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Hugh Lacey e a busca por uma epistemologia engajada

Hugh Lacey and the search for an engaged epistemology

Hugh Lacey y la búsqueda de una epistemología comprometida

Hugh Lacey (1939)LACEY, H. A Controvérsia sobre os Transgênicos: questões científicas e éticas. São Paulo: Idéias & Letras, 2006. é pesquisador emérito na Swarthmore College, Pennsylvania, Estados Unidos, onde começou a lecionar em 1972. É Doutor em História e Filosofia da Ciência pela Universidade de Indiana (EUA), tendo sido professor visitante na Universidade de São Paulo em diversas ocasiões (1973, 1996, 2000 e 2004). Seus trabalhos atribuem lugares próprios aos valores dentro da tecnociência, procurando mostrar que a abordagem científica materialista precisa assumir também o lugar que as coisas ocupam em sistemas ecológicos e sociais. Lacey é autor de diversos artigos e livros, entre os quais estão Valores e Atividade Científica 1, Valores e Atividade Científica 2, A Controvérsia sobre os transgênicos: questões científicas e éticas, entre outros.

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Revista Aurora (RA): Caro Professor Lacey, antes de tudo gostaria imensamente de agradecer a possibilidade desta entrevista à Revista de Filosofia Aurora. Não poderia deixar de lhe perguntar, primeiramente, como iniciou sua carreira acadêmica e quais foram as razões que o levaram aos debates em filosofia da ciência?

Hugh Lacey (HL): Ingressei na Universidade de Melbourne na Austrália em 1958, inicialmente estudando matemática, física e química. Diversas influências me levaram à Filosofia da Ciência. A mais importante foi a participação em um grupo de discussão dinâmico de alunos, na qual abordávamos questões sobre as relações entre ciência e religião (principalmente o cristianismo). Quando apresentei algumas dessas questões ao meu professor de química, ele sugeriu que eu lesse A. N. Whitehead, A Ciência e o Mundo Moderno, um livro que me cativou e que ainda releio de vez em quando. Então ingressei em um curso de História e Filosofia da Ciência, que consolidava meu interesse pela Filosofia da Ciência e que me levou a dar início ao meu mestrado na Universidade de Melbourne nesta disciplina (1964) e, em seguida, meu doutorado na Universidade de Indiana nos EUA (1966).

Revista Aurora (RA): Em sua carreira acadêmica há uma significativa passagem, em diversos momentos de sua vida, nos debates filosóficos brasileiros realizados na Universidade de São Paulo e, posteriormente, em outros espaços acadêmicos e com pesquisadores brasileiros (J. A. Giannotti, Luiz Henrique Dutra, Alberto Cupani, Pablo Mariconda, entre outros). Que marcas e memórias desse contato com a filosofia brasileira ainda se fazem presentes em seu pensamento? Há problemas e questões sobre a possibilidade de fazer ciência no Brasil que reforçam aquilo apresentado em suas obras?

Hugh Lacey (HL): Sim, após meu casamento com Maria Inês Rocha e Silva (que é paulistana), fiquei na USP de 1969 a 1972 (departamento de filosofia) e posteriormente fui por diversas vezes professor convidado nesse departamento e na IEA-USP, e ocasionalmente em outras universidades brasileiras. J. A. Giannotti e Oswaldo Porchat foram especialmente prestativos quando cheguei à USP, e Pablo Mariconda e Marcos Barbosa de Oliveira estavam entre meus primeiros alunos, e permanecem sendo amigos próximos e valiosos interlocutores. Minha interação com eles se tornou muito mais intensa a partir de 2003, ano em que me aposentei precocemente da Swarthmore College (Pennsylvania, EUA), onde eu era professor desde 1972. Conheci Dutra e Cupani em uma das conferências da Principia em Florianópolis em 1995, e valorizo muito minhas interações frequentes e produtivas com eles desde então.

