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L’Opéra de la lune: traduzir a poesia infantil de Jacques Prévert

L’Opéra de la lune: traduire la poésie de Jacques Prévert pour les enfants

RESUMO

Este artigo apresenta reflexões sobre a tradução poética a partir da experiência de traduzir o livro infantil de Jacques Prévert L’Opéra de la lune, ilustrado por Jacqueline Duhême. O relato, embora não versificado de maneira tradicional, mobiliza recursos poéticos como metáforas, rimas, reiterações fônicas, além de uma configuração visual particular que permite que seja lido e traduzido como poema narrativo. A ênfase recai sobre os procedimentos parodísticos de Prévert, que revisita e manipula elementos culturais tradicionais à infância dos franceses, notadamente os ditos populares e as cantigas de ninar. Considera-se ainda a posição do texto verbal numa composição em que a ilustração é proeminente e que, ademais, traz uma partitura, composta por Christiane Verger, que transforma em canção um trecho do livro. É, portanto, uma obra multimodal em sentido pleno, cujo plano verbal não pode ser interpretado de maneira dissociada dos planos visual e musical. Pretende-se contribuir com o pensamento acerca da tradução de textos poéticos, situando a poesia infantil e ilustrada no centro da empresa.

PALAVRAS-CHAVE:
tradução de textos poéticos; poesia infantil; Jacques Prévert; paródia; multimodalidade

RÉSUMÉ

Cet article présente des réflexions sur la traduction poétique à partir de l’expérience de traduire l’album L’Opéra de la lune, de Jacques Prévert, illustré par Jacqueline Duhême. Bien qu’il ne soit pas versifié à la façon traditionnelle, le récit met en place des ressources poétiques telles que des métaphores, des rimes, des réitérations phoniques, en plus d’une configuration visuelle particulière qui permet qu’il soit lu et traduit en tant que poème narratif. Le relief est mis sur les procédures parodiques de Prévert, qui revisite et manipule des éléments culturels traditionnels à l’enfance des Français, notamment les dictons et les berceuses. On considère encore la position du texte verbal dans une composition où l’illustration est proéminente et qui, en plus, présente une partition composée par Christiane Verger, qui met en musique un extrait du livre. Il s’agit ainsi d’une oeuvre multimodale dans son sens plein, dont le plan verbal ne peut pas être interprété de façon dissociée des plans visuel et musical. On envisage de contribuer à la réflexion sur la traduction de textes poétiques, en situant la poésie pour l’enfance dans ce centre de l’entreprise.

MOTS-CLÉS :
traduction de textes poétiques; poésie pour l’enfance; Jacques Prévert; parodie; multimodalité

Introdução

A tradução de textos poéticos tem sido objeto de importantes reflexões no Brasil, conforme mapeia Faleiros (2012FALEIROS, Álvaro. Traduzir o poema. Cotia: Ateliê, 2012. 192 p.) em Traduzir o poema. Já os estudos específicos sobre a tradução da literatura infantil têm seguido um caminho à parte, centrado em questões particulares relacionadas ao repertório cultural e linguístico limitado do público-alvo; ao comprometimento didático da literatura para crianças; à presença significativa das ilustrações, constituindo texto não verbal que interage com o verbal; à previsão de leitura em voz alta - esses dois últimos itens compreendidos pela categoria de multimodalidade. Propomos, a partir da leitura e da tradução da obra L’Opéra de la lune (1953), de Jacques Prévert, fazer convergir estes dois campos dos Estudos da Tradução: o da tradução de textos poéticos e o da tradução de literatura infantil1 1 Este artigo seleciona, retoma e amplia reflexões apresentadas por mim durante o ano de 2021 no Congresso Internacional da ABRALIC, com a comunicação “Pela porta dos fundos: um estudo sobre a ambivalência na obra infantil de J.M.G. Le Clézio e Jacques Prévert”, e no III Colóquio Internacional Escrita, Som, Imagem, promovido pela UFMG, com a comunicação “A ópera da lua, de Jacques Prévert: a criação artística como recusa à devastação”. .

Sem ignorar as especificidades do texto direcionado ao leitorado infantil, postulamos que ele pode oferecer um material linguageiro configurado de forma suficientemente elaborada, sintética, metafórica e rítmica - poética, portanto -, passível de ser confrontado com base em categorias da crítica literária, que acaba informando, em grande parte, a crítica da tradução. Por outro lado, suas particularidades, as contraintes [restrições] a que se submete, ao lado de sua tendência natural à multimodalidade, fazem do texto infantil um objeto ainda original e inusitado no âmbito da crítica e da teoria literárias, capaz de lançar luz sobre fenômenos poéticos potentes e ainda carentes de investigação. Enfim, a leitura analítica da literatura infantil, acompanhada pela tradução enquanto criação e crítica, como a via Haroldo de Campos (1992CAMPOS, Haroldo de. Da tradução como criação e como crítica. In: CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem e outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. São Paulo: Perspectiva, 1992. p. 31-48.), é capaz de refinar a sensibilidade do leitor não habituado aos mecanismos específicos dessa categoria de textos, permitindo um juízo de valor dos textos e de suas traduções mais ancorado em elementos textuais concretos e menos calcado em ideias pré-concebidas.

Este artigo está organizado em três partes, além desta introdução e das considerações finais. Em primeiro lugar, contextualiza-se o livro L’Opéra de la lune na obra de Prévert. Os itens 2 e 3 apresentam traduções e comentários de trechos em que Prévert mobiliza citações e paródias, com foco nos ditos populares e metáforas naturalizadas e nas cantigas infantis.

L’Opéra de la lune e o Prévert das crianças: uma criação interartes

Au réel vrai le poète substitue le réel imaginaire. Et c’est le pouvoir, ce sont les moyens d’élever ce réel imaginaire à la puissance de la réalité matérielle et de la dépasser en la transmutant en valeur émotive qui constitue proprement la poésie.

Pierre Reverdy, Cette émotion appelée poésie

Se a poesia é marcada pela submissão voluntária a restrições - muitas vezes o metro, a rima, a prosódia, e sempre o ritmo -, a poesia para crianças submete-se ainda às restrições características do sistema infantil, dentre as quais Zohar Shavit (1986SHAVIT, Zohar. Poetics of children's literature. Londres: University of Georgia, 1986.) destaca o comprometimento didático e a necessidade de se dirigir a dois públicos: o infantil, que é o leitor oficial, e o adulto, que é quem seleciona, avalia e adquire os livros. Apesar disso, não poucos poetas consagrados pelas instâncias oficiais escreveram ou foram publicados também para crianças e adolescentes, atuando criativamente dentro dos códigos da literatura infantil e aproveitando-a como campo de construção de sua poética. Na cena francófona, destacamos Jacques Roubaud, Robert Desnos e Edmond Jabès. No campo da ficção, Henri Bosco, Dany Laferrière, Eugène Ionesco, Blaise Cendrars e J.M-G. Le Clézio ampliam o rol.

