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Eneida Maria de Souza: uma influência sem angústia

Eneida Maria de Souza: An influence without anguish

RESUMO

Toda grafia da vida aflora aqueles que ficaram grafados em nós. Este ensaio retoma uma trajetória teórica influenciada por uma das grandes críticas literárias brasileiras: Eneida Maria de Souza. As leituras de Crítica Cult- principalmente do artigo “Notas sobre a crítica biográfica” - e de “Pedro Nava: o risco da memória”, entre outros artigos de autoria da intelectual mineira, transcorreram por outros textos que dialogam com a literatura e a história. Em um breve trajeto teórico-biográfico, reflete-se sobre o esfumaçamento dos limites entre gêneros textuais e a convergência entre construções teóricas de diferentes áreas do conhecimento, assim como sobre a marca deixada por “poetas-críticos fortes”.

PALAVRAS-CHAVE:
teoria literária; Eneida Maria de Souza; biografia; história oral; influência

ABSTRACT

Every spelling of life touches those who have been written in us. This essay resumes a theoretical trajectory influenced by one of the great Brazilian literary critics: Eneida Maria de Souza. The readings of Crítica Cult - mainly the article “Notes on biographical criticism” - and “Pedro Nava: the risk of memory”, among other articles authored by the intellectual from Minas Gerais, took place through other texts that dialogue with literature and history. In a brief theoretical-biographical journey, it reflects on the blurring of the boundaries between textual genres and the convergence between theoretical constructions from different areas of knowledge, as well as on the mark left by “strong poet-critics”.

KEYWORDS:
literary theory; Eneida Maria de Souza; biography; oral history; influence

Algumas afirmações feitas podem ser recuperadas, vezes e vezes, sem medo de sermos plagiador de nós mesmos. Início esse ensaio com uma delas:

Algumas vivências e pessoas são fundamentais para aguçar o desejo de expansão de limites. Não cabe aqui elencar os responsáveis por incentivara-me a extrapolar as fronteiras entre os saberes, mas cabe citar os que se imbricam nas reflexões que farão parte deste artigo: Zilda Iokoi, José Carlos Sebe, Eneida Maria de Souza, José Ribeiro e Claudia Moraes. (Nunes, 2018aNUNES, Sandra. História Fotografada, História (Com)Partilhada: imagens e vozes de Cotia. VISUALIDADES, Goiânia, v. 16, n. 2, p. 239-256, 2018a. , p. 242).

Talvez, hoje, após repassar na memória as influências constitutivas de minha trajetória acadêmica e intelectual, eu reescrevesse a ordem dos nomes acima só para dar destaque àquela que acredito ser condensadora de muitas das escolhas teóricas: ENEIDA MARIA DE SOUZA!

Essa influência, talvez, questione a possibilidade de uma angústia, contudo não contraria o sentido dado por Harold Bloom à força de alguns poetas. Em A angústia da influência, Bloom nos apresenta “uma teoria da poesia através de uma descrição da influência poética, ou estória das relações intrapoéticas” (Bloom, 1991BLOOM, Harold. A Angústia da Influência. Tradução de Arthur Nestrovski. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1991., p. 33). Uma das intenções dessa teoria concentra-se em “acabar” com a ideia comum dentro da crítica literária de “como um poeta ajuda a formar outro”. O que o autor dirá é que “a história da poesia (...) é considerada como indistinguível da influência poética”. Esta história é construída pelos “poetas fortes” que se “desleem” uns aos outros, abrindo um espaço para a sua obra dentro do universo da tradição. O que Bloom chama de poeta forte são as grandes figuras participantes de um embate entre precursores. Precursores que são identificados não pela história linear, mas pela leitura de outros textos. Nesse embate há uma negação da anterioridade, ou de um precursor; há a negação de que um texto traz ecos de outros textos.

Estendo o termo poeta aos críticos fortes, posto que, na modernidade, se esfumaçam os limites dos gêneros e a crítica passa a condensar uma força ficcional. Além disso, retomo o sentido de dialogismo: todo texto, crítico ou não, dialoga com outros textos. Eneida foi uma poetisa - para esgarçar mais a terminologia - que com sua força crítico-teórica transformou uma tradição. Com essa poetisa, imensamente forte, enveredei pela crítica biográfica e pela história cultural; seguramente, a vinda para as narrativas orais e para a escuta-construção de histórias de vida sempre estiveram mediadas pela leitura de seu Crítica Cult, pelo universo de livros presentes em suas referências bibliográficas, em suas conversas sobre literatura e outras artes, em suas palestras e comunicações, na biblioteca de sua casa. Com ela passei por uma verdadeira Feira de Livros.