O desenvolvimento das minhas ideias foi significativamente influenciado por minha interação com colegas brasileiros, especialmente no que diz respeito a questões amplas sobre “ciência e valores”, especificamente sobre o que Pablo Mariconda chamou de “o modelo de interações entre atividades científicas e valores” (M-CV). Olhando para trás, percebo as origens do M-CV em um curso de pós-graduação que fui convidado a ministrar no Instituto de Psicologia da USP em 1970, no qual utilizei ferramentas da Filosofia da Ciência para analisar o conflito entre as abordagens behaviorista e cognitivista à psicologia experimental. Desenvolvi ainda mais essa linha de pensamento quando fui para o Swarthmore College, em colaboração com colegas dos campos da psicologia e filosofia. Meus artigos ligados ao behaviorismo e cognitivismo foram traduzidos por Luiz Henrique Dutra e Cézar A. Mortari, e foram publicados na coletânea Psicologia Experimental e Natureza Humana (Editora da UFSC, 2001). Meu primeiro curso sobre o que se tornou o M-CV foi ministrado na USP em 1996, e desde então seus desdobramentos devem muito às minhas discussões com colegas e alunos na USP, especialmente Mariconda e Oliveira, com os quais tenho artigos em coautoria. Os três volumes de Valores e Atividade Científica foram lançados em grande parte por iniciativa de Mariconda, e com sua ajuda editorial especializada.

As características mais distintivas do M-CV são seu uso da noção de estratégia metodológica, e a ideia de que existem relações de reforço mútuo entre os tipos de estratégia adotados em projetos de pesquisa e a defesa de valores específicos. De acordo com minha análise, as estratégias adotadas na pesquisa científica dominante são praticamente exclusivamente variedades de [do que chamo de] estratégias descontextualizadoras (SDs), e sua adoção tem relações de reforço mútuo com os valores do progresso tecnológico (VPT) e de capital e mercado (VC&M). Argumentei que essas estratégias precisam ser complementadas por estratégias sensíveis ao contexto (SCs) para investigar de maneira adequada fenômenos como os efeitos colaterais ecológicos e sociais do uso de inovações tecnológicas, e que a adoção de SCs tem relações de reforço mútuo com valores de justiça social, participação democrática e sustentabilidade ambiental (VJS/PD/SA).1 1 Para definições resumidas de SDs e SCs, consulte Valores e Atividade Científica 3, p 384-385; e de VPT, VC&M, e VJS/PD/SA, p. 388-390. Minha adesão pessoal aos valores de VJS/PD/SA foi aprofundada a partir do conhecimento de movimentos no Brasil que foram influenciados pela teologia da libertação; e isso, por sua vez, me levou a tomar consciência da importância da agroecologia (e dos graves problemas ligados à agricultura com relação ao agronegócio, por exemplo, quanto ao uso de transgênicos).

Revista Aurora (RA): Há problemas e questões sobre a possibilidade de fazer ciência no Brasil que reforçam aquilo apresentado em suas obras?

Hugh Lacey (HL): Sim, escrever sobre as metodologias da agroecologia (e suas relações com os valores de VJS/PD/SA - que foram viabilizadas a partir de minhas interações com proponentes da agroecologia, primeiro com Rubens Nodari e Miguel Guerra, UFSC, e nos últimos anos com Gabriel Fernandes, praticante e teórico da agroecologia que trabalhou com várias ONGs que fomentam a agroecologia - aumentou a credibilidade e importância do M-CV, e (mais importante) contribuiu para a consolidação das credenciais científicas da pesquisa em agroecologia. Também teve o efeito de que questões sobre a metodologia da agroecologia agora volta e meia estão presentes nos escritos dos principais filósofos da ciência. Além disso, aceitar o M-CV fortalece a possibilidade de relações construtivas entre a pesquisa/conhecimento moderno e os saberes indígenas/tradicionais - um tema que desenvolvi em discussão com colegas da UFBA (em especial Charbel El-Hani) e UnB (em especial Ana Tereza Reis da Silva).

Revista Aurora (RA): Em sua obra‘Is Science Value Free? Values and Scientific Understanding’(Routledge, 1999), o senhor afirma, já nas primeiras linhas, que seu objetivo é explicar e avaliar a visão de que a ciência é livre de valores e, consequentemente, a ciência e os valores interagem e poderiam explicar o próprio desenvolvimento que ocorre nos países de terceiro mundo. Em que consiste efetivamente esta tese que, se assim me permite dizer, é uma espécie de fio condutor de seu pensamento?