Jacques Prévert (1900-1977) foi um poeta, cancionista, roteirista, contista profundamente comprometido com o acesso universal à literatura; daí ter experimentado diversas formas literárias e artísticas, mais ou menos prestigiadas pelos círculos eruditos. Nesse percurso, associou-se com frequência a escritores, cineastas, músicos ou artistas plásticos, em criações artísticas coletivas que eram prática corrente entre os surrealistas - grupo pelo qual Prévert passou entre 1925 e 1929 - e seus simpatizantes. O exemplo mais célebre talvez sejam os exercícios do cadavre exquis, cuja invenção é atribuída a Prévert, e que consistiam na continuação da escritura do outro a partir de um texto oculto.

A ideia do livro como espaço de criação coletiva, cuja autoria é compartilhada, manifesta-se em Prévert de maneira textual, por meio de citações e epígrafes, como nas evocações a Max Ernst, André Breton, Paul Éluard, Philippe Soupault e Robert Desnos em Spectacle, mas também na colaboração envolvendo outros artistas (ALMEIDA FILHO, 2006ALMEIDA FILHO, Eclair Antonio. Jacques Prévert e a poética do movimento. 2006. 177 f. Tese (Doutorado em Letras Modernas) - Departamento de Letras Modernas, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.). Vale recordar que o surrealismo foi um movimento intelectual interartes que compreendeu literatura, artes plásticas, cinema e música, e que exercícios de cadavre exquis também eram feitos com desenhos. Impossível deixar de mencionar ainda a carreira de Prévert como cancionista, com sua conhecida canção Les feuilles mortes (1949/1950), musicada por Joseph Kosma, seu principal parceiro musical, e como roteirista, com filmes como o celebrado Les enfants du paradis (1945) ou o longa de animação Le roi et l’oiseau (1952).

Embora não tenha participado das sessões de hipnose ou publicado textos durante sua passagem pelo grupo surrealista, Prévert herdou do período em que esteve ligado ao movimento as técnicas de composição relacionadas, sobretudo, à quebra dos automatismos da linguagem (ALMEIDA FILHO, 2006ALMEIDA FILHO, Eclair Antonio. Jacques Prévert e a poética do movimento. 2006. 177 f. Tese (Doutorado em Letras Modernas) - Departamento de Letras Modernas, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.). Entre elas, a enumeração e justaposição de elementos, em longas listas sem uma lógica evidente, os jogos de palavras, o deslocamento de provérbios e ditos populares... enfim, procedimentos que chamavam a atenção sobre a própria linguagem e se contrapunham aos sentidos institucionalizados e reificados, recorrendo de forma sistemática à paródia, à colagem, à autocitação (AMORIM, 1995AMORIM, Silvana Vieira da Silva. Vivenciando a história cinquenta anos depois: “La Lessive”, de Jacques Prévert. Revista de Letras, São Paulo, v. 35, p. 53-63, 1995. Disponível em: Disponível em: http://www.jstor.org/stable/27666640 . Acesso em: 22 fev. 2022.
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).

Neste trabalho, damos destaque à paródia, aqui compreendida como um mecanismo de renovação de uma literatura:

[Quando] certos procedimentos, que se tornaram dominantes numa dada época ou num dado gênero, deixam de ser percebidos, então uma obra, desfamiliarizante neste aspecto, ao parodiá-los, torna-os de novo perceptíveis como procedimentos. O caráter convencional do procedimento fica assim novamente manifesto [...]. (COMPAGNON, 1999COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: UFMG, 1999. 292 p., p. 208).

Nesse sentido, Prévert mobiliza a paródia para abalar o senso comum, não apenas no que tange às convenções literárias, mas também à percepção política do mundo. Sua obra mais célebre, Palavras, de 1945, nos dá alguns exemplos. No poema “La lessive” (“A lavanderia”), Prévert descreve uma cena de aborto doméstico, provocado pelos pais de uma moça “de família” a fim de ocultar a desonra. Para justificar-se, o pai evoca o dito Il faut laver son linge sale en famille (“Roupa suja se lava em casa”). Já no poema “La grasse matinée”, que retrata um homem faminto, às seis da manhã, diante das vidraças dos estabelecimentos de alimentação, o título desloca a expressão popular faire la grasse matinée (literalmente, “fazer a manhã gorda”), que significa “dormir até mais tarde”, para ressaltar o grotesco de um homem passando fome diante de salames, croissants e cafés com creme. Mecanismos semelhantes são mobilizados em L’Opéra de la lune, ajustados a uma certa delicadeza no trato com temas sensíveis que o público infantil impõe.

Além dessa obra, Prévert publicou em vida outros cinco livros para crianças, entre fins da década de 1940 e início dos anos 1950: Contos para crianças impossíveis e Le petit lion, de 1947; Cartas das ilhas andarilhas e Guignol, de 1952; e Des bêtes, de 1950. Le petit lion e Des bêtes são livros de fotografias, realizados em parceria com a fotógrafa Ylla (PERRIGAULT, 2006PERRIGAULT, Laurence. Un livre de photographies destiné aux enfants: le petit lion, de Jacques Prévert et Ylla. La Revue Des Livres Pour Enfants, n. 228, p. 71-80, 2006. ). Cartas das ilhas andarilhas é ilustrado por André François e Guignol traz pinturas de Elsa Henriquez. Não se trata de ilustrações meramente ornamentais, mais de projetos gráfico-literários coesos, em que escritor e artista trabalham em cooperação. Destes, apenas Contos para crianças impossíveis e Cartas das ilhas andarilhas têm tradução no Brasil.

Depois de sua morte, diversas publicações direcionadas ao público infantojuvenil foram produzidas a partir de excertos da obra não infantil de Prévert - a maior parte delas, inclusive, com ilustrações de Jacqueline Duhême, artista que trabalhou com o poeta na composição de L’Opéra de la lune. Escolhemos essa obra para esquadrinhá-la, a começar pelo ato de traduzi-la, porque nela se condensam elementos-chave da poética de Prévert: a criação coletiva (aqui com aquarelas e música); a paródia; o humor; e o deslocamento e a manipulação de expressões correntes desgastadas.

