Acessibilidade / Reportar erro

A invisibilidade do tradutor: ofício, profissão e gestos de um artífice

The translator’s invisibility: craft, profession and gestures of a craftsman

RESUMO

Neste artigo, reflito sobre a “invisibilidade do tradutor”, denunciada por Lawrence Venuti (1995), apontado os limites da estrangeirização do texto traduzido como estratégia ética para dar visibilidade ao tradutor. Para isso, faço uma distinção entre a profissão e o ofício do tradutor para circundar sua situação, seus gestos, a origem de sua invisibilidade e de que maneira poderíamos torná-lo visível ou reconhecível para a comunidade. Com base no trabalho do sociólogo e historiador estadunidense Richard Sennett (2013), busco compreender o tradutor como um “artífice”, associando essa invisibilidade à degradação do fazer manual, em uma concepção meramente mecânica. Finalmente, com Paulo Henriques Britto (2012), sugiro uma solução possível (não a única), com base na visibilidade do ofício para a valorização da profissão de tradutor.

PALAVRAS-CHAVE:
Tradutor; Invisibilidade; Profissão; Artífice

ABSTRACT

In this article, I reflect on the “invisibility of the translator”, denounced by Lawrence Venuti (1995), pointing out the limits of foreignization of the translated text as an ethical strategy to give visibility to the translator. For this, I make a distinction between translation as a profession and as a craft to circumvent the translators’ situation, their gestures, the origin of their invisibility and how we could make them visible or recognizable to the community. Based on the work of the American sociologist and historian Richard Sennett (2013), I seek to understand the translator as a “craftsman”, by associating this invisibility to the degradation of manual work, in a merely mechanical conception. Finally, with Paulo Henriques Britto (2012), I try to suggest a solution (not the only one), based on the visibility of the craft for the appreciation of the translators’ profession.

KEYWORDS:
Translator; Invisibility; Profession; Craftsman

O conteúdo da caixa de Pandora pode efetivamente tornar-se muito menos assustador; podemos alcançar uma vida material mais humana, se pelo menos entendermos como são feitas as coisas.

Richard Sennett, O artífice.

A presente reflexão adentra o problema colocado pela expressão empregada por Lawrence Venuti - “a invisibilidade do tradutor” - para denunciar a situação de não reconhecimento profissional do tradutor. A meu ver, é preciso ir além da fórmula pronta, dessa condenação sem apelo, pois repetida exaustivamente: a famosa “invisibilidade” tornou-se quase que uma elegia sobre sua falta de valorização, um estribilho para lamentar essa condição de não reconhecimento. O canto aqui acaba por encobrir a questão da situação da figura do tradutor em relação ao seu trabalho. Proponho silenciá-lo, por um breve momento apenas, a fim de analisarmos essa sentença final.

Sugiro, para talvez ir além nesse debate, ao menos para além de uma condenação sem apelo à invisibilidade, cindir a atividade do tradutor em duas facetas: a profissão, que diz respeito a questões legais, contratos, sindicatos, práticas do mercado e políticas editoriais, e o ofício, ligado a um conhecimento e um savoir-faire, que envolve questões prático-reflexivas e éticas. Fazer essa distinção parece-me imprescindível para circundar sua situação, seus gestos, uma possível origem de sua invisibilidade e de que maneira poderíamos revertê-la: tornar o tradutor visível ou reconhecível para a comunidade. A compreensão dessa diferença possibilitaria evidenciar, por um lado, que o ofício do tradutor é composto de uma poiesis, para, em seguida, analisar de que maneira a visibilidade do ofício poderia visibilizar a profissão.

Com base no trabalho do sociólogo e historiador estadunidense Richard Sennett (2013SENNETT, Richard. O artífice. Tradução de Clóvis Marques. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2013. ), busco assim compreender o tradutor com um “artífice”, o que me permite realocá-lo historicamente numa categoria cujo ofício possuía, no período arcaico grego, uma posição privilegiada, que foi sendo desvalorizada ao ponto de se considerar a tarefa dos artífices, já no período clássico, como meramente mecânica. Busco, portanto, associar essa invisibilidade à degradação do fazer manual. A relação com o que geralmente se pensa sobre a tradução parece-me clara: é frequentemente vista como uma atividade mecânica. Identificar o momento e o motivo dessa queda talvez possibilite, ao descortinar seu ponto de inflexão, melhor entender de que maneira e onde focalizar nossos esforços para evidenciar a complexidade do gesto do tradutor e apontar sua importância para a comunidade. Diante desse panorama, pergunto-me: Tratar-se-ia de um fenômeno homogêneo? Estrangeirizar o texto de chegada seria realmente eficiente para que o leitor se dê conta de que não foi originalmente escrito na sua língua materna? É possível estrangeirizar qualquer texto literário em detrimento do projeto de tradução e do público- alvo?