Hugh Lacey (HL): A afirmação de que “a ciência é isenta de valores” costuma estar por trás da alegada universalidade do conhecimento científico. No entanto, não há acordo na literatura científica e filosófica sobre o significado da expressão. Em parte, isso ocorre porque a distinção entre valores cognitivos (epistêmicos) e éticos/sociais/(outros tipos de valores não cognitivos) e o papel essencial dos valores cognitivos (epistêmicos) na avaliação de afirmações científicas nem sempre são reconhecidos. E em parte porque formulações típicas da afirmação são facilmente refutadas: por exemplo, que não há papel para valores no raciocínio científico; que a linguagem na qual o conhecimento científico é expresso não deve conter termos carregados de valores; que os valores não desempenham nenhum papel na avaliação de afirmações do conhecimento científico. Em Is Science Value Free? (A Ciência é Isenta de Valores?), argumentei (com base em uma vasta leitura da literatura atual e histórica sobre o tema) que a ideia de que a ciência é isenta de valores é melhor compreendida como a afirmação de que a ciência está comprometida com os três ideais: imparcialidade, neutralidade e autonomia. Argumentei, então, que de fato apenas a imparcialidade é bem respondida na pesquisa científica atual (embora não em toda ela, incluindo pesquisas sobre os riscos do uso de inovações tecnocientíficas); é sempre provável que a autonomia seja difícil de formular de maneiras que geralmente seriam endossadas; e que a neutralidade é amplamente ignorada, uma vez que atualmente a pesquisa científica é realizada quase exclusivamente segundo SDs, e voltada principalmente para a produção de conhecimento que, a pedido, pode servir a interesses que incorporam valores de VPT e de VC&M, muitas vezes em detrimento de interesses que incorporam valores de VJS/PD/SA. No entanto, argumento que a neutralidade poderia ser melhor respondida se fosse entendida como “inclusividade e imparcialidade,” e recursos fossem fornecidos para o engajamento em pesquisas (que incluiriam pesquisas realizadas segundo SCs) que gerariam conhecimento que poderia informar práticas (como agroecologia, ‘tecnologia social’ e saberes indígenas, que são de interesse de movimentos sociais populares no Brasil e em outros lugares) que incorporam valores de VJS/PD/SA. Em Is Science Value Free?, e com maior ênfase em escritos posteriores, explorei as estratégias (SCs) que têm relações de reforço mútuo com os valores de VJS/PD/SA, especialmente os adotados em pesquisas agroecológicas e nos modos indígenas de investigação - encorajados pela minha conclusão de que essa pesquisa não apenas serve a interesses que incorporam esses valores, mas também contribui para a realização mais rica do ideal de neutralidade (inclusão e imparcialidade).

Revista Aurora (RA): O sucesso da ciência moderna esteve, de algum modo, projetado durante muito tempo nas ideias de imparcialidade, autonomia e neutralidade. O neopositivismo da primeira metade do século XX, por exemplo, advoga a favor de uma “linguagem unificada”, verofuncional e, portanto, diretamente ligada a uma ideia de objetividade. Como o senhor recoloca esta questão em sua obra a partir de uma outra perspectiva? Em que medida aceitar ou rejeitar uma teoria é fazer um julgamento de valor cognitivo?

Hugh Lacey (HL): Em meus escritos recentes, incluindo Valores e Atividade Científica 3, utilizo o rótulo “Strategic Pluralism” (Pluralismo Estratégico) (PE), que incorpora M-CV, para a visão que desenvolvi a partir de minha crítica de “a ciência é isenta de valores” - uma vez que destaca a tese de que há uma variedade de estratégias que podem ser adotadas na pesquisa científica, e que a estratégia adotada em um projeto de pesquisa deve ser adequada às características dos objetos ou fenômenos sendo investigados. A noção neopositivista de uma “linguagem unificada” para as teorias científicas só faz sentido se as categorias que são admissíveis nas teorias científicas forem as utilizadas em teorias desenvolvidas segundo SDs e, assim, representarem objetos/fenômenos em termos que os dissociem de seus contextos humanos/sociais/ecológicos. Dessa forma, PE rejeita a aspiração de uma linguagem unificada para as teorias científicas. (Tenho pouco a dizer sobre objetividade em meus escritos.2 2 Ver Values and Objectivity in Science; current controversy about transgenic crops (Valores e Objetividade na Ciência; controvérsia atual sobre os cultivos transgênicos.). Lanham, MD: Lexington Books, 2005. Em geral, tenho evitado isso, pois embora a maior parte dos usos do termo incorpore imparcialidade, eles também vinculam objetividade ao uso de conceitos que não são carregados de valor e, portanto, apenas conceitos que podem ser implementados segundo SDs.)