Prévert compôs seu texto em interação contínua com a criação das ilustrações, que ora sucediam o material verbal, ora o precediam. Este depoimento de Duhême ilustra bem a parceria para a composição de uma obra total e orgânica:

[Ele] mudava frases do texto seguindo os desenhos que eu trazia... foi realmente feito em conjunto... e isso me tocava muito, me lembro que no que eu tinha desenhado havia as ondas do mar e eu tinha feito como que carneirinhos [...] e ele disse: “Oh! Mas que boa ideia, os brancos carneiros das ondas [les blancs moutons des vagues]”, e ele colocou isso porque eu tinha posto meus carneiros. E ele me dizia: “ponha o que quiser, o que você achar, e eu me adapto”, então é mesmo um livro que fizemos juntos2 2 [Il] changeait des phrases du texte suivant les dessins que j’apportais… ça a été fait vraiment ensemble…et ça me touchait beaucoup, je me rappelle que dans ce que j’avais dessiné, il y avait les vagues de la mer et j’avais fait comme des petits moutons […] et il dit : « oh ! Mais c’est une bonne idée, les blancs moutons des vagues » et ça il l’a mis parce que j’avais mis mes moutons. Et il me disait : « mets ce que tu veux, ce que tu penses, et moi je m’adapterai », donc c’est vraiment un livre que l’on a fait très ensemble. . (COITIT‐GODFREY, 2018COITIT‐GODFREY, Janie. Prévert-Duhême: une complicité créatrice. NVL La Revue, 31 jan. 2018. Disponível em: Disponível em: http://www.nvl-larevue.fr/wp-content/uploads/2018/01/Prevert-Duheme.pdf . Acesso em: 22 fev. 2022.
http://www.nvl-larevue.fr/wp-content/upl...
, n.p., tradução nossa).

Mesmo que não se conhecesse o contexto de criação do livro, a integração profunda entre texto e imagem se depreende da própria obra, como demonstraremos ao longo da análise. Um terceiro modo expressivo, a música, vem incrustar-se na composição. A partitura de Christiane Verger (1903-1974) para um excerto do texto, “Canção na lua” (“Chanson dans la lune”), permite a realização material e concreta do ambiente musical que perpassa toda a obra e completa o tripé de palavra, som e imagem que sustenta o relato poético.

L’Opéra de la lune conta a história de um garoto órfão, Michel Morin, que encontra no espaço noturno do sonho um lugar de projeção de uma realidade viva e vibrante, oposta à vida cotidiana e medíocre do abrigo onde vive e da sociedade do seu tempo. As aquarelas de Jacqueline Duhême que se imbricam no texto exploram sobretudo a cor como recurso expressivo - tons de cinza e azul para a realidade ordinária; cores primárias, secundárias e contrastantes para a realidade onírica criada por Michel Morin. Ademais, a profusão de elementos fantásticos na ilustração - pássaros enormes e coloridos, uma figura com corpo humano e cabeça de coelho, mineiros escavando gemas sob a terra, vestidos apenas com folhas de plantas, mamíferos voadores - amplia e reforça a configuração do sonho como recusa: à guerra, à morte, à desumanização da vida, enfim, a um modelo convencional e estereotipado de mundo adulto que acaba se impondo, à força, como realidade.

O texto poético não se distingue, de imediato, da prosa, por não se configurar espacialmente segundo o modelo visual de versos dispostos em linhas sucessivas. O ritmo, entretanto, é o do poema narrativo, com o qual Prévert já trabalhara em alguns textos de Palavras, tais como “Tentativa de descrição de um jantar de cabeças em Paris-França”. As reiterações fônicas - rimas, assonâncias, aliterações - e o espaço estreito da coluna de texto do livro ilustrado reforçam visualmente a impressão sonora de um texto versificado. Para fins de análise e tradução, o texto será, portanto, tratado como um poema. Essa abordagem se justifica pela centralidade do uso das metáforas, por seu caráter sintético, pela submissão a restrições formais da tradição poética (como a rima, o metro, a prosódia), como bem ilustra este belo decassílabo: et je la vois dans le noir de la nuit.

Este pequeno livro condensa elementos importantes da poética de Prévert e, quando aberto, multiplica-se em suas possibilidades de leitura. Como objeto de tradução, sugere uma miríade de caminhos para reflexão teórica: a tradução poética, a tradução e a multimodalidade, a tradução da canção, a tradução cultural, a tradução e a citação, a tradução e a paródia, a tradução para crianças. Neste trabalho, daremos relevo à paródia e à colagem, inseridas no texto poético e realizadas aqui pela evocação e pela manipulação do repertório cultural oral francês; em particular, os ditados populares e as cantigas de ninar. Como um dos excertos nos quais esses procedimentos aparecem com mais relevo é justamente o trecho musicado que ganhou o título de “Chanson dans la lune”, acrescentaremos à reflexão a necessidade de submissão às balizas melódicas da canção.

Apresenta-se a tradução comentada de dois excertos em que paródia e colagem são procedimentos poéticos centrais. Comentários acerca das ilustrações são acrescidos sempre que necessários à explanação das decisões tradutórias. Pretende-se, com isso, iluminar aspectos da tradução de textos poéticos a partir de um texto sujeito a balizas que traspassam o sonoro para alcançar o musical propriamente dito e que, ao mesmo tempo, é indissociável das imagens visuais que o acompanham. Não é demais lembrar que o receptor infantil é mais um referencial para a empresa tradutória, que não pode ser ignorada.

Os ditos populares e as metáforas naturalizadas

- Décidément disaient les gens, cet enfant est un écervelé, toujours dans la lune, il déménage, il faudrait lui meubler l’esprit, lui mettre du plomb dans la tête ! (PRÉVERT, 1953PRÉVERT, Jacques. L’Opéra de la lune. Images Jacqueline Duhême, musique Christiane Verger. Lausanne: Clairefontaine, 1953., n.p.).

Começo a análise por este trecho espantoso, em que “pessoas” - personagem difuso que aparece em bloco no texto de Prévert como les gens - pronunciam seu julgamento acerca de Michel Morin: um desmiolado (écervelé) em cuja cabeça deve ser metido estofo - plomb, literalmente, “chumbo”. Neste excerto, o garoto, que dormia, é despertado pela intensidade das vozes que o perturbam.

Aqui, Prévert recupera no mínimo quatro expressões3 3 Os sentidos figurados das palavras e expressões listadas podem ser confirmados em consulta aos verbetes lune, déménager, meubler e plomb no banco lexical do CNRTL. Disponível em: https://www.cnrtl.fr/. Acesso em: 22 fev. 2022. correntes relativas às condições mentais de um indivíduo. Être dans la lune [“estar na/dentro da lua”] corresponde, em uso social e sentido geral, a “viver no mundo da lua”, ou seja: ser distraído, ter o pensamento que vagueia. Déménager [mudar-se], no contexto que o circunda, tem o sentido figurado de “enlouquecer”. A expressão se meubler l’esprit [“mobiliar-se o espírito”] remete à ideia de ocupar a mente com novos elementos, instruir-se. Finalmente, mettre du plomb dans la tête [“pôr chumbo na cabeça”] designa o ato de tornar um indivíduo mais sensato, mais ponderado.