Lawrence Venuti: the translator’s invisibility.

Quando Venuti aborda a ideia de invisibilidade, refere-se a dois fenômenos relacionados: a) O leitor que aborda a tradução como se esta houvesse sido originalmente escrita na sua língua materna, o que seria o resultado de um efeito de transparência no próprio discurso; b) o critério de que a boa tradução deva produzir um texto cuja leitura seja fluente, o que elimina as peculiaridades linguísticas ou estilísticas, focando sobretudo o sentido do texto de partida, resultando numa transparência, na sensação de se estar lendo um original na língua materna. O efeito de transparência camuflaria as intervenções cruciais do tradutor. Venuti chega à conclusão de que quanto mais fluente é a tradução, mais invisível se torna o tradutor e, segundo ele, mais visível o autor do texto estrangeiro (VENUTI, 1995VENUTI, Lawrence. The translator’s invisibility: a history of translation. New York: Routledge, 1995. 344 p.).

O texto (traduzido) fluente é formado de características tais como uma sintaxe linear, um sentido unívoco e linguagem atual, que emprega - no caso das culturas britânica e norte-americana - o inglês padrão e evita polissemia, arcaísmos, gírias, jargões, mudanças abruptas de tom ou dicção e outras soluções que chamem a atenção para a materialidade da língua, para a opacidade das palavras.

Venuti argumenta que a invisibilidade do tradutor, portanto, é em parte um efeito estranho de sua manipulação da língua, um autoaniquilamento que resulta do próprio ato da tradução (VENUTI, 1995VENUTI, Lawrence. The translator’s invisibility: a history of translation. New York: Routledge, 1995. 344 p.). Legalmente, o tradutor estaria subordinado ao autor, a uma visão romântica da autoria. Uma metafísica platônica emergiria do individualismo romântico para interpretar a tradução como a cópia de uma cópia, ditando uma estratégia de tradução na qual o efeito da transparência máscara as mediações entre e dentro da cópia e do original, eclipsando o trabalho do tradutor com uma ilusão de presença autoral, reproduzindo a marginalidade cultural e a exploração econômica que a tradução estaria sofrendo (VENUTI, 1995VENUTI, Lawrence. The translator’s invisibility: a history of translation. New York: Routledge, 1995. 344 p.). A estratégia de fluência que ele tanto crítica e que, a seu ver, predomina no sistema cultural anglo-americano, busca apagar a intervenção do tradutor no texto traduzido e anula a diferença linguística e cultural do texto estrangeiro. Este é reescrito no discurso transparente que predomina na cultura receptora e é revestido de valores, crenças e representações sociais dessa cultura. O pensador norte-americano afirma assim que, no processo de reescrita, a busca da fluência realizaria um trabalho de aculturação que domestica o texto estrangeiro, tornando-o inteligível (no sentido de acessível, familiar) para o leitor do texto traduzido, propiciando-lhe a experiência narcisista de reconhecer a sua própria cultura em um Outro cultural, em uma atitude imperialista. Para contrapor-se a ela, Venuti (1995) propõe o recurso à “fidelidade abusiva”, que implica uma rejeição da fluência que domina a tradução contemporânea em prol de uma estratégia oposta, de resistência, que impede o efeito ilusionista de transparência no texto traduzido e torna visível o trabalho do tradutor, que tem função política e cultural, e ajuda a preservar a diferença linguística e cultural do texto estrangeiro ao produzir traduções estranhas, pouco familiares, que demarcam os limites dos valores dominantes na cultura da língua-meta e que evitam que esses valores promovam uma domesticação imperialista do Outro.

Segundo o tradutólogo estadunidense, a estrangeirização do texto traduzido evitaria que o leitor tenha a sensação de estar lendo um texto originalmente escrito em sua língua materna. Assim, uma vez o estranhamento provocado no leitor, este identificaria o texto como sendo uma tradução e, por consequência, reconheceria o trabalho do tradutor. Para além da questão do reconhecimento, a estrangeirização seria um ato de “resistência contra o etnocentrismo e o racismo, o narcisismo cultural e o imperialismo, no interesse das relações geopolíticas democráticas” (VENUTI, 1995VENUTI, Lawrence. The translator’s invisibility: a history of translation. New York: Routledge, 1995. 344 p., p. 20). Mas seria assim tão simples?