Com relação a “aceitar ou rejeitar uma teoria (T)”: Argumentei que “aceitar” é uma noção ambígua.3 3 "Sustentando" e "endossando" afirmações no curso de atividades científicas. Studies in History and Philosophy of Science (Estudos em História e Filosofia da Ciência) 53, 2015: 89-95. Para um resumo dos vários sentidos de “aceitar”, consulte Valores e Atividade Cientifica 3, p. 383. Pode significar: (i) “aceitar que T está bem confirmada (de acordo com a imparcialidade) de um domínio específico de fenômenos”; (ii) “aceitar T para desenvolver uma linha de pesquisa”; (iii) “aceitar que T está suficientemente bem confirmada do domínio relevante de dados empíricos (embora menos do que o necessário para estar de acordo com a imparcialidade) que é legítimo que afirmações representadas em T sejam utilizadas para informar práticas, políticas públicas e decisões tomadas em espaços sociais/ecológicos do mundo da vida.” Somente no sentido (i) é “aceitar T” para fazer um julgamento de valor cognitivo; nos demais sentidos, os julgamentos de valor cognitivo estão envolvidos, mas em interação com julgamentos de valor ético/social/outros valores não cognitivos.

Revista Aurora (RA): Uma imagem de mundo completamente científica poderia nos dar a ilusão de que a produção cultural e os valores, de um modo geral, seriam um exercício de racionalidade secundário. O que deveríamos responder diante desta interlocução? O senhor acredita que uma possível prioridade da ciência sobre os valores representaria, então, um grave erro metodológico?

Hugh Lacey (HL): O que é normalmente chamado de “uma imagem de mundo completamente científica” é uma imagem derivada da extrapolação de teorias que foram confirmadas em pesquisas realizadas segundo SDs de um domínio de fenômenos amplamente abrangente. Uma vez que não há lugar para categorias carregadas de valor nas teorias desenvolvidas segundo SDs, segue-se que as categorias de valores não têm papel na descrição de objetos e fenômenos desse “mundo completamente científico”. Valores não podem ser fundamentados no mundo assim imaginado e, normalmente, acabam sendo concebidos como preferências subjetivas (ou, no caso de valores, como racionalidade e progresso, é dado como certo que são valores universais). No entanto, sustentar essa imagem pressupõe uma concepção inadequada da pesquisa científica, que ignora que muitos objetos/fenômenos do mundo da vida somente podem ser adequadamente representados (descritos e explicados) com o uso de categorias que são utilizadas em teorias desenvolvidas segundo SCs. É uma imagem, não do mundo da vida, o mundo da vida cotidiana e da experiência, mas de um “mundo” abstraído do mundo da vida pela dissociação de objetos/fenômenos de suas propriedades contextualmente importantes e carregadas de valor.

Segundo essa imagem, o caráter geral do mundo permanece inalterado quando a natureza é devastada ecologicamente (ou poluída) devido aos usos de uma inovação tecnocientífica; tanto antes como depois da ocorrência da devastação, os fenômenos que ocorrem no espaço onde a inovação é implementada são explicáveis em termos da ordem subjacente (estruturas, processos, interações e leis) do espaço. “Devastado ecologicamente” não é uma categoria que possa ser utilizada em teorias desenvolvidas segundo SDs, pois é eticamente carregada de valores e, portanto, não tem lugar em uma descrição do “mundo completamente científico”. Aquilo a que se refere - da perspectiva do “mundo completamente científico” - é apenas um arranjo diferente dos objetos na ordem subjacente do espaço, não uma mudança no caráter geral do espaço, um arranjo que pode ser descrito com categorias admissíveis segundo SDs que representam os fenômenos dissociados do contexto e, portanto, que não permitem afirmar diferenças eticamente relevantes. Então, não há barreiras éticas de base racional para remodelar o mundo de acordo com seus interesses para sustentar valores relacionados ao exercício do controle sobre objetos naturais e para descartar a relevância de valores (por exemplo, os de VJ/SPD/SA) que estão ligados a concepções não redutíveis ao controle da relação dos seres humanos com objetos naturais (por exemplo, cuidar, adaptar-se) que se sustentam quando se sustentam concepções do mundo que não se abstraem do lugar dos seres humanos no mundo da vida.