A primeira expressão retoma o substantivo “lua”, que está no título da obra e no centro da narrativa. A lua é o mundo encantado dos sonhos de Michel Morin, que se erige como antítese ao mundo terrestre/terreno. O “delírio” de Michel Morin, configurado linguisticamente pela expressão “dans la lune”, é, contraditoriamente, o caminho para a vida, a paz e a alegria. A resposta que Michel Morin dá, alguns parágrafos adiante, à acusação de loucura, é a seguinte:

Et pourquoi vous dites que je suis dans la lune? Par ici on ne dit pas qu’on est dans la terre! Personne n’est jamais dans la terre sauf les mineurs qui tirent pour les autres les marrons du feu de l’Hiver. (PRÉVERT, 1953PRÉVERT, Jacques. L’Opéra de la lune. Images Jacqueline Duhême, musique Christiane Verger. Lausanne: Clairefontaine, 1953., n.p.).

Na resposta da criança, Prévert desmonta a expressão être dans la lune, ao traçar um paralelo com a estrutura être sur la terre, elegendo a preposição “sobre”, e não “dentro”, para situar o garoto em relação à lua. Michel Morin afirma habitar a superfície da lua, como se habita a superfície da terra. Não está, portanto, no subterrâneo, ou no sublunar, reabilitando sua lucidez por meio de uma observação minuciosa da linguagem.

O verbo déménager e a locução se meubler l’esprit remetem ao campo semântico da moradia. Ambas as expressões ganham seu sentido figurado a partir de uma imagem de esvaziamento daquilo que deveria estar cheio, como uma sala sem móveis. De fato, o espírito de Michel Morin não habita a terra, se como terra for compreendido o espaço frio e anódino do abrigo onde ele vive e da escola que frequenta, rodeado por pessoas que têm mais o que fazer. Ele efetivamente “muda-se” diariamente para a lua, durante o sono.

Da ideia de “mobiliar o espírito”, ou de preencher a inteligência, desliza-se para a expressão mettre du plomb dans la tête”, que culmina no momento de maior brutalidade do texto: numa leitura palavra por palavra, a imagem primeira que vem à mente é a de um tiro na cabeça. No livro ilustrado, a violência dos comentários é reforçada pela imagem que os acompanha, ocupando toda a página da direita: no quadro superior direito da página, eleva-se, ou flutua, um garoto que dorme sobre um travesseiro de penas, erguido por dois pombos. Ele veste uma camisola comprida, branca. No quadro inferior esquerdo, despenca uma figura humana, de ponta-cabeça, vestida inteiramente de preto e do que parece ser um capacete de soldado. A imagem do plomb dans la tête, que para um francês é polissêmica, configura-se aqui visualmente de maneira espantosa.

Nas linhas que se seguem ao excerto em epígrafe, Michel Morin, despertado pelos gritos, propõe adivinhas como resposta:

Qu’est-ce qui pèse plus lourd un kilo de plomb dans la tête ou un kilo de plumes sous la tête dans l’oreiller quand on rêve? (PREVERT, 1953PRÉVERT, Jacques. L’Opéra de la lune. Images Jacqueline Duhême, musique Christiane Verger. Lausanne: Clairefontaine, 1953., n.p.).

Aqui, como nas construções dans la lune ou sur la lune, há uma ênfase sobre as preposições: dans (“dentro”) e sous (“sob, debaixo de”), que modificam inteiramente o sentido das expressões. A antítese entre o chumbo e as penas estabelece uma imagem que se coloca em paralelo com o contraste entre a terra e a lua, a queda e a ascensão, a morte e a vida.

Ao mover as expressões correntes de seu contexto habitual de enunciação, Prévert desperta a tomada de consciência a respeito da composição simbólica e ideológica da linguagem e nega sua neutralidade. A charada a respeito do que pesa mais, o chumbo na cabeça, matando-a, ou as penas debaixo dela, amparando-a e confortando-a, exprime a visão da obra literária a respeito do que é a lucidez. Trata-se de uma retórica apoiada na figura do quiasma, ou das inversões, subvertendo-se o senso comum de que o real é o que se vê e o falso é o que se imagina.

Esse trecho desafia a transposição para um idioma estrangeiro, por basear-se em construções culturalmente específicas, inseridas em uma estrutura poética assentada no metro e na rima. Para a exposição da análise, fragmentamos o excerto nas duas páginas em que aparecem, chamando-as de página 1 e 2 apenas para fins de organização, pois não se trata das primeiras páginas do livro (que não é paginado).

p. 1 - Décidément disaient les gens, cet enfant est un écervelé, toujours dans la lune, il déménage, il faudrait lui meubler l’esprit, lui mettre du plomb dans la tête ! Et comme ils parlaient fort, Michel Morin les entendait, se réveillait et leur posait des devinettes. Qu’est-ce qui pèse plus lourd un kilo de plomb dans la tête ou un kilo de plumes sous la tête dans l’oreiller quand on rêve? p. 2 Et pourquoi vous dites que je suis dans la lune? Par ici on ne dit pas qu’on est dans la terre! Personne n’est jamais dans la terre sauf les mineurs qui tirent pour les autres les marrons du feu de l’Hiver.

No início do primeiro trecho, destacam-se pausas que formam dois versos quadrissílabos rimados e de mesma acentuação, marcadas pela quebra de linha e pela vírgula: Décidément / disaient les gens . Logo em seguida, há uma rima interna com enfant . Há, na sequência, a rima bem marcada entretête edevinette e a sugestão de rimas, com a reiteração de vogais e consoantes, emterre ,mineurs eHiver . Não é nosso objetivo aqui propor uma análise detalhada do metro, das rimas e dos acentos que constituem o ritmo do poema, mas situar a empreitada tradutória em um contexto de restrições formais características dos textos poéticos.

