-5.

Jeferson Tenório explodiu com O avesso da pele (Companhia das Letras, 2020TENÓRIO, Jeferson. O avesso da pele. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.). Estreou com O beijo na parede (Sulina, 2013TENÓRIO, Jeferson. O beijo na parede. Porto Alegre: Sulina, 2013.). O último está em linha de continuidade temática com o primeiro. Por que este, embora em sexta edição, não fez tanto sucesso midiático, de crítica e de público? O peso do selo editorial é determinante mesmo junto a um público que tende a se ver como no exemplo de autonomia de escolha e gosto? A marca importa? Quem publica influencia o destino da obra? Ou há uma evolução perceptível entre os dois livros de Jeferson Tenório, separados por um intervalo de sete anos? A questão do racismo parece mais definida em O avesso da peleTENÓRIO, Jeferson. O avesso da pele. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.. Tenório desejava que o leitor “passasse por essa epiderme da pele e chegasse então no avesso”, “que é o que eu de fato queria discutir”5 5 Entrevista a Juremir Machado da Silva. Porto Alegre: Correio do Povo, 10 de outubro de 2020, p. 2. .

Conceição Evaristo (2020EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Rio de Janeiro: Pallas, 2020.) constata com a legitimidade das suas lutas e textos: “Para os homens ainda é um pouco mais fácil nesse campo (...). O trabalho delas [das mulheres] é muito menos veiculado embora elas estejam par a par com eles”6 6 Entrevista concedida a Juremir Machado da Solva. Publicada em 10 de abril de 2021. Caderno de Sábado, Correio do Povo, p. 4-5. . Djamila Ribeiro (2017RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala?. Belo Horizonte: Letramento, 2017., p. 18) questiona o uso do termo “identitário” para caracterizar ativistas: “Pessoas que se consideram progressistas se utilizando desse tipo de ‘crítica’ para pessoas ligadas a movimentos negros, feministas, LGBTT, certo?” O termo reduz enquanto se apresenta como descritivo. A identidade não é fechada nem definitiva.

Renascimento do autor

O que está em jogo? A luta pelo controle das narrativas e dos seus instrumentos de validação. Ampliação do campo de luta. Não mais uma questão interna (como narra), mas sobretudo uma questão externa (quem narra ou quem controla o narrador interno). Mais do que isso: onde narra. A legitimação do narrado dá-se também pelas circunstâncias do autor. Legitimação pelo “lugar de fala”, pela experiência vivida, pelo conhecimento de causa, pelo gênero, pela “raça”, pelo percurso existencial, pela biografia, pelo trajeto. Fica subentendido que esse narrado tem algo de depoimento, de autobiográfico. Tem-se uma luta pela ocupação dos principais dispositivos de difusão e consagração da arte. No caso, a publicação em editoras como a Companhia das Letras. Impõe-se a visão de Pierre Bourdieu (1992BOURDIEU, Pierre. Les règles de l’art. Genèse et structure du champ littéraire. Paris: Seuilm, 1992.): a arte como espaço de disputa, conflito e disputa pelo controle do “campo”.

Pierre Bourdieu definiu campo (1997BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão: seguido de "A influência do jornalismo" e "Os jogos olímpicos". Rio de Janeiro: Zahar, 1997., p. 57):

Um campo é um espaço social estruturado, um campo de forças - há dominantes e dominados, há relações constantes, permanentes, de desigualdade, que se exercem no interior desse espaço - que é também um campo de lutas para transformar ou conservar esse campo de forças. Cada um, no interior desse universo, empenha em sua concorrência com os outros a força (relativa) que detém e que define sua posição no campo e, em consequência, suas estratégias.

A grande revolução do momento é a movimentação dentro do campo literário brasileiro: “dominados” ocupam, enfim, lugar de destaque nas principais máquinas de consagração do país. As editoras não agem, antes de tudo, por consciência social. São empresas que buscam o lucro. Podem surtir situações curiosas: o excluído ser editado pelo banqueiro. Entre os acionistas da Todavia está Alfredo Setúbal, ligado ao banco Itaú7 7 Cf. https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/03/1865386-alfredo-setubal-do-itau-e-investidor-por-tras-de-nova-editora-literaria.shtml . Não se trata de ter pruridos ou de condenar essa vinculação do “marginal” ao establishment. Nem sequer de condenar essa apropriação rentável da contestação pelo sistema. A perspectiva é consequencialista. Vale o melhor resultado para todas as partes envolvidas. Os autores jogam o jogo.