Aliás, foi assim que a conheci. Não me lembro ao certo onde, mas sei que fui apresentada à Eneida em uma Feira de Livros, por Denyse Cantuária. Denyse disse-lhe que meu doutorado, ainda não concluído, era sobre Murilo Rubião. Ela estava sentada em um banco, pernas cruzadas, com uma linda saia e uma sandália de salto alto grosso, como sempre gostava de vestir seu eu. Perguntou-me se já havia lido o livro de Hermenegildo José Bastos, Literatura e colonialismo (Bastos, 2001BASTOS, Hermenegildo José. Literatura e colonialismo - rotas da navegação e comércio no fantástico de Murilo Rubião. Brasília: Editora da UNB, 2001.). Não havia lido! Indagou-me sobre minhas leituras, indicou-me outras, contou-me que conhecera Murilo Rubião... Convidei-a para minha Banca. Iniciava-se ali uma amizade que perduraria por mais de 20 anos!

Ficamos mais próximas mesmo em 2002, ano da conclusão do meu doutorado e da publicação do seu Crítica Cult. Essa proximidade trouxe-me não só o desejo de adentrar mais ainda o universo de Murilo, mas também o dela, o de outros mineiros da literatura e da crítica literária. Adentrar o território da Fale (Faculdade de Letras) da UFMG. Adentrar o espírito mineiro descrito no artigo “O Espaço Nômade do Saber”:

A natureza descentrada do espírito mineiro, contrária aos estereótipos criados em torno dele, por se manter em permanente trânsito, possibilita a convivência salutar com várias vertentes teóricas e metodológicas, reveladoras de uma formação acadêmica que nega a endogenia, assumindo uma perspectiva pluralista e aberta às diferenças. (Souza, 2002aSOUZA, Eneida Maria de. O Espaço Nômade do Saber. In: SOUZA, Eneida Maria de. Crítica Cult. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002a. p. 39-46., p. 41).

Minha trajetória teórico-metodológica iniciou-se na década de 1980 pela graduação em letras na Universidade de São Paulo; pelo mestrado e doutorado no final dos anos 1990 e início de 2000 em comunicação e semiótica na PUC/SP. Tradições distintas, contudo fundamentais, para uma formação interdisciplinar e universalizante. Tradições em que, como rememorou Lígia Diniz, ao citar Leda Tenório da Motta, de um lado situam-se “os herdeiros de Antonio Candido, capitaneados por Roberto Schwarz, e, de outro, os críticos-poetas, de que é referência Haroldo de Campos...” (Diniz, 2019DINIZ, Lígia Gonçalves. Estudos literários no Brasil: frestas para uma crítica da experiência. Aletria, Belo Horizonte, v. 29, n. 3, p. 189-208, 2019., p. 194).

O espírito mineiro solidifica-se em mim no pós-doc, em 2007, na Faculdade de Letras da UFMG, com a supervisão de Eneida. O objeto seria Murilo Rubião, sua relação com as políticas públicas de cultura em Minas, para a escrita de um ensaio biográfico. Das muitas atividades exercidas por Rubião destaca-se a direção do Suplemento Literário de Minas Gerais. Conhecer as rotinas da administração pública permitiu ao escritor um posicionamento crítico diante da estrutura estatal, refletido no “O Ex-mágico da Taberna Minhota”, mas também nos esboços-pedaços de papel de um “conto” intitulado “O Elefante”.

Os manuscritos, datados da década de 1960, tornam-se emblemáticos para a (re)afirmação dos traços de sua obra. Encontrá-los no acervo de Murilo Rubião, no Acervo de Escritores Mineiros, era apenas mais um dos encontros documentais, nesse espaço singular, expansor dos limites da leitura textualista. Exercitava, assim, a crítica biográfica: “A crítica biográfica, ao escolher tanto a produção ficcional quanto a documental do autor - correspondência, depoimentos, ensaios, crítica - desloca o lugar exclusivo da literatura como corpus de análise e expande o feixe de relações culturais” (Souza, 2002SOUZA, Eneida Maria de. O Espaço Nômade do Saber. In: SOUZA, Eneida Maria de. Crítica Cult. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002a. p. 39-46., p. 111).