A imagem que acompanha o primeiro trecho - o soldado em queda e a criança em ascensão - foi descrita mais acima. O segundo trecho é acompanhado pela figura do garoto, sempre com sua camisola branca, sentado de pernas esticadas sobre um gramado florido. A imagem enquadra o garoto de lado, a cabeça virada para o leitor, e apresenta o corte transversal da terra sobre a qual ele está sentado. Sob o menino, sob a terra, três homens com saias e coroas de folhas, o peito nu, trabalham com picaretas e lanternas para extrair gemas azuis de uma mina. Pensando em uma tradução que seria publicada em conjunto com as ilustrações originais, será importante, portanto, guardar a imagem dos mineiros. Traduzimos, assim, balizados pela forma poética, pelo referencial cultural das expressões populares e pelas ilustrações:

- Definitivamente, dizia aquela gente, esse menino é um cabeça oca, sempre no mundo da lua, não bate bem, vamos apertar seus parafusos, lhe meter chumbo na cuca! E como falavam alto, Michel Morin os ouvia, acordava e lhes propunha adivinhas. O que é mais pesado, um quilo de chumbo na cabeça ou um quilo de penas debaixo da cabeça no travesseiro, quando a gente sonha? E porque vocês dizem que eu vivo no mundo da lua? Por aqui ninguém diz que vive no mundo da terra! Ninguém nunca fica no mundo da terra só os mineiros, que tiram para os outros os pinhões do fogo do Inverno.

Para o primeiro bloco de versos, marcado pelo recuo da primeira linha, considerou-se como baliza para a empreitada tradutória a retomada de expressões populares que reconstituíssem os mecanismos de deslocamento linguístico de Prévert. Para écervelé, elegeu-se “cabeça oca”, que recupera a imagem do vazio evocada pelos verbos déménager e meubler e que, ademais, produz um eco sonoro pela reiteração do /k/ e do /a/. Para dans la lune, tomou-se a expressão consagrada “no mundo da lua”, a fim de prevenir um desconhecimento imediato de um sentido que é facilmente reconhecível no texto de partida, caso se optasse pela construção mais literal “dentro da lua”. Para il déménage, escolhemos “não bate bem”, expressão ritmada pela aliteração em /b/ e que ademais evoca o campo semântico da violência com o verbo “bater”. O adjetivo “bem” retoma parte da rima de “definitivamente” e “gente”. Para lui meubler l’esprit, não encontramos, em português brasileiro, um equivalente próximo dentro do campo da moradia. Assim, recorreu-se ao campo lexical das ferramentas domésticas, que recuperam o elemento metálico e perfurante do chumbo: “apertar os parafusos” (do dito “ele tem um parafuso solto/um parafuso a menos”). Para a última expressão, consideramos vital manter o vocábulo “chumbo”, figura da bala4 4 Para guardar a referência interartes, evoco os versos de Chico César, que fazem jogo semelhante com a linguagem: “Bari, bari, bari / Tem uma bala no meu corpo / Bari, bari, bari / e não é bala de coco”. , por metonímia. A escolha de “cuca” para cabeça visa a reforçar a reiteração das velais /k/, que ressoa ademais com “oca”. “Cuca” sugere ainda a imagem do monstro temido na noite das crianças, permanecendo dentro do universo semântico do texto.

O segundo bloco de versos tem rimas internas entre os verbos parlaient, entendait eréveillait , além da retomada da terminação de tête , que encerra o bloco anterior, em devinette. Conjugando-se os verbos correspondentes em português - “falar”, “ouvir” e “acordar” -, a rima não vem tão fácil. Parte da reiteração fônica é recuperada pelo par “ouvia” / “adivinhas”.

No bloco seguinte, para sous la tête, sacrificou-se, em parte, a síntese, em favor de uma maneira mais corrente e oral de falar. Considerou-se o esforço articulatório, em português do Brasil, para pronunciar as consoantes mudas, inabituais na língua. Assim, preferiu-se “debaixo da cabeça” - como no samba “debaixo do meu chapéu” ou do baião “debaixo do barro do chão” -, em vez da forma mais breve “sob a cabeça”. Assim, para este primeiro trecho, um fundo percussivo costura o ritmo da tradução.

O trecho mais desafiador foi o da segunda página, que põe em xeque o uso da preposição dans em dans la lune e faz uma referência pouco óbvia aos mineiros, às castanhas (imagem das pedras preciosas) e ao fogo do inverno. Como elegemos anteriormente a expressão “no mundo da lua”, foi necessário criar um paralelo por meio da construção “o mundo da terra”, perdendo-se a imagem do subterrâneo tão cara a esse trecho.

A referência aos mineiros vem compor a crítica social onipresente em Prévert, evocando uma categoria profissional para a qual ele tinha uma sensibilidade especial. No verão de 1960, dedicou uma foto à memória dos mineiros da região de Nord-Pas-de-Calais na qual se lia: Au charbon, à la chaleur, aux mineurs [“Ao carvão, ao calor, aos mineiros”]. Presenteou-os ainda com um manuscrito do excerto de L’Opéra de la lune que traduzimos aqui5 5 As fotos são reproduzidas no blog Histoires de ch’tis, dedicado à história dos mineiros na região da Picardia. Disponível em: http://www.histoires-de-chtis.com/index-photo-15510-Photos_hommage-aux-mineurs-de-jacques-prevert.php. Acesso em: 22 fev. 2022. .

Segundo o menino órfão Michel Morin, apenas os mineiros ficam “dentro” da terra, extraindo, para os outros, as castanhas do fogo do inverno. Em francês como em português, a alusão fônica ao “fogo do inferno” é patente. Os marrons, conhecidos no Brasil como “castanhas portuguesas”, são comidos assados durante o inverno. Estabelece-se um contraste entre o aconchego doméstico da comida quente - desfrutada pelos “outros” - e o trabalho extenuante e insalubre de extração das gemas no calor do subterrâneo, realizado por uma classe subalterna. A referência, em português, é mais obscura do que para o leitor francês, em razão do desconhecimento, pela maior parte da população, do hábito de comer castanhas assadas no inverno - salvo para a população do sul, e por isso a escolha do “pinhão” na tradução - e da prática já antiga da mineração manual, que foi motivo de importantes greves na França.

Para este primeiro excerto, propôs-se uma tradução que retomasse os mecanismos parodísticos e, ao mesmo tempo, se mantivesse dentro das possibilidades rítmicas do poema indicadas pelo texto de partida, bem como se integrasse às ilustrações que o acompanham. No tópico seguinte, encaramos um desafio adicional: o de traduzir uma canção, composta a partir da colagem de duas cantigas populares francesas, dentro da melodia imposta pela partitura encartada no livro.