Há estratégias diferentes com resultados diversos. Luiz Maurício Azevedo e Fernanda Bastos escolheram criar uma editora, a Figura de Linguagem, situada em Porto Alegre, para abrigar essas narrativas negras ou que convergem para esse imaginário. O catálogo chama a atenção pela qualidade8 8 Cf. http://www.editorafiguradelinguagem.com/ . O preço a pagar é a menor ocupação de espaços de mídia e de visibilidade. A força das estruturas e das marcas impõe-se. O mesmo vale para Luiz Maurício Azevedo como autor. Ao privilegiar essa estratégia de autonomia, recebe menos atenção das instâncias de legitimação. Também ele, porém, recorre ao artifício da ampliação da sua visibilidade publicando em outras editoras, o que fez com Estética e raça (Sulina, 2021AZEVEDO, Luiz Maurício. Estética e raça: ensaios sobre a literatura negra. Porto Alegre: Sulina, 2021.). A Sulina, contudo, é uma instância intermediária, como um clube de futebol formador de jogadores que se destacando são adquiridos por clubes maiores. Foi o que se deu com Jeferson Tenório. Nada de novo no front. Sempre foi assim.

Em tempos de conexão global, no qual a figura do distribuidor tende a desaparecer, e talvez também lamentavelmente as livrarias, ainda deveria ser assim? A relação comercial dá-se cada vez mais entre a editora e o leitor através de um site de vendas. Por que a marca editorial conta tanto? Pela seleção de textos que supostamente promove? Pela avalição rigorosa do que publica? Pelos contatos que possibilita com a mídia e com o mundo acadêmico? Pela força que exerce sobre as premiações? Pelo fascínio que produz sobre todos os elos da cadeia produtiva literária? Pelo prestígio acumulado? Pelas relações de lealdade e parceria que constrói? A marca distingue, posiciona, legitima, valoriza, confirma, alavanca. Não é raro que um livro, publicado por uma pequena editora, seja ignorado por todos. Relançado por uma grande editora, porém, pode transformar-se em sucesso.

Contar de novo

Há uma mutação em curso. Excluídos ocupam espaços antes reservados aos donos do “campo”. O autor, que deveria desaparecer com a publicação da obra, renasce como fator de afirmação do narrado. Cada um escolhe uma estratégia para evoluir dentro da estrutura de modo a alcançar lugares mais destacados e rentáveis em termos financeiros ou de prestígio na carreira. A busca pela origem, destacada por Flora Süssekind, ganha um novo sentido ou é atualizada, pois se trata, como em Torto arado (2019VIEIRA JUNIOR, Itamar. Torto arado. São Paulo: Todavia, 2019.), de contar novamente a história - essa história, ou essas histórias - que foi contada pelo colonizador, pelo homem branco, como autor e narrador, ou como autor escondido atrás de personagens que não lhe correspondiam ideologicamente.

Se, como quer Bernardo Carvalho, a literatura é lugar de risco, há o risco de não se conseguir a legitimação se não se tiver “lugar de fala” pertinente para o narrado. Mulheres negras têm mais propriedade para contar histórias de mulheres negras. Se Itamar Vieira Júnior e Jeferson Tenório destacam a autonomia da arte, e se Madame Bovary, concepção do homem Flaubert, não deixa esquecer que o artista pode transfigurar e transfigurar-se, colocando-se no lugar do outro, Luiz Maurício Azevedo não deixa de ter razão ao destacar que certas possibilidades não estão mais disponíveis. Ou, em todo caso, estão sob suspeita de inverossimilhança.

A grande revolução literária do século XXI é o ressurgimento do autor. Não basta, no entanto, ter “lugar de fala” para saber contar uma história capaz de conquistar um público e obter o selo do reconhecimento. Os autores citados aqui já demonstraram poder narrativo, coloquialmente chamado de talento, para ocupar as posições que duramente conquistaram. Nem por isso é possível ignorar as restrições estruturais: por que Conceição Evaristo ainda não tem seus livros publicados pelas grandes máquinas editoriais do país? Por que ela não foi eleita para a Academia Brasileira de Letras? Por que o sistema não examina a qualidade das obras independentemente de quem as publica? Se há abertura de espaço para os anteriormente recusados, há também, como sempre, concomitantemente, a violência do secular racismo estrutural. O paraíso é bem longe daqui.

Cidadela tomada

Para o bem da arte e da sociedade, com certa liberdade metafórica no reino acadêmico da pretensa objetividade, a cidadela do poder literário branco está sendo tomada. Caiu Constantinopla. A diversidade invade as grandes editoras. Alguns bastiões ainda resistem. A grande mudança de mentalidade e imaginário em curso arrombou as portas das fortalezas do gosto. As premiações literárias também se curvam. Não seria talvez impertinente dizer que as infiltrações conseguiram minar o terreno durante tanto tempo quase impermeável dos padrões dominantes. O universalismo abstrato, esse disfarce dos privilégios com local e data, agoniza.