Assim, da perspectiva de PE, o “mundo completamente científico” é uma abstração que tem origem em privilegiar a adoção de SDs na pesquisa científica (e subestimar a adoção de SCs); e, desde que a adoção de SDs tem relações de reforço mútuo com a manutenção dos valores de VPT (isto é, valores relacionados ao exercício do controle sobre objetos naturais), manter que esse mundo abstrato é o “mundo real” serve a interesses que incorporam os valores de VPT, e esses valores estão atrelados aos de VC&M. O engajamento em pesquisas científicas realizadas exclusivamente segundo SDs pode ser explicado e “justificado” apenas por referência a esses valores. Ironicamente, endossar a imagem abstrata do mundo, embora não haja nela lugar para valores, é “justificado” apenas se os valores declarados forem mantidos. Para PE, portanto, é um grave erro metodológico considerar que a ciência é de alguma forma anterior aos valores. De acordo com isso, existem conexões dialéticas importantes entre a ciência e os valores (éticos/sociais, etc.) (e visões das relações humanas com objetos do mundo natural e o mundo da vida): a adoção de estratégias na pesquisa científica tem relações de reforço mútuo com a defesa de valores específicos; e a defesa de valores tem pressupostos que estão abertos à investigação científica, que requer a adoção de SCs e SDs.

Revista Aurora (RA): Agora, por outro lado, considerando a seleção dos métodos de pesquisa, a disseminação de descobertas e o próprio controle da informação científica, em que medida os valores deveriam tocá-los e, em alguns casos, estabelecer freios sociais para determinadas condutas (manipulação genética, transgênicos, etc.)?

Hugh Lacey (HL): Como pano de fundo para responder essa questão, é importante ter em mente não apenas as conquistas positivas da ciência moderna, mas também sua contribuição para provocar as múltiplas crises (principalmente as mudanças climáticas) que confrontam o mundo da vida hoje em dia. Do lado positivo: a pesquisa científica moderna tem sido notavelmente bem-sucedida nas dimensões cognitiva e tecnocientífica. Em primeiro lugar, produziu e continua produzindo em ritmo acelerado e sem fim à vista um enorme estoque de conhecimento confiável e compreensão de fenômenos do mundo da vida, dos processos, interações e estruturas (e seus componentes), além de leis que fundamentam e permeiam todos os fenômenos. Em segundo lugar, muito desse conhecimento tem sido usado para informar inovações eficazes em tecnologia, medicina, comunicações, transporte e outras áreas que tendem a ser valorizadas positivamente, e que - por meio do aprimoramento das capacidades humanas de agir e de se comunicar, de inovar tecnologicamente, e de resolver problemas que até então permaneciam intratáveis - contribuíram muito para transformar fundamentalmente o mundo da vida; e, à medida que a pesquisa científica se desenvolve, as inovações cientificamente informadas estão desempenhando papéis em domínios cada vez mais extensos do mundo da vida - de modo que o mundo da vida contemporâneo está se tornando cada vez mais dominado por produtos de desenvolvimentos científicos.

No entanto, a utilização de diversos tipos de inovações tecnocientíficas, em espaços sociais/ecológicos do mundo da vida que são moldados por condições socioeconômicas características da modernidade, também ocasiona efeitos colaterais nocivos. Isso inclui poluição, enfermidades, destruição de ecossistemas, perda da biodiversidade, aumento de gases do efeito estufa na atmosfera - e enfraquecimento do respeito pelos direitos humanos e justiça social. De fato, não apenas os benefícios das inovações tecnocientíficas não foram distribuídos igualmente entre povos e países ricos e pobres, mas também, sob as condições socioeconômicas prevalecentes, diversos povos pobres sofreram muito com a perturbação de suas vidas provocada pela introdução de algumas das inovações no mundo da vida. Esses efeitos, ao se acumularem, resultaram nas crises ambiental, sanitária e climáticas, com suas dimensões humanas e sociais às vezes devastadoras que hoje afligem o mundo da vida. Além disso, relativamente pouco esforço tem sido feito para realizar pesquisas científicas que explorem adequadamente os mecanismos que produzem esses efeitos e os meios para corrigi-los, de modo que a ciência não produziu o conhecimento que seria necessário para lidar adequadamente com essas crises; e quando ‘soluções’ científicas são propostas para um problema (por exemplo, para a fome e a desnutrição), tendem a ser implementadas sem que seja feita uma análise empírica do nexo causal que gerou o problema, muitas vezes deixando esse nexo em vigor, e assim falhando em lidar com o problema ou mesmo exacerbando-o com seus sofrimentos associados.