As canções: Au clair de la lune e Il pleut, bergère

Na lua de Michel Morin, há carneirinhos brancos, les blancs moutons des vagues. Falamos desta construção ao comentar a declaração de Jacqueline Duhême, que desenhou carneiros sobre o mar inspirada no modo de designar a espuma das ondas como moutons blancs, em referência ao pelo branco e frisado das ovelhas. Os cordeiros da lua, explica Michel Morin, cantam canções que não são da terra. A canção dos carneiros, entoada por Michel Morin, está integrada ao texto de L’Opéra de la lune e é composta a partir de colagens de versos de duas cantigas célebres na França: Au clair de la lune e Il pleut bergère. Sua letra, musicada por Christiane Verger, é o segundo desafio de tradução que propomos aqui. A ilustração não aparece como um cerceamento impositivo, já que a maior parte da canção é reproduzida em uma página sem ilustrações. A partitura, contudo, nos parece um balizador relevante: traduzir a letra para que possa ser cantada em português, sobre a mesma melodia6 6 A canção pode ser encontrada em mais de uma interpretação, entre as quais destacam-se a de Magali Noël (Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=8ShH6s1DU7w>. Acesso em: 22 fev. 2022), a de Olivier Caillard (Disponível em: https://www.enfancemusique.com/cd-comptines-chansons-enfance/48-jacques-prevert-12-chansons-pour-les-enfants-3700045232301.html. Acesso em: 22 fev. 2022), a de Renée Mayoud (Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=KS-4DLu45T8. Acesso em: 22 fev. 2022). Esta última faz parte de um peça musical composta a partir do texto de Prévert e registrada em disco por iniciativa da educadora Renée Mayoud, que convidou seu filho Jacques Mayoud a musicar o restante do livro para integrá-lo à “Canção na lua”, de Christine Verger. , possibilitaria uma edição completa do livro, com a partitura que o integra. Não menos importante é a decisão acerca de como tratar as referências culturais - considerando, por exemplo, a pertinência de evocar cantigas de ninar brasileiras que possam funcionar na colagem.

Não pretendemos apresentar uma análise musical da peça, que foge inteiramente à nossa área de competência, mas associar a empreitada tradutória a uma limitação de sílabas poéticas e de ritmo impostos pela melodia. Em relação ao elemento cultural que pesa sobre o cancioneiro francês, propomos ativar as referências acumuladas acerca da cultura popular e infantil brasileira, remetendo-nos a poemas e canções que possam servir como orientação e inspiração para a reinvenção do poema7 7 Enquanto inspiração, pensemos em Gilberto Gil traduzindo Woman no cry: “Não, não chore mais — menina, não chore assim”. . Machado (2012MACHADO, Silvia de Ambrosis Pinheiro. Canção de ninar brasileira: aproximações. 2012. 326 f. Tese (Doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada) - Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.) define a canção de ninar como um gênero poético-musical que pertence especialmente ao campo da cultura oral. Para um acalanto entoado por cordeirinhos das ondas, recordemos as canções de pescador de Dorival Caymmi ou Vinícius de Moraes, ou ainda “Estrela do mar”, de Marino Pinto e Paulo Soledade, na voz de Dalva de Oliveira, além do conjunto propriamente folclórico das canções brasileiras. A referência à pastora, por sua vez, faz pensar em “As pastorinhas”, de Noel Rosa e João de Barro.

Uma questão que se coloca, relativa às especificidades da cultura de chegada, é o fato de a tradição brasileira de cantigas para adormecer ser profundamente marcada pela escravidão:

Ao estudarmos as nossas canções de ninar, especialmente as mais antigas, não podemos negligenciar as influências que receberam do início traumático instaurador deste “povo-nação”. Influências que acentuaram os tons ameaçadores e hostilizadores de figuras, temas e motivos, traços, enfim que compõem nossas canções de ninar. (MACHADO, 2012MACHADO, Silvia de Ambrosis Pinheiro. Canção de ninar brasileira: aproximações. 2012. 326 f. Tese (Doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada) - Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012., p. 29-30).

As experiências brasileira e francesa de formação nacional e, consequentemente, de constituição de um acervo comum de referências culturais, são evidentemente bastante diversas. No entanto, Au clair de la lune e Il pleut bergère, canções eleitas por Prévert para a composição de Chanson dans la lune, são inçadas de uma dialética entre, de um lado, o desencanto, a noite, o mau tempo e, do outro, a possibilidade de refúgio: o espaço da cama, do quarto, do sono. A criança dorme para fugir do mundo mau, como, no Brasil colônia, para fugir do boi da cara preta ou da cuca.

Il pleut, bergère é uma canção do século XVIII. Com letra de Fabre d’Églantine e música de Louis-Victor Simon, foi composta para uma ópera-cômica, gênero derivado da comédia-balé muito popular na época, em que cenas cantadas se alternam com diálogos8 8 Informações coletadas em: http://www.rassat.com/textes_30/Il_pleut_bergere.html. Acesso em: 22 fev. 2022. . A canção anuncia uma tempestade. O eu lírico convida a pastora, com seus carneiros brancos, a se refugiar em sua palhoça, lhe oferece fogo, alimento e leito e, numa última estrofe com sugestões eróticas, promete pedir-lhe a mão em casamento. Reproduzo abaixo os versos iniciais:

Il pleut, il pleut bergère Rentre tes blancs moutons Allons sous ma chaumière Bergère, vite allons J’entends sous le feuillage L’eau qui tombe à grand bruit. Voici venir l’orage, Voici l’éclair qui luit. 9 9 Tradução despretensiosa, apenas para acompanhamento do texto em francês: “Chove, chove pastora / Recolhe teus carneiros brancos / Vamos para a minha palhoça / Pastora, vamos rápido / Escuto sob a folhagem / a água que cai fazendo muito barulho / Eis a tormenta que vem / Eis o raio que reluz”. As traduções nas notas a seguir também são minhas e tampouco têm pretensão poética.

A canção, composta às vésperas da Revolução de 1789, seria um presságio do tumulto iminente e da queda da Bastilha: Voici venir l’orage, / Voici l’éclair qui luit. A Revolução Francesa é de fato citada em L’Opéra de la lune, na página imediatamente seguinte à canção, quando Michel Morin se queixa dos conteúdos escolares, o cálculo e as guerras de religião:

J’aime bien mieux le Quatorze Juillet quand on ouvre tout grand les pri- sons et quand le génie de la Bastille met la lumière dans les lampions. 10 10 “Prefiro muito mais o Quatorze de Julho, quando se escancaram as prisões e quando o gênio da Bastilha põe a luz nos lampiões”. (PREVERT, 1953PRÉVERT, Jacques. L’Opéra de la lune. Images Jacqueline Duhême, musique Christiane Verger. Lausanne: Clairefontaine, 1953., n.p.).

Au clair de la lune, a outra canção à qual Prévert faz referência, é anônima e data do mesmo fim de século. Ela põe em cena três personagens: Pierrot, personagem poeta da commedia dell’arte e amante infeliz de Colombina; Lubin, o valete cortês; e a vizinha, uma morena na casa de quem se faz fogo e em cuja figura têm sido encontradas conotações sexuais (BOUTELOUP, 2004BOUTELOUP, Philippe. Au clair de la lune. In: BOUTELOUP, Philippe (org.). Des musiciens et des bébés. Érès, 2004. p. 41-46. ).