Paulo Henriques Britto, em seu livro A tradução literária, questiona a relação entre invisibilidade e reconhecimento dos tradutores, apontando, não sem certo humor voltairiano, que os cirurgiões plásticos não precisam deixar marcas visíveis nos narizes dos pacientes para que “[...] todos saibam que a beleza de um rosto se deve, na verdade, a uma intervenção cirúrgica” (BRITTO, 2012BRITTO, Paulo Henriques. A tradução literária. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. 157 p., p. 38). No entanto, não há como discordar da denúncia de Lawrence Venuti sobre a “invisibilidade do tradutor” e a importância de uma ética da tradução voltada para o acolhimento do estrangeiro (BERMAN, 2013BERMAN, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Tradução de Marie-Hélène C. Torres, Mauri Furlan e Andréia Guerini. 2. ed. Tubarão: Copiart, 2013. 200 p.). Por mais que caminhe para seus trinta anos de publicação, a denúncia de Venuti continua atualíssima. A questão aqui não é discordar do etnocentrismo praticado por determinadas culturas e da necessidade de resistir a essas práticas; trata-se tão somente de problematizar a solução da estrangeirização como forma de luta, de postura ética, no intuito de dar visibilidade ao tradutor.

A primeira questão crucial - e que impossibilita uma ideia de tradução como atividade mecânica - é o próprio ato de traduzir, e consequentemente a noção autoral do gesto tradutório. Com efeito, é impossível negar que o ofício do tradutor exige um alto nível de recriação e de leitura crítica. Como disse Britto, “toda tradução [literária] é, por definição, uma operação radical de reescrita” (BRITTO, 2012BRITTO, Paulo Henriques. A tradução literária. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. 157 p., p. 67). Portanto, a respeito da questão autoral, a meu ver, se “o tradutor não é o autor [... o] tradutor é um autor que reescreve um texto alheio, novo texto que passa a ser também seu” (ABES, 2018ABES, Gilles Jean. Tradução, autoria e original: potências do rizoma. Revista da ANPOLL, Florianópolis, v. 1, n. 44, p. 25-40, jan./abr. 2018. Disponível em: Disponível em: https://revistadaanpoll.emnuvens.com.br/revista/article/view/1139 . Acesso em: 21 jun. 2022.
https://revistadaanpoll.emnuvens.com.br/...
, p. 39). Acrescento ainda que o texto traduzido ganha certa autonomia. Nas palavras de Britto:

Como escreveu Wallace Stevens, “a imperfeição é nosso paraíso”. Bem, o que ele escreveu na verdade foi “The imperfect is our paradise”; a tradução é minha. Mas para os leitores de Stevens que não sabem ler inglês, o meu verso fica sendo dele. (BRITTO, 2012BRITTO, Paulo Henriques. A tradução literária. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. 157 p., p. 153).

Conforme veremos mais adiante, Britto se revela bastante cético em relação à estrangeirização como forma de dar a ver o tradutor ou de “revelar” a tradução. Tendo a concordar com essa opinião, que procuro aqui aprofundar.

São vários os motivos para desconfiar da estratégia de estrangeirizar o texto traduzido como maneira de dar visibilidade ao trabalho do tradutor.

Sobre a suposta hegemonia de uma fluência na língua materna como critério da boa tradução, posso apenas concordar parcialmente, pois a fluência depende também das características do texto de partida, do original, que nem sempre é fluente na própria língua estrangeira. Basta pensar no ensaio “Crise de verso”, de Mallarmé, para lembrar o quanto esse texto era, e continua sendo, hermético para a maioria dos leitores franceses. Paul Valéry chegou a afirmar que era preciso reaprender a ler (o francês) para ler Mallarmé. Os exemplos são numerosos. Poderíamos pensar que traduzir a prosa de Victor Hugo dificilmente justificaria uma estrangeirização sistemática de seu estilo em português, no mesmo grau que se esperaria de uma tradução dos poemas em prosa de Rimbaud. Traduzir Marguerite Duras não é o mesmo do que traduzir Marcel Proust. Como lembra Antoine Compagnon, não podemos esquecer dois aspectos importantes da literatura: sua heterogeneidade e sua heterocronia, ou a coexistência da “[...] simultaneidade dos não contemporâneos” (COMPAGNON, 2015COMPAGNON, Antoine. XXᵉ siècle. In: DELON, Michel et al. La littérature française II. Paris: Gallimard, 2015. p. 543-832., p. 549-550). A convivência de formas díspares, identificadas tradicionalmente em diferentes períodos, numa mesma época: a coabitação do verso metrificado e do verso livre, por exemplo. Em outras palavras, cada texto coloca na mesa do tradutor diferentes características e desafios que variam muito de uma obra para outra: de uma sintaxe extensa a uma minimalista, direta ou “retorcida”, de um vocabulário simples a um complexo, de línguas antigas para modernas, e assim por diante.