Todo trabalho com acervos permite “penetrar no labirinto de livros há muito folheados, velhos manuscritos e cartas, antigas fotos e objetos”, desfiando o tecido dos acontecimentos para que o passado seja espaço de reflexão do futuro “a que somos chamados a inventar” (Miranda, 2007MIRANDA, Wander Melo. Memória Futura. Suplemento Literário de Minas Gerais. Acervo de Escritores Mineiros. Belo Horizonte, junho de 2007. Edição Especial. Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais. , p. 3). Permite, ainda, o estabelecimento de conexão entre os “textos”, construindo hipertextos cujos sentidos se constituem pela mobilidade, assim como pela rede de relações possíveis de se estabelecer (Miranda, 2007).

Esse labirinto pede uma posição metodológica que imprima um novo olhar sobre a recuperação do texto da memória. O comportamento respeitoso diante da biblioteca pessoal dos escritores e ao armazenamento de seu arquivo se mescla a uma atitude rebelde do pesquisador, pelo fato de também conquistar a liberdade de poder embaralhar os documentos no momento de sua análise. (Souza, 2002SOUZA, Eneida Maria de. O Espaço Nômade do Saber. In: SOUZA, Eneida Maria de. Crítica Cult. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002a. p. 39-46., p. 44).

A tentativa de reconstrução desse escritor conduziu-me a diferentes documentos: manuscritos, recortes de jornal, cartas, fotografias... Deparei-me com um “conto” jamais estruturado: “O Elefante”. Trata-se de sete folhas com a história e quatro folhas com observações que pretendiam orientar uma elaboração posterior do texto (Nunes, 2008NUNES, Sandra. Elefantes, burocracias e metamorfoses. Acercamentos de um manuscrito muriliano. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DA ABRALIC: Tessituras, Interações, Convergências. 11., 2008. Anais [...]. São Paulo: USP.).

Nelas, encontram-se frases soltas: “A criação do Departamento de Elefantes”; “Portaria sobre sua alimentação”; “Treinamento do Pessoal, bolsas de estudos e cursos”; “Chamar técnico Hindu”; “Lembretes para colocar a briga da Tesouraria com a Contabilidade”; “Observações sobre a compra, sobre a burocracia, até chegar-se ao ‘diretor acaba pedindo demissão’” (Nunes, 2008NUNES, Sandra. Elefantes, burocracias e metamorfoses. Acercamentos de um manuscrito muriliano. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DA ABRALIC: Tessituras, Interações, Convergências. 11., 2008. Anais [...]. São Paulo: USP.).

Murilo Rubião, além de ser um dos fundadores do Suplemento Literário, em 1966, torna-se seu primeiro editor. A linha editorial do Suplemento Literário preocupava-se com a divulgação de trabalhos de críticos consagrados e de iniciantes, no meio universitário, assim como com o lançamento de jovens poetas e escritores mineiros. O gesto do editor fez com que Humberto Werneck, em O Desatino da Rapaziada, afirmasse que Murilo não havia criado mais um suplemento, mas sim um ponto de convergência, encontro e crescimento para os diferentes grupos de jovens escritores e artistas plásticos “chegavam à cena” (Nunes, 2008NUNES, Sandra. Elefantes, burocracias e metamorfoses. Acercamentos de um manuscrito muriliano. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DA ABRALIC: Tessituras, Interações, Convergências. 11., 2008. Anais [...]. São Paulo: USP.).

Essa geração acabou por ser denominada de Geração Suplemento.

As entrevistas, feitas no âmbito do pós-doc, permitiram conhecer Murilo Rubião “gestor” pela voz dos que trabalhavam com ele no Suplemento Literário. Segundo Ângelo Osvaldo, o Suplemento conjugava, de uma maneira moderna, organizada, escritores com artistas plásticos, que ilustravam os textos de poesia e literatura. O jornal era um órgão do Estado de Minas Gerais que circulava aos sábados e o Suplemento saía encartado nessa edição, com uma tiragem à parte. Para Osvaldo, o inusitado da distribuição era chegar a toda a rede burocrática do Estado, às mesas de cartórios, fóruns e escritórios do Ministério Público, fazendo brotar uma informação nova.1 1 Entrevista realizada com o prefeito de Ouro Preto, Ângelo Oswaldo, em janeiro de 2006.