Naturalmente, apontar as consequências negativas do uso de algumas inovações tecnocientíficas não anula o fato do êxito cognitivo e tecnocientífico da ciência moderna. No entanto, isso levanta a questão de saber se o valor geralmente atribuído a esse êxito deve ser qualificado e se a trajetória da ciência que o continua deve ser reorientada para permitir que a pesquisa científica responda mais adequadamente aos esforços para superar as crises e aos interesses atrelados aos valores de VJS/PD/SA. Tendo em vista o fato de que o conhecimento científico informa práticas que levaram (e provavelmente continuarão levando) a tais consequências negativas no mundo da vida, defendo a proposta de que políticas públicas devem exigir a adoção de medidas de precaução como componente indispensável de pesquisas realizadas em instituições científicas. Medidas de precaução apropriadas podem recomendar limitações e causar atrasos na introdução e uso das inovações enquanto se aguarda uma investigação mais aprofundada de efeitos colaterais potencialmente perigosos (por exemplo, nas áreas que você mencionou, manipulação genética, transgênicos, etc. - e atualmente a IA), bem como alternativas às inovações propostas. Qual deve ser o conteúdo de tais políticas públicas (e, portanto, quais devem ser as prioridades da pesquisa científica), bem como quem deve participar das decisões, estão entre as questões que precisam ser abordadas com urgência junto aos esforços para fortalecer a democracia participativa.

Revista Aurora (RA): O senhor tem defendido, ao longo dos anos, que a ideia de que a ciência é livre de valores não significa que não haja interação entre a ciência e os valores. Esta posição não poderia, de algum modo, assumir os riscos de uma leitura relativista de ciência?

Hugh Lacey (HL): Argumentei que atualmente a pesquisa científica é amplamente realizada segundo SDs e, portanto, serve especialmente bem aos valores de VPT e de VC&M em detrimento de outros valores. Argumento ainda que ao adotar SCs apropriadas (por exemplo, as adotadas em pesquisas agroecológicas4 4 Consulte Valores e Atividade Científica 3, cap. 7 para as características das SCs adotadas na agroecologia. ) que possam produzir conhecimento, que atendam a interesses que incorporam os valores de VJS/PD/SA, é dado um passo no sentido de responder mais adequadamente à neutralidade (inclusividade e imparcialidade). O ponto não é substituir a adoção de SDs por SCs, onde SDs são aptas para apreender os objetos/fenômenos sendo investigados, mas permitir o uso de SCs ao investigar fenômenos que não podem ser adequadamente investigados segundo SDs. Segundo PE, não investigamos “o mundo”, mas domínios específicos de objetos/fenômenos do mundo da vida - e diferentes estratégias precisam ser adotadas como aptas em função das características dos objetos/fenômenos sendo investigados. Destacar que existem objetos/fenômenos cuja investigação adequada requer a adoção de SCs não nega a existência de vários domínios de objetos/fenômenos que são devidamente investigados segundo SDs, e que o conhecimento obtido em pesquisas adequadamente realizadas segundo SDs é consistente com o conhecimento obtido em pesquisas adequadamente realizadas segundo SCs. Pode-se estar interessado (por razões relacionadas a valor) em investigar certos tipos de fenômenos ao invés de outros (por exemplo, os relacionados à agroecologia ao invés de formas de agricultura voltadas para o agronegócio), mas isso não torna o conhecimento obtido (diferente de seu significado ou importância) “relativo aos” interesses que levaram às investigações que o geraram. Os valores éticos/sociais que alguém sustenta nada têm a ver com avaliar se uma teoria manifesta ou não os valores cognitivos altamente de um domínio de objetos/fenômenos de acordo com a imparcialidade - embora sejam essenciais para julgar o valor social (significado, importância) do conhecimento obtido sobre objetos/fenômenos no domínio. Por exemplo, não atribuo alto valor social ao conhecimento obtido sobre o desenvolvimento e funcionamento dos transgênicos e a eficácia do seu uso, mas isso nada tem a ver com o fato de que está bem confirmado que o uso de vários tipos de transgênicos produz eficazmente os efeitos desejados por seus usuários. Quando uma afirmação se estabelece como conhecimento científico, essa afirmação não é estabelecida em relação a uma perspectiva de valor em particular; não é conhecimento apenas para quem valoriza as aplicações que ele informa - embora quem não valoriza as aplicações possa não ter interesse nas pesquisas realizadas em que o conhecimento é obtido. Às vezes, é claro, as pessoas relutam em aceitar que o conhecimento científico estabelecido pode não ser significativo (socialmente importante), e portanto sempre há o risco de que a abordagem pluralista estratégica da ciência receba (equivocadamente) uma leitura relativista.