Outra questão relevante é a levantada por Britto, a partir de sua leitura do pensador francês Henri Meschonnic: deve-se “[...] traduzir o marcado pelo marcado [linguagem desviante ou estrangeira], o não marcado pelo não marcado [linguagem padrão ou familiar]” (BRITTO, 2012BRITTO, Paulo Henriques. A tradução literária. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. 157 p., p. 67). É evidente que se trata de uma escolha que busca verter a literariedade do texto de partida, o que faz muito sentido no caso de Britto. Não obstante, o projeto do tradutor pode ser diametralmente o oposto, tendendo mais para o que chamamos comumente de “adaptação” ou, mais radicalmente, de “releitura” de uma obra - como é o caso de Maria Gabriela Llansol e sua versão das Flores do mal (2003BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. Tradução de Maria Gabriela Llansol. Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2003. 380p.), ou mais ainda das traduções de Ana Cristina Cesar.

Outro argumento é a relação da fluência com o público leitor, pois o que pode ser fluente para uns pode não o ser para outros. O que era fluente no século XVI, não o era para todos os leitores da época - Marot era mais familiar do que Ronsard? - e não o é mais para muitos leitores do século XXI. Basta pensar em Rabelais ou Montaigne, aos quais a maioria dos leitores franceses têm acesso através de traduções intralinguais, não sem certa dificuldade.

Assim, a questão da fluência não pode ser vista numa perspectiva dicotômica: domesticação ou estrangeirização. Deve-se levar em conta o texto de partida, o público- alvo, a editora e seu projeto editorial e, além disso, o projeto do tradutor, mesmo se não podemos descartar a ideia de que o critério da fluência, sobretudo para as editoras - atrelada à norma gramatical e a certa norma culta e, sobretudo, à hegemonia do sentido - continua sendo um critério muito presente.

Em suma, uma prática generalizada da estrangeirização parece pouco eficiente, e contaria, ainda, com uma suposta “competência” do leitor que associaria automaticamente o estranhamento do texto ao trabalho do tradutor.

O tradutor como artífice ou masterstvó

Richard Sennett se preocupa em analisar a decadência da figura do artífice na sociedade, relacionada, em primeiro lugar, a uma separação da cabeça e da mão - em outras palavras, da reflexão e da prática. Em segundo lugar, busca discutir os efeitos nocivos que essa separação causou na sociedade contemporânea, resgatando o ofício dos artífices de sua condição de mera tarefa instrumental (mecânica), apartada do pensamento e da imaginação. Para ele, o artífice representa uma condição humana especial: a do engajamento.

O carpinteiro, a técnica de laboratório e o maestro são artífices porque se dedicam à arte pela arte. Suas atividades têm caráter prático, mas sua lida não é apenas um meio para alcançar um outro fim. O carpinteiro poderia vender mais móveis se trabalhasse com maior rapidez; a técnica podia dar um jeito de transferir o problema para o chefe; o regente convidado talvez tivesse mais probabilidade de voltar a ser contratado se ficasse de olho no relógio. Com certeza é possível se virar na vida sem dedicação. O artífice representa uma condição humana especial: a do engajamento. Um dos objetivos deste livro é explicar como as pessoas se engajam de uma forma prática, mas não necessariamente instrumental. (SENNETT, 2013SENNETT, Richard. O artífice. Tradução de Clóvis Marques. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2013. , p. 29-30)

Sennett começa assim a delinear o status do artífice que identifica no Hino a Hefesto, em Platão, e a origem de sua queda em Aristóteles. Segue o hino:

Canta, Musa da voz clara, as celebradas habilidades de Hefesto. Com Atena e seus olhos brilhantes, ele ensinou gloriosos ofícios aos homens de todo o mundo - homens que, antes, moravam em cavernas nas montanhas, como animais selvagens. Mas agora que aprenderam ofícios graças a Hefesto, famoso por sua arte, eles levam uma vida tranquila em suas casas o ano todo. (SENNET, 2013SENNETT, Richard. O artífice. Tradução de Clóvis Marques. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2013. , p. 31)