A postura “rebelde” de pesquisadora, aliada ao espírito mineiro, propiciou-me o deslocamento para outras escritas: a da história. Em 2018, a historiadora Emília Viotti pediu a um grupo de professores do programa interdisciplinar de Pós-Graduação em Humanidades, Direitos e outras Legitimidades, da USP, do qual faço parte, que elegesse um autor - da história ou da história cultural - marcante em nossa trajetória acadêmica para refletir sobre seu estilo e escrever sobre um de seus livros.

Tzvetan Todorov emergiu na memória como o autor de Introdução à narrativa fantástica, mas também como o de Goya à sombra das LuzesTODOROV, Tzvetan. Goya, à sombra das Luzes. São Paulo: Companhia das Letras, 2014., duas obras de momentos distintos da sua trajetória. Escolhi o ensaio biográfico! Atento à obra em Goya à sombra das Luzes, em que Todorov constrói Goya criando as “pontes metafóricas” entre a obra e vida do pintor espanhol.

... Todorov relaciona as estruturas pictóricas com questões internas e externas - estéticas ou históricas - ao contexto, possibilitando um conhecimento e uma percepção exata da importância de Goya para a história da arte e apontando para o esboço de um projeto artístico que questiona a perspectiva da Ilustração, assim como os violentos e atrozes acontecimentos derivados da invasão napoleônica na Espanha, da ascensão republicana e, posteriormente, da volta da monarquia e da Inquisição. (Nunes, 2018bNUNES, Sandra. As sombras do Iluminismo: Goya por Todorov. In: NUNES, Sandra. A escrita do historiador: cosmovisões em conflitos. São Paulo: Editora da Unesp, 2018b. p. 133-168., p. 137).

Como apontei nesse artigo, o crítico apropria-se da construção ficcional para acender o desejo pela história dessa personagem. Pelo poder ficcional da teoria, o biografo preenchia as lacunas deixadas pelos documentos, permitindo que se ouvisse o que a obra de Goya pode contar de um tempo e de um autor (Nunes, 2018bNUNES, Sandra. As sombras do Iluminismo: Goya por Todorov. In: NUNES, Sandra. A escrita do historiador: cosmovisões em conflitos. São Paulo: Editora da Unesp, 2018b. p. 133-168.).

Uma vez mais, a teoria sobre a crítica biográfica fazia-se presente!

Com o enfraquecimento das fronteiras entre as disciplinas, estabelece-se um diálogo mais intenso entre áreas do conhecimento, assim como realiza-se o empréstimo de procedimentos e categorias. Abre-se, ainda, a possibilidade de alargar-se os territórios de pesquisa. A pesquisa no Acervo de Escritores Mineiros, a utilização de entrevistas para a construção da trajetória muriliana e para o conhecimento do panorama cultural de sua época e a consulta aos seus manuscritos, cartas, fotografias permitiu-me a passagem para a história oral e para alguns de seus principais teóricos. Um deles é Paul Thompson.

O historiador inglês apresenta-nos a história oral como uma interpretação da história, das sociedades, das experiências sociais e da cultura, centrada na oralidade:

Ao centrar-se na expressão oral do indivíduo e de seu grupo social, a escuta converte-se em método histórico, por se tratar de uma escuta que aciona a voz daquele que se expressa. A construção de narrativas históricas pela oralidade provoca um deslocamento do produtor da narrativa, pois o que ouve, e consequentemente escreve, torna-se um interlocutor, um produtor de conhecimento que primeiro escutou passivamente para assumir depois seu lugar de narrador, assim como aquele que fala inicialmente participa da experiência como um narrador, como alguém elaborador de sua própria fala e organizador de seus pensamentos. (Moraes; Nunes, 2016MORAES, Claudia; NUNES, Sandra. Histórias Vividas, Histórias contadas: Produção Audiovisual de Histórias de Vida e Experiências de Cidadania na Cidade de São Paulo. In: CONFERÊNCIA INTERNACIONAL DE AVANCA, 07, 2016. Avanca: Edições Cine-Clube de Avanca, 2016. p. 956-963., p. 958).