Os donos do poder, contudo, sabem entregar os prelos para não perder os seus castelos. Não importa. Se ficam com o lucro, são obrigados a repartir os demais ganhos. A criatividade dos “bárbaros” avança para “civilizar” a “civilização” congelada no tempo das barbáries. Estilos novos, narrativas novas, narradores novos. Outras falas, outros lugares, outras origens, outros pontos de partida. Agora quem conta a história é quem durante muito tempo foi submetido pelos donos das máquinas de contar as histórias pelo olhar dos vencedores, dos colonizadores, dos invasores de velhos mundos, que rotulavam de novos mundos para deles se apropriar.

A conquista é grande, até não faz muito não passava de mera utopia. Pode ser vista agora, no limite, como uma deliciosa vingança ou uma astúcia inconsciente: tomar o coração das engrenagens difusoras de imaginários, ainda que pagando por isso o preço desigual da divisão dos ganhos, para cravar a bandeira da vitória em território secularmente interditado por códigos não ditos capazes de tornar invisíveis os diferentes e diferentes os iguais. Nunca se sabe quando a imaginação tomará o controle e obrigará a razão a curvar-se diante de um enredo mais engenhoso e irredutível à lógica da demonstração. Seria isso parte do que Jean Baudrillard chamava de estratégias fatais (1996BAUDRILLARD, Jean. As estratégias fatais. Tradução Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.)? Fatais para quem? Para o sistema, seja o que ele for, certamente. Fim de um monopólio, de uma leitura, de um padrão, de um controle da narrativa. Um espírito cético questionará? E Machado de Assis? E Lima Barreto? A resposta pode estar nas trajetórias desses gigantes. Como dizia Bourdieu, já citado, cada um “empenha em sua concorrência com os outros a força (relativa) que detém e que define sua posição no campo e, em consequência, suas estratégias”. O resto pode ser sempre recontado.

Referências

  • AZEVEDO, Luiz Maurício. Estética e raça: ensaios sobre a literatura negra. Porto Alegre: Sulina, 2021.
  • BAUDRILLARD, Jean. As estratégias fatais Tradução Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
  • BOURDIEU, Pierre. Les règles de l’art Genèse et structure du champ littéraire Paris: Seuilm, 1992.
  • BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão: seguido de "A influência do jornalismo" e "Os jogos olímpicos". Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
  • CHAM, Jorge; WHITESON, Daniel. Não tenho a menor ideia: um guia para o universo desconhecido. Tradução Marcello Neto e Anna Maria Sotero. Rio de Janeiro: Best Seller, 2019.
  • DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
  • ECO, Umberto. Viagem na irrealidade cotidiana Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
  • EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio Rio de Janeiro: Pallas, 2020.
  • FALERO, José. Os supridores São Paulo: Todavia, 2020.
  • KRENAK, Aílton. Ideias para adiar o fim do mundo São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
  • RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017.
  • RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
  • SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
  • TADIÉ, Yves. Le roman u XX e siècle Paris: Belfond, 1990.
  • TENÓRIO, Jeferson. O avesso da pele São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
  • TENÓRIO, Jeferson. O beijo na parede Porto Alegre: Sulina, 2013.
  • VIEIRA JUNIOR, Itamar. Torto arado São Paulo: Todavia, 2019.
  • WIERZCHOWSKI, Letícia. A casa das sete mulheres Rio de Janeiro: Record, 2002
  • 1
    Bernardo Carvalho: “Literatura é lugar de risco, não de fala. Entrevista a Juan de Souza Gabriel em 24 de junho de 2021. https://oglobo.globo.com/cultura/bernardo-carvalho-literatura-lugar-de-risco-nao-de-fala-25074088.
  • 2
    Entrevista a Juremir Machado da Silva. Porto Alegre: Correio do Povo, 17 de abril de 2021, p. 4-5.
  • 3
    Entrevista a Juremir Machado da Silva. Porto Alegre: Correio do Povo, 23 de setembro de 2020, p. 2.
  • 4
    Entrevista a Juremir Machado da Silva. Porto Alegre: Correio do Povo, 5 de fevereiro de 2021, Caderno de Sábado, p. 4-5.
  • 5
    Entrevista a Juremir Machado da Silva. Porto Alegre: Correio do Povo, 10 de outubro de 2020, p. 2.
  • 6
    Entrevista concedida a Juremir Machado da Solva. Publicada em 10 de abril de 2021. Caderno de Sábado, Correio do Povo, p. 4-5.
  • 7
    Cf. https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/03/1865386-alfredo-setubal-do-itau-e-investidor-por-tras-de-nova-editora-literaria.shtml
  • 8
    Cf. http://www.editorafiguradelinguagem.com/

Editado por

Editor-chefe:

Rachel Esteves Lima

Editor executivo:

Regina Zilberman

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    24 Set 2021
  • Aceito
    10 Nov 2021
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