Refletindo sobre o hino homérico a Hefesto, pode-se afirmar, a partir de Sennett, que o trabalho artesanal tirou os homens (e mulheres) do isolamento, personificado pelos ciclopes moradores das cavernas, e que artesanato e comunidade eram indissociáveis para os primeiros gregos. A palavra empregada no hino para designar o artífice é demioergos, formada pela combinação de público (demios) com produtivo (ergon). O artífice arcaico ocupava uma posição social mais ou menos equivalente à da classe média. Entre os demioergoi estavam - além de trabalhadores manuais especializados, como os oleiros - médicos e magistrados de escalão inferior, e mesmo cantores profissionais e arautos, que eram, na antiguidade, os difusores de notícias. Essa camada de cidadãos comuns vivia entre os aristocratas abastados, relativamente poucos, e a massa de escravos que fazia a maior parte do trabalho - muitos dos quais tinham grande capacitação técnica, mas sem que seus talentos se traduzissem em direitos ou reconhecimento político. Nessa sociedade arcaica, o hino homenageava como civilizadores aqueles que associavam a cabeça às mãos (SENNETT, 2013SENNETT, Richard. O artífice. Tradução de Clóvis Marques. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2013. ).

Celebrado como homem público na época de Homero, na era clássica, o artífice já tinha seu valor menos reconhecido. O leitor de Aristófanes encontra um pequeno indício dessa mudança no desprezo com que ele trata os oleiros Kittos e Bacchios em virtude do trabalho que executam. Sennett identifica na Metafísica - mais precisamente, nos escritos de Aristóteles sobre a natureza do artesanato - um presságio mais significativo da menor fortuna do artesão: “Consideramos que em toda profissão os arquitetos são mais estimáveis e sabem mais e são mais sábios que os artesãos, pois conhecem as razões das coisas que são feitas” (ARISTÓTELES apud SENNETT, 2013SENNETT, Richard. O artífice. Tradução de Clóvis Marques. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2013. , p. 33). Aristóteles troca a palavra que costumava designar o artífice, demioergos, por cheirotechnon, que significa simplesmente “trabalhador manual”.

O filósofo clássico mais identificado com o ideal arcaico de Hefesto, segundo Sennett, foi Platão, que também se preocupava com o seu fim. Em O banquete, ele indica a origem do conceito de habilidade na etimologia de “fazer”, na palavra poiein - termo que, como se sabe, também deu origem a poesia. É bom notar que no hino os poetas aparecem igualmente como artífices.

Toda perícia artesanal é um trabalho voltado para a busca da qualidade; Platão formulou esse objetivo no conceito de arete, o padrão de excelência, implícito em qualquer ato: a aspiração de qualidade levará o artífice a se aperfeiçoar, a melhorar em vez de passar por cima. Mas Platão também observou que em sua época, embora “os artífices sejam poetas [...] não são chamados de poetas, têm outros nomes”. (SENNETT, 2013SENNETT, Richard. O artífice. Tradução de Clóvis Marques. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2013. , p. 34).

Platão temia que esses nomes diferentes e mesmo essas capacitações distintas impedissem os homens de seu tempo de entenderem o que tinham em comum. Algo parecia ter dado errado nos cinco séculos transcorridos entre o Hino a Hefesto e sua época. A unidade existente nos tempos arcaicos entre a capacitação e a comunidade se deteriorou. As habilidades práticas ainda sustinham a vida da cidade, mas não eram mais reconhecidas por isto (SENNETT, 2013SENNETT, Richard. O artífice. Tradução de Clóvis Marques. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2013. ).

Entre Platão e Aristóteles, algo aconteceu, e o artífice - que associo aqui ao tradutor - perdeu seu valor de edificador da comunidade por conta da desvalorização de seu fazer ligado à mestria, habilidade e busca de perfeição, de uma dissociação do poiein. Por algum motivo, o ofício do tradutor ficou marcado pelos limites do cheirotechnon: por um lado, por conta de uma visão redutora do trabalhador manual e igualmente, por outro, de uma associação de seu ofício com esse aspecto mecânico atribuído ao artesão.

Outro elemento pertinente que o sociólogo norte-americano destaca é a impessoalidade desses artífices gregos que lembram os trabalhos da comunidade Linux em sua busca de aperfeiçoamento de seu código aberto.