Ao utilizar a oralidade, a história oral transgride a experiência clássica, permitindo que os sujeitos de um processo narrem seu tempo-espaço e sua própria vida.

Dos projetos que desenvolvi com história oral, o que mais dialoga com as ideias condensadas em “Notas sobre a Crítica Biográfica” (Souza, 2002bSOUZA, Eneida Maria de. Notas sobre a crítica biográfica. In: SOUZA, Eneida Maria de. Crítica Cult. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002b. p. 111-120.), sobre a construção de narrativas biográficas, é o “História Fotografada, História (Com)Partilhada”.

O texto de Baudelaire O pintor da vida modernaBAUDELAIRE, Charles. O Pintor da Vida Moderna. São Paulo: Autêntica Editora, 2010., com suas definições de artista como homem da multidão e homem do mundo, traz um sentido de cotidiano e modernidade importante para pensarmos os heroísmos das pessoas “comuns”. O poeta francês enfatiza o quanto no tempo “presente” faz-se um material essencial para registrar e imortalizar uma determinada época e a história cultural. Ao homem do mundo e ao homem da multidão relacionam-se o homem comum e os heroísmos cotidianos, não pertencentes às páginas dos folhetins, produzidos por uma incipiente indústria cultural, que ampliará, posteriormente, sua capacidade de massificação e aniquilação das singularidades. Essa concepção coaduna-se com a história cotidiana, a história do tempo presente. Ou a história dos que pertencem à história, mas são alijados dela (Nunes, 2016).

Faça-se importante observar que, mesmo que suas palavras me habitem, o mérito central da construção de um blog-álbum do cotidiano de moradores da cidade de Cotia vem pela teoria sobre crítica biográfica, história oral e etnografia audiovisual. Teorias nutridoras das pesquisas, debates e reflexões, no Diversitas/USP, e dos encontros no Festival Internacional de Documentários de Melgaço, em Portugal.

“História Fotografada, História (Com)Partilhada” centra-se em fragmentos da história de fotografias escolhidas e narradas pelos habitantes de Cotia. No blog encontram-se apenas fragmentos de textos transcritos e transcriados pelos alunos de Comunicação e Expressão dos Cursos de Gestão Empresarial e Gestão da Produção Industrial da Faculdade de Tecnologia de Cotia.

A experiência partilhada com os alunos da Faap, Fatec e USP, a experimentação de novas metodologias para o ensino da linguagem popular e padrão, da narração pela palavra e pela imagem e a reflexão sobre a imagem de sujeito e de história construída pela mídia levaram-me a construir “História Fotografada, História (Com)Partilhada” como forma de reviver e reavivar a memória local, com as histórias dos “homens comuns” em sua grandiosidade cotidiana.

O projeto inicia-se na disciplina de Comunicação e Expressão e Comunicação Empresarial dos Cursos Tecnológicos de Gestão Empresarial e Gestão da Produção Industrial da Faculdade de Tecnologia de Cotia, ou Fatec Cotia. Experienciar a história oral reforçava a impressão do quanto o narrar constitui-se como um gesto humano significativo, pois alguns grupos e movimentos sociais descobriam o valor de “contarem” a sua história. Thompson (1992THOMPSON, Paul. A Voz do Passado: história oral. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1992.) crê na oralidade como forma ativa de se construir a memória pois as vozes dos sujeitos amplificam-se, fazendo emergir as variadas formas do vivido na sociedade, especialmente as de grupos subalternos.

Assim, o uso da palavra vem se tornando uma possibilidade de construção de memória e ensinamentos de pessoas anônimas, com o compartilhamento de suas experiências de vida, suas potencialidades, sua cultura, e as positividades dos grupos populares. Além disso, reconhece-se o poder da palavra, da “história contada” e registrada, como possibilidade de denúncia das injustiças sociais, de registro da exploração, sofrimento, descumprimento dos direitos humanos. (Moraes; Nunes, 2016MORAES, Claudia; NUNES, Sandra. Histórias Vividas, Histórias contadas: Produção Audiovisual de Histórias de Vida e Experiências de Cidadania na Cidade de São Paulo. In: CONFERÊNCIA INTERNACIONAL DE AVANCA, 07, 2016. Avanca: Edições Cine-Clube de Avanca, 2016. p. 956-963., p. 956).