A canção, em sua versão mais corrente, inicia-se assim:

Au clair de la Lune Mon ami Pierrot Prête-moi ta plume Pour écrire un mot Ma chandelle est morte Je n’ai plus de feu Ouvre-moi ta porte Pour l’amour de Dieu 11 11 “Sob a luz da lua / Meu amigo Pierrot, / Me empreste tua pena / Para eu escrever uma palavra / Minha vela está morta / Não tenho mais fogo / Abre-me a porta / Pelo amor de Deus”.

Pierrot, já na cama, manda que o amigo vá à casa da vizinha, onde on bat le briquet. A expressão “bater o isqueiro” - briquet, na época, era um instrumento de metal com o qual se fazia fogo - significava fazer amor (BOUTELOUP, 2004BOUTELOUP, Philippe. Au clair de la lune. In: BOUTELOUP, Philippe (org.). Des musiciens et des bébés. Érès, 2004. p. 41-46. ). A canção, destituída de sua última estrofe, a mais explícita em relação aos conteúdos sexuais, circula há séculos entre as crianças francesas com seus motivos de recusa e desencanto. Há uma busca pelo calor e pelo abrigo do espaço doméstico, refúgio contra a chuva, o frio e a noite. Nesse aspecto, encontramos elementos convergentes na tradição das duas culturas orais.

Au clair de la lune” está menos presente na “Chanson dans la lune” de Prévert que “Il pleut, bergère”, da qual ele cita vários versos. Reproduzimos abaixo o texto de Prévert, tal como ele aparece em L’Opéra de la lune12 12 A versão interpretada por Magali Noël tem algumas variações. :

Il chantait au clair de la terre, Il chantait il fait beau bergère, Il chantait il fait beau berger, Il fait beau comme tout partout. Tout le monde est content comme tout. Aujourd'hui déjà c’est hier Et demain est là lui aussi. Sortez tous de la chaumière Moutons noirs et dromadaires gris Avec l’éléphant et l'âne Et le renard et la souris. Il fait beau comme tout Bergère Il fait beau comme tout partout. Et le blanc croissant de la lune Au grand comptoir du jour qui luit Prend son bain tous les matins Dans le café noir de la nuit et dit bonsoir au crépuscule bon voyage à l’éclair qui fuit et les aiguilles dans la pendule tricotent le beau temps jour et nuit.

A colagem das canções é realizada operando-se duas inversões essenciais: “sob a luz da lua” torna-se “sob a luz da terra” e a “chuva” torna-se “tempo bom”. Mais uma vez, Prévert mobiliza a figura do quiasma para tensionar a existência terrestre/terrena com a projeção poética do real possível por meio da ficção lunar criada por Michel Morin.

Para a tradução da canção, como já exposto, submetemo-nos ao cerceamento do metro melódico ditado pela partitura de Christiane Verger. Outras balizas importantes foram as menções à pastora e seus cordeiros, que aparecem repetidamente nos versos de Prévert e que também estão na ilustração, bem como as rimas, características do gênero canção. Em termos semânticos, a ideia do bom tempo é central no excerto, por sua recorrência e por constituir uma inversão patente da principal canção tradicional evocada pela paródia. A fim de retomar os mecanismos de colagem de maneira identificável para o leitor brasileiro, a tradução cita versos de cantigas populares locais. Reproduzimos abaixo o excerto traduzido:

E cantava oh luar na lagoa E cantava que a noite é boa E cantava não tem garoa tempo bom para o meu amor Sapo canta na beira do rio hoje logo é amanhã saiam logo que não está frio nana neném que a manhã já vem Sapo verde e boi da cara preta com o jumento e a cotia e o carneiro e a ratinha. Tempo bom para a pastorinha Tempo bom para o pastor E o crescente branco da lua sobre o balcão do lindo dia toma banho toda manhã no café preto da noitinha e dá boa noite ao sol que vai boa viagem ao raio que cai e no relógio os seus ponteiros tricotam o tempo bom o dia inteiro.

Considerações finais

A linguagem bastardizada, a linguagem sem imaginação do campo [de concentração], corrói a capacidade de elaboração e de comunicação. No campo tudo tende ao concreto. A metáfora e a capacidade figural da linguagem estão embotadas.

Marcio Seligmann,

posfácio a Auschwitz e depois, de Charlotte Delbo

Em L’Opéra de la lune, Jacques Prévert põe em movimento a linguagem comum, a “linguagem sem imaginação do campo”, como a define Seligmann, para restaurar suas propriedades emancipadoras. Prévert faz isso por meio do deslocamento de ditos e expressões populares e pelo uso de colagens e citações em sua composição poética. Os procedimentos formais dão sentido à narrativa sobre Michel Morin, figura que pode ser interpretada como alegoria do poeta, aquele que restitui à linguagem sua “capacidade figural”. Elege-se a criança como tipo privilegiado para representar a voz poética, com seu ímpeto de elaboração da experiência e, a partir daí, de projeção de mundos possíveis. Acrescentam-se à linguagem verbal as artes plásticas e musicais, cooperando em conjunto para a construção da obra de arte.

Enquanto objeto de tradução, como criação e como crítica, o texto de Prévert desafia estereótipos acerca de um despojamento inerente à literatura infantil. Dentro dos limites condicionantes da categoria - vocabulário restrito, sintaxe direta, síntese, etc. -, o poeta logra compor um texto literário que é crítica da vida, que não apaga suas contradições e que, pela força da própria forma poética, configurada sobretudo pelo deslocamento da linguagem familiar, propõe transformação. Dentro das margens da delicadeza exigida no trato com a criança, cuja esperança é preciso não massacrar, Prévert não mente, não nega a brutalidade, conservando a tensão entre o que se nega e o que se busca.

Os mecanismos parodísticos associam-se à prática tradutória na medida em que operam um desterro da linguagem. É preciso que a linguagem se torne estranha, forasteira, para que se possa sair do estado de torpor, dos significados dados. A língua de Michel Morin abandona a terra, onde ela já não produz mais a vida, e parte para a lua, espaço de criação artística e de restauração da humanidade aos seres humanos. Não se trata de um movimento de evasão, como a literatura não é lugar de evasão, mas de restauração da vitalidade da linguagem - que é justamente o meio pelo qual essa nova realidade se constrói, como negação da realidade dada, do senso comum, e proposição de um espaço onde a vida, a alegria, a criação sejam possíveis.