Os artífices arcaicos vivenciavam uma impessoalidade equivalente; os demioergoi frequentemente eram chamados em público pelos nomes de sua profissão. Todo ofício artesanal, com efeito, tem algo desse caráter impessoal. O fato de o trabalho ter um aspecto impessoal pode fazer com que a prática dos ofícios artesanais pareça ingrata [...]. (SENNETT, 2013SENNETT, Richard. O artífice. Tradução de Clóvis Marques. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2013. , p. 37).

Como não lembrar da situação do tradutor denunciada por Venuti? Todavia, Sennett insiste, em uma de suas teses, que o artífice é capaz de criatividade através do que chama de “saltos intuitivos” da imaginação, que testemunhariam da reflexão conduzida no quadro de um trabalho técnico e que são possíveis apenas se o artífice é dotado de uma “consciência material”, ou seja, uma consciência de sua aptidão para modificar as coisas. A intuição na origem da criação nasceria então da frustração que surgiu dos limites de uma ferramenta; ou seria ainda provocada pelas suas possibilidades inexploradas. O autor conclui que a “intuição deve ser trabalhada” e encontra sua origem na prática cotidiana da atividade técnica.

A tradução para o francês do título do livro de Sennett, Ce que sait la main (“O que sabe a mão”), é muito esclarecedora quanto ao objetivo do sociólogo: questionar a separação intelectual e social entre a cabeça e a mão, entre o animal laborens (o trabalhador que, absorto em sua tarefa, não possui moral) e o Homo faber (capaz de julgar de maneira ética seu trabalho), segundo a distinção de Hannah Arendt citada por Sennett. Para ele, ao contrário, o animal laborens é capaz de pensar pois entra no fazer uma parte de reflexão e de sensibilidade.

As teses de Richard Sennett são muito pertinentes para analisar a atividade e a condição do tradutor, sobretudo se associadas ao pensamento de Antoine Berman e ao dos irmãos Campos. Com efeito, o tradutólogo francês afirma claramente, em seu A tradução e a letra (BERMAN, 2013BERMAN, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Tradução de Marie-Hélène C. Torres, Mauri Furlan e Andréia Guerini. 2. ed. Tubarão: Copiart, 2013. 200 p.), que o ato tradutório jamais pode prescindir a reflexão: visão que nada tem da atividade puramente mecânica ou inconsciente. Uma de suas importantes propostas para amenizar o sistema de deformação da letra é uma analítica da tradução, que passa por uma tentativa de maior consciência do ato tradutório. Em outras palavras, a tradução não pode ser um gesto instrumental, mecânico, porque exige, para além de uma profunda reflexão para solucionar problemas tradutórios, um estreitamento entre corpo e intelecto, um maior domínio do gesto na consciência que se tem do objeto em um íntimo comércio entre a mão e a cabeça. A rotina do exercício fortalece, pensando no conceito de arete de Platão, a excelência do ofício para o qual, com toda certeza, o tradutor possui pleno engajamento: o caso de Boris Schnaiderman é exemplar .

Outro ponto importante, também abordado por Berman (2013BERMAN, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Tradução de Marie-Hélène C. Torres, Mauri Furlan e Andréia Guerini. 2. ed. Tubarão: Copiart, 2013. 200 p.) e Sennett (2013SENNETT, Richard. O artífice. Tradução de Clóvis Marques. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2013. ), é o conceito de experiência. O tradutólogo, que associa a prática à experiência, emprega o conceito de forma central no gesto tradutório, assim como o sociólogo, que usa a expressão “ofício da experiência”. Segundo Berman, com base em Heidegger,

Fazer uma experiência com o que quer que seja [...] quer dizer: deixá-lo vir sobre nós, que nos atinja, que caia sobre nós, nos derrube e nos torne outro. Nesta expressão, “fazer” não significa em absoluto que somos os operadores da experiência; fazer quer dizer, aqui, passar, sofrer do início ao fim, aguentar, acolher o que nos atinge ao nos submetermos a ele... (BERMAN, 2013BERMAN, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Tradução de Marie-Hélène C. Torres, Mauri Furlan e Andréia Guerini. 2. ed. Tubarão: Copiart, 2013. 200 p., p. 23).

Conceitos centrais para o artífice, experiência, exercício (repetição, rotina) e associação da mão e da cabeça, permitem-nos ressaltar a importância de se destacar o ofício - concebido como experiência (prática), fazer criativo e reflexão - e seu papel para o reconhecimento da profissão.