Como pesquisadora do Diversitas - Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos - e do Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades, ambos da Universidade de São Paulo, desloquei os procedimentos utilizados na construção de acervos em audiovisual de histórias de vida (Bancos de Histórias de Vida) para a sala de aula, com a finalidade de fomentar a escrita de textos e a aprendizagem da norma padrão.

A recuperação da ideia de narrar visava o ensino das tipologias textuais e da épica; o ensino desse tópico reverberava o belíssimo texto de Walter Benjamin (1987BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. p. 197-221.): “O narrador”. Nele, Benjamin reflete sobre como a arte de narrar está em vias de extinção, pois são raras as pessoas que narram devidamente: “É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências” (Benjamin, 1987BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. p. 197-221., p. 198).

A experiência vivenciada, e passada de pessoa a pessoa, sempre foi a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguiam das histórias orais transmitidas pelos inúmeros narradores anônimos (Nunes, 2018aNUNES, Sandra. História Fotografada, História (Com)Partilhada: imagens e vozes de Cotia. VISUALIDADES, Goiânia, v. 16, n. 2, p. 239-256, 2018a. ). Solicitar a escuta da vivência de um outro retomava o valor da reminiscência:

A reminiscência funda a cadeia da tradição, que transmite o acontecimento de geração em geração. Ela corresponde à musa épica no sentido mais amplo. Ela inclui todas as variedades da forma épica. Entre elas, encontra-se em primeiro lugar a encarnada pelo narrador. Ela tece a rede que em última instância todas as histórias constituem entre si. Uma se articula na outra, como demonstraram todos os outros narradores, principalmente os orientais. [...] Quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem a lê partilha dessa companhia. (Benjamin, 1987BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. p. 197-221., p. 211).

Mas por que a escolha de fotografias para estimular a produção textual e a reflexão sobre gêneros literários? Nesse universo de mídias sociais e selfies, a fotografia torna-se uma linguagem propiciadora da reflexão sobre as narrativas ali condensadas e sobre os possíveis diálogos a se estabelecer com a língua e com a literatura.

Toda fotografia representa um pequeno fragmento dos diferentes modos de vida dos atores sociais:

a forma como compreendem o mundo, suas representações, o imaginário e as cenas muito próximas de seu cotidiano. As imagens parecem mais sedutoras do que a realidade, permitem ao observador fazer viagens por lugares nunca dantes imagináveis e descobrem o próprio mundo. (Canabarro, 2005CANABARRO, Ivo. Fotografia, história e cultura fotográfica: aproximações. Revista Estudos Ibero-Americanos, v. 31, n. 2, p. 23-39, 2005. Disponível em: http://revis-taseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/iberoamericana/article/viewFile/1336/104. Acesso em: 18 de ago. de 2023
http://revis-taseletronicas.pucrs.br/ojs...
, p. 23).

Canabarro afirma que a fotografia “revoluciona a memória”, por multiplicá-la e democratizá-la. As imagens fotográficas trazem à cena os atores sociais, permitindo o conhecimento dos cenários em que são desenvolvidas as atividades cotidianas. O primordial dessa reflexão centra-se na fotografia como suporte para a memória coletiva de um grupo, servindo como “uma alternativa a mais de leitura da realidade” (Canabarro, 2005CANABARRO, Ivo. Fotografia, história e cultura fotográfica: aproximações. Revista Estudos Ibero-Americanos, v. 31, n. 2, p. 23-39, 2005. Disponível em: http://revis-taseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/iberoamericana/article/viewFile/1336/104. Acesso em: 18 de ago. de 2023
http://revis-taseletronicas.pucrs.br/ojs...
, p. 26).

O estímulo da escrita pela fotografia propiciava demonstrar que todas as histórias têm um valor significativo pois muitos dos alunos diziam que na sua casa ninguém tinha uma história importante ou interessante. Cabia-me a resposta: “ninguém morre tão pobre que não deixe alguma coisa atrás de si. Em todo caso, ele deixa reminiscência, embora nem sempre elas encontrem um herdeiro” (Benjamin, 1987BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. p. 197-221., p. 212).

Pelas entrevistas, exercitávamos a transcriação: a passagem da oralidade para a escrita, aplicando a norma padrão, tirando os vícios de linguagem, pontuando, reorganizando o discurso, sem que a coloquialidade se perdesse. A transcriação criava uma consciência maior da estrutura semântica e sintática do discurso escrito, assim como das diferenças entre oralidade e escrita (Nunes, 2018aNUNES, Sandra. História Fotografada, História (Com)Partilhada: imagens e vozes de Cotia. VISUALIDADES, Goiânia, v. 16, n. 2, p. 239-256, 2018a. ).