Nesse sentido, traduzir L’Opéra de la lune nos insere em busca semelhante, uma língua que seja também deslocamento do discurso cristalizado, um desterro voluntário que nos coloca em condições de criar mundos possíveis. Enquanto obra para crianças, ostenta uma miríade de restrições que permitem refletir sobre diversos aspectos da tradução poética. Os ensaios de tradução destes dois pequenos excertos sugerem que a poesia para crianças pode mobilizar mecanismos semelhantes aos da poesia não infantil, que são potencializados pelas restrições impostas pelo receptor, e integrar organicamente a obra poética de grandes escritores. As razões para sua ausência quase completa nos estudos sobre a tradução poética não repousam necessariamente sobre critérios poéticos ou científicos, mas em grande parte sobre um senso comum que cabe ao poeta, ao tradutor de poesia e ao teórico desestabilizar.

REFERÊNCIAS

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  • AMORIM, Silvana Vieira da Silva. Vivenciando a história cinquenta anos depois: “La Lessive”, de Jacques Prévert. Revista de Letras, São Paulo, v. 35, p. 53-63, 1995. Disponível em: Disponível em: http://www.jstor.org/stable/27666640 Acesso em: 22 fev. 2022.
    » http://www.jstor.org/stable/27666640
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  • CAMPOS, Haroldo de. Da tradução como criação e como crítica. In: CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem e outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. São Paulo: Perspectiva, 1992. p. 31-48.
  • COITIT‐GODFREY, Janie. Prévert-Duhême: une complicité créatrice. NVL La Revue, 31 jan. 2018. Disponível em: Disponível em: http://www.nvl-larevue.fr/wp-content/uploads/2018/01/Prevert-Duheme.pdf Acesso em: 22 fev. 2022.
    » http://www.nvl-larevue.fr/wp-content/uploads/2018/01/Prevert-Duheme.pdf
  • COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: UFMG, 1999. 292 p.
  • FALEIROS, Álvaro. Traduzir o poema Cotia: Ateliê, 2012. 192 p.
  • MACHADO, Silvia de Ambrosis Pinheiro. Canção de ninar brasileira: aproximações. 2012. 326 f. Tese (Doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada) - Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.
  • PERRIGAULT, Laurence. Un livre de photographies destiné aux enfants: le petit lion, de Jacques Prévert et Ylla. La Revue Des Livres Pour Enfants, n. 228, p. 71-80, 2006.
  • PRÉVERT, Jacques. L’Opéra de la lune Images Jacqueline Duhême, musique Christiane Verger. Lausanne: Clairefontaine, 1953.
  • SHAVIT, Zohar. Poetics of children's literature Londres: University of Georgia, 1986.
  • 1
    Este artigo seleciona, retoma e amplia reflexões apresentadas por mim durante o ano de 2021 no Congresso Internacional da ABRALIC, com a comunicação “Pela porta dos fundos: um estudo sobre a ambivalência na obra infantil de J.M.G. Le Clézio e Jacques Prévert”, e no III Colóquio Internacional Escrita, Som, Imagem, promovido pela UFMG, com a comunicação “A ópera da lua, de Jacques Prévert: a criação artística como recusa à devastação”.
  • 2
    [Il] changeait des phrases du texte suivant les dessins que j’apportais… ça a été fait vraiment ensemble…et ça me touchait beaucoup, je me rappelle que dans ce que j’avais dessiné, il y avait les vagues de la mer et j’avais fait comme des petits moutons […] et il dit : « oh ! Mais c’est une bonne idée, les blancs moutons des vagues » et ça il l’a mis parce que j’avais mis mes moutons. Et il me disait : « mets ce que tu veux, ce que tu penses, et moi je m’adapterai », donc c’est vraiment un livre que l’on a fait très ensemble.
  • 3
    Os sentidos figurados das palavras e expressões listadas podem ser confirmados em consulta aos verbetes lune, déménager, meubler e plomb no banco lexical do CNRTL. Disponível em: https://www.cnrtl.fr/. Acesso em: 22 fev. 2022.
  • 4
    Para guardar a referência interartes, evoco os versos de Chico César, que fazem jogo semelhante com a linguagem: “Bari, bari, bari / Tem uma bala no meu corpo / Bari, bari, bari / e não é bala de coco”.
  • 5
    As fotos são reproduzidas no blog Histoires de ch’tis, dedicado à história dos mineiros na região da Picardia. Disponível em: http://www.histoires-de-chtis.com/index-photo-15510-Photos_hommage-aux-mineurs-de-jacques-prevert.php. Acesso em: 22 fev. 2022.
  • 6
    A canção pode ser encontrada em mais de uma interpretação, entre as quais destacam-se a de Magali Noël (Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=8ShH6s1DU7w>. Acesso em: 22 fev. 2022), a de Olivier Caillard (Disponível em: https://www.enfancemusique.com/cd-comptines-chansons-enfance/48-jacques-prevert-12-chansons-pour-les-enfants-3700045232301.html. Acesso em: 22 fev. 2022), a de Renée Mayoud (Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=KS-4DLu45T8. Acesso em: 22 fev. 2022). Esta última faz parte de um peça musical composta a partir do texto de Prévert e registrada em disco por iniciativa da educadora Renée Mayoud, que convidou seu filho Jacques Mayoud a musicar o restante do livro para integrá-lo à “Canção na lua”, de Christine Verger.
  • 7
    Enquanto inspiração, pensemos em Gilberto Gil traduzindo Woman no cry: “Não, não chore mais — menina, não chore assim”.
  • 8
    Informações coletadas em: http://www.rassat.com/textes_30/Il_pleut_bergere.html. Acesso em: 22 fev. 2022.
  • 9
    Tradução despretensiosa, apenas para acompanhamento do texto em francês: “Chove, chove pastora / Recolhe teus carneiros brancos / Vamos para a minha palhoça / Pastora, vamos rápido / Escuto sob a folhagem / a água que cai fazendo muito barulho / Eis a tormenta que vem / Eis o raio que reluz”. As traduções nas notas a seguir também são minhas e tampouco têm pretensão poética.
  • 10
    “Prefiro muito mais o Quatorze de Julho, quando se escancaram as prisões e quando o gênio da Bastilha põe a luz nos lampiões”.
  • 11
    “Sob a luz da lua / Meu amigo Pierrot, / Me empreste tua pena / Para eu escrever uma palavra / Minha vela está morta / Não tenho mais fogo / Abre-me a porta / Pelo amor de Deus”.
  • 12
    A versão interpretada por Magali Noël tem algumas variações.

Editado por

Editor-chefe:

Rachel Esteves Lima

Editor executivo:

Regina Zilberman

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    22 Mar 2022
  • Aceito
    15 Maio 2022
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