Considerações

Nenhuma tradução existiria sem um tradutor ou uma tradutora. Acontece que a folha do livro, na questão da autoria e na associação da tradução como atividade mecânica, atua como uma cortina, e seu ofício se camufla nos bastidores do texto.

Como então dar a ver o trabalho do tradutor?

O aparato paratextual, como notas de tradutor, introdução, posfácio, artigos, conferências, entrevistas, etc., podem ser uma forma mais efetiva de evidenciar o que o gesto tradutório escamoteia, de dar visibilidade ao que sabe a mão do artífice, e, consequentemente, dentro das limitações do mercado editorial, consolidar a profissão. Britto (2007BRITTO, Paulo Henriques. As condições de trabalho do tradutor. Cadernos de Tradução, Florianópolis, v. 1, n. 19, p. 193-204, 2007. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/6998/6483 . Acesso em: 21 jun. 2022.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/tra...
) aponta alguns sinais positivos de mudança, e talvez esteja, em sua abordagem pragmática, mais próximo de uma senda possível para atenuar a “invisibilidade do tradutor”.

Para finalizar, diria que o ponto de inflexão para a valorização do tradutor talvez esteja justamente nas zonas de atuação nas quais mais precisa agir de forma radical em sua reescrita. Nesse sentido, é preciso destacar a origem do fazer do artífice na palavra poiein, sua habilidade em fazer, a partir de sua imaginação, sua busca por excelência, seu engajamento. Não por acaso, Anton Tchekhov definiu suas atividades como médico e escritor com a palavra masterstvó: mestria, maestria, ofício, perícia, destreza, entre outras acepções. Aqui não há mais distinção entre artífice e artista, como defende aliás Richard Sennett.

E uma anedota de Paul Valéry talvez possa aclarar essa relação:

Degas gostava de falar sobre pintura e não suportava que falasse sobre ela. [...] Dizia-lhe: “Mas, afinal, o que você entende por Desenho?” Ele respondia com seu célebre axioma: “O Desenho não é a forma, é a maneira de ver a forma”. [...] Eu intuía bastante bem o sentido do que ele queria dizer. Degas opunha o que chamava de “pôr no lugar”, ou seja, a representação fidedigna dos objetos, ao que chamava de “desenho”, ou seja, a alteração particular que o modo de ver e executar de um artista impõe a essa representação exata, aquela que o uso da câmara clara daria, por exemplo”. (VALÉRY, 2012VALÉRY, Paul. Degas dança desenho: Paul Valéry. Tradução de Christina Murachco e Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac & Naify, 2012. 192 p., p. 139-140).

Portanto, a questão da (in)fidelidade, tão criticada no senso comum, não está relacionada a uma representação fidedigna, que é uma miragem, mas à maneira como se “põe no lugar”, as alterações que o modo de ver e de executar de um artista/tradutor impõe à representação, que seja buscando a literariedade do original, a transcriação do texto ou uma releitura, como as traduções de Ana Cristina Cesar. Eis a zona privilegiada onde o tradutor é levado a atuar, por necessidade ou pelo seu projeto de tradução.

O trabalho de Sennett é fundamental, notadamente porque permite melhor apreender a ideia de Anthony Pym do uso, pelo tradutor, do aparato paratextual .

Diz Britto:

O que nós tradutores devemos reivindicar, portanto, não é o status de autores, e sim mais visibilidade dentro da nossa atuação específica. Como consegui-lo? Uma boa ideia é seguir a sugestão do teórico australiano Anthony Pym, para quem o tradutor deve afirmar-se no lugar que lhe cabe no livro: o aparato paratextual. Ninguém mais indicado para redigir introdução, notas, posfácio ou orelha de um livro do que a pessoa que dedicou meses de seu tempo à tarefa de transpô-lo para outro idioma. Eis uma maneira que me parece eminentemente sensata e razoável de afirmar e valorizar o trabalho de tradução: expandir nosso domínio, conquistar o território (“sejamos imperialistas!”, para citar Caetano Veloso) do organizador, do compilador, do antologista. E, tendo ocupado esses lugares com competência, o tradutor conseguirá talvez ter mais sucesso ao reivindicar um outro lugar, este da maior importância: a capa do livro (ou, faute de mieux, a contracapa). Exemplos disso não faltam: a antologia de poemas de vários autores, intitulada Poesia alheia, de Nelson Ascher (1998) e a de contos de F. Scott Fitzgerald (2004) traduzida e organizada por Ruy Castro, para citar apenas dois. Nesses livros o nome do tradutor aparece com destaque na capa, porém não há aqui qualquer afirmação de autoria: o leitor inteligente saberá claramente distinguir até onde vai o trabalho do autor e a partir de que ponto começa o do tradutor-organizador, e dar a cada um deles o valor devido. (BRITTO, 2007BRITTO, Paulo Henriques. As condições de trabalho do tradutor. Cadernos de Tradução, Florianópolis, v. 1, n. 19, p. 193-204, 2007. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/6998/6483 . Acesso em: 21 jun. 2022.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/tra...
, p. 202-203).