Publicadas ou não, várias foram as narrativas feitas, a partir de fotografias, ao longo desses sete anos, permitindo uma relação de hipertextualidade entre história e literatura. Esse foi o caso da história de Antônio Batista, pai de um aluno que esteve na Guerra do Egito nos anos 1960. Um dos trechos da sua narrativa diz: “E nós brasileiros sofremos o que Deus duvida! (...) Me defendi. Estou vivo… não sei o que aconteceu do outro lado… não gosto de falar sobre isso” (Batista, 2016BATISTA, Antônio. Entrevista concedida ao Projeto História Fotografada, História Compartilhada, em 2 de junho de 2016. Entrevistadores: Samara Rabello, Carlos Mendes, Flavio Tauan e Helton Batista, 2016. ).

A fala de Antônio Batista, “não gosto de falar sobre isso”, parecia vinda do texto de Walter Benjamin:

No final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável. E o que se difundiu dez anos depois, na enxurrada de livros sobre a guerra, nada tinha em comum com uma experiência transmitida de boca em boca. (Benjamin, 1987BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. p. 197-221., p. 198).

A escuta implica em um reconhecimento! Como pontua Benjamin, os livros nada têm em comum com essa experiência transmitida pela boca de um ex-combatente. As frases ditas por Benjamin sobre “uma geração que ainda fora à escola num bonde puxados por cavalo...” (Benjamin, 1987BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. p. 197-221., p. 198) poderiam ser reescritas dessa forma: um senhor que cresce numa região tão distanciada das areias do deserto Egípcio, que reside em um lugar em que o verde se faz bastante presente, ao ver-se sob um céu, toma consciência do “frágil e minúsculo corpo humano” (Nunes, 2018aNUNES, Sandra. História Fotografada, História (Com)Partilhada: imagens e vozes de Cotia. VISUALIDADES, Goiânia, v. 16, n. 2, p. 239-256, 2018a. ).

Na crítica biográfica, assim como na história oral, a escuta constrói uma assinatura: “Quer seja no caso do biógrafo, quer seja no caso do sujeito biografado, sempre ‘é o ouvido do outro que assina’” (Nolasco, 2023NOLASCO, Edgar. Nunca falo do que não admiro - Eneida Maria de Souza: quando teorizar é viver. Aletria, Belo Horizonte, v. 33, número especial, p. 31-51, 2023., p. 41). Posso afirmar, ao finalizar esse ensaio teórico-biográfico, que a escuta se estabeleceu como uma assinatura desde as primeiras conversas, no Edifício Maletta, com Eneida Maria de Souza, para contar-me a história de Murilo Rubião.

Referências

  • BATISTA, Antônio. Entrevista concedida ao Projeto História Fotografada, História Compartilhada, em 2 de junho de 2016. Entrevistadores: Samara Rabello, Carlos Mendes, Flavio Tauan e Helton Batista, 2016.
  • BAUDELAIRE, Charles. O Pintor da Vida Moderna São Paulo: Autêntica Editora, 2010.
  • BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. p. 197-221.
  • BLOOM, Harold. A Angústia da Influência Tradução de Arthur Nestrovski. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1991.
  • CANABARRO, Ivo. Fotografia, história e cultura fotográfica: aproximações. Revista Estudos Ibero-Americanos, v. 31, n. 2, p. 23-39, 2005. Disponível em: http://revis-taseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/iberoamericana/article/viewFile/1336/104 Acesso em: 18 de ago. de 2023
    » http://revis-taseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/iberoamericana/article/viewFile/1336/104
  • DINIZ, Lígia Gonçalves. Estudos literários no Brasil: frestas para uma crítica da experiência. Aletria, Belo Horizonte, v. 29, n. 3, p. 189-208, 2019.
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  • MIRANDA, Wander Melo. Memória Futura. Suplemento Literário de Minas Gerais Acervo de Escritores Mineiros. Belo Horizonte, junho de 2007. Edição Especial. Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais.
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  • 1
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    19 Out 2023
  • Aceito
    25 Out 2023
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