Retomando o Hino, é interessante apontar como Hefesto era descrito. Segundo Sennett,

Hefesto também é aleijado - tem um pé torto -, e na antiga cultura grega a deformidade física era causa de profunda vergonha: kâlos/kagathos (belo na mente e no corpo) contrastava com aischrôs, a palavra empregada para denotar ao mesmo tempo feio e vergonhoso. É um deus defeituoso. (SENNETT, 2013SENNETT, Richard. O artífice. Tradução de Clóvis Marques. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2013. , p. 325).

O “defeito” da invisibilidade do tradutor talvez seja algo inerente, ao menos numa sociedade “ocidental”, ao próprio valor social atribuído ao artífice. No entanto, Sennett aponta que uma “[...] das maneiras de sair desse impasse poderia ser, efetivamente, ignorar o pé torto de Hefesto, por assim dizer, valorizando-o simplesmente pelo que faz” (SENNET, 2013SENNETT, Richard. O artífice. Tradução de Clóvis Marques. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2013. , p. 328). Uma solução prática (não a única) pode ser a de evidenciar a complexidade do ofício para valorizar a profissão do tradutor e da tradutora, sua masterstvó, para evitar a associação do ofício a um fazer mecânico, certamente reforçado por programas de tradução automática. Ao menos, como diz Sennett, “[...] podemos alcançar uma vida material mais humana, se pelo menos entendermos como são feitas as coisas” (SENNETT, 2013SENNETT, Richard. O artífice. Tradução de Clóvis Marques. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2013. , p. 18).

É preciso evidenciar o poiein como elemento fundante do ato tradutório e dar visibilidade ao que sabe a mão do tradutor-artífice.

REFERÊNCIAS

  • ABES, Gilles Jean. Tradução, autoria e original: potências do rizoma. Revista da ANPOLL, Florianópolis, v. 1, n. 44, p. 25-40, jan./abr. 2018. Disponível em: Disponível em: https://revistadaanpoll.emnuvens.com.br/revista/article/view/1139 Acesso em: 21 jun. 2022.
    » https://revistadaanpoll.emnuvens.com.br/revista/article/view/1139
  • BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. Tradução de Maria Gabriela Llansol. Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2003. 380p.
  • BERMAN, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Tradução de Marie-Hélène C. Torres, Mauri Furlan e Andréia Guerini. 2. ed. Tubarão: Copiart, 2013. 200 p.
  • BRITTO, Paulo Henriques. A tradução literária. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. 157 p.
  • BRITTO, Paulo Henriques. As condições de trabalho do tradutor. Cadernos de Tradução, Florianópolis, v. 1, n. 19, p. 193-204, 2007. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/6998/6483 Acesso em: 21 jun. 2022.
    » https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/6998/6483
  • COMPAGNON, Antoine. XXᵉ siècle. In: DELON, Michel et al. La littérature française II. Paris: Gallimard, 2015. p. 543-832.
  • SENNETT, Richard. O artífice. Tradução de Clóvis Marques. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2013.
  • VALÉRY, Paul. Degas dança desenho: Paul Valéry. Tradução de Christina Murachco e Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac & Naify, 2012. 192 p.
  • VENUTI, Lawrence. The translator’s invisibility: a history of translation. New York: Routledge, 1995. 344 p.

Editado por

Editor-chefe:

Rachel Esteves Lima

Editor executivo:

Regina Zilberman

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Nov 2022

Histórico

  • Recebido
    20 Abr 2022
  • Aceito
    15 Maio 2022
Associação Brasileira de Literatura Comparada Rua Barão de Jeremoabo, 147, Universidade Federal da Bahia, Instituto de Letras, Salvador, BA, Brasil, CEP: 40170-115, Telefones: (+55 71) 3283-6207; (+55 71) 3283-6256, E-mail: abralic.revista@abralic.org.br - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: abralic.revista@abralic.org.br