Revista Aurora (RA): Entre as teses defendidas em seu trabalho, o senhor afirmou que a comunidade científica deveria conduzir suas investigações em instituições autogovernadas que estão livres da 'interferência externa’, mas com recursos suficientes para conduzir suas investigações de forma eficiente. Isso significa, então, que a autonomia está subordinada à imparcialidade e à neutralidade. Como o senhor localiza esta tese nos debates contemporâneos produzidos pela filosofia da ciência (aqui, especificamente, as reflexões de Kuhn, Feyerabend e Bachelard)?

Hugh Lacey (HL): Sim, para PE, a autonomia está subordinada à imparcialidade e neutralidade (inclusão e imparcialidade). Reconheço que é difícil, na prática, definir a autonomia de uma forma robusta que não seja facilmente subvertida pela ideia de “fazer o que se quer fazer” e querer fazer pesquisa em áreas em que há financiamento abundante, sem muita preocupação em demonstrar o valor social (significado) do conhecimento adquirido, ou sua neutralidade. Esse é um assunto que requer uma discussão muito mais crítica.

Apresentei a noção de estratégia (em Is Science Value Free?) no curso da reflexão crítica sobre a noção de paradigma de Kuhn, e o segui ao pensar os critérios para avaliar o conhecimento científico e a compreensão como valores cognitivos. De outro modo, minhas ideias divergem das dele. A Estrutura das Revoluções Científicas não discute de forma alguma a ciência aplicada, como se fosse possível entender a trajetória da pesquisa científica sem considerar o papel do conhecimento científico em informar as práticas no mundo da vida, e por isso a neutralidade não é uma de suas preocupações. Ele defendia a imparcialidade e valorizava muito a autonomia. PE é mais compatível com as ideias de Feyerabend do que com as de Kuhn, embora nossos modos de formular essas ideias sejam bem diferentes. Minha noção de SCs é influenciada pela defesa de Feyerabend da credibilidade dos saberes indígenas. Ele compartilhava da minha crítica à prioridade dada às SDs na ciência moderna, e minhas dúvidas sobre a definição de uma noção robusta de autonomia. (Não estou suficientemente familiarizado com os escritos de Bachelard para comentar sobre a relação de PE com suas visões.) A propósito, as interações com o filósofo da ciência inglês/indiano Roy Bhaskar influenciaram significativamente o desenvolvimento das minhas ideias sobre esses temas, e minhas ideias sobre imparcialidade e neutralidade foram testadas em interações com as filósofas da ciência feministas Helen Longino e Elizabeth Anderson.

Revista Aurora (RA): O senhor acredita que a ciência pode ser usada para resolver questões sociais e políticas? Se sim, como isso pode ser alcançado? E como o senhor enxerga a onda negacionista que, de maneira mais aberta, tem tomado o espaço público após a pandemia?

Hugh Lacey (HL): Penso que o conhecimento científico é necessário para abordar determinados problemas sociais - por exemplo, os relacionados com as crises que atualmente confrontam o mundo da vida. A crise do aquecimento global/mudanças climáticas, por exemplo, não podem ser resolvidas (mitigadas, adaptadas) a menos que “tecnologias verdes” apropriadas sejam desenvolvidas e implementadas no mundo da vida, e seu desenvolvimento deve ser informado por pesquisas apropriadas realizadas segundo SDs. No entanto, esse tipo de pesquisa, embora necessária, não é suficiente. Questões-chave - sobre, por exemplo, quais são as “tecnologias verdes” apropriadas para desenvolver, como motivar as mudanças necessárias, quais mudanças de estilo de vida são necessárias, o que pode ser aprendido a partir dos saberes indígenas e como incorporar povos indígenas (por exemplo) ao lidar com a sustentabilidade e recuperação da floresta amazônica - não podem ser investigadas sem a adoção de SCs. Portanto, sim, o conhecimento científico é necessário para abordar determinados problemas sociais (com implicações políticas), mas deve incluir toda a ciência relevante (aquela que requer a adoção de SCs e SDs), incluindo saberes indígenas.

Sobre “a onda negacionista” em relação à pandemia: penso que ela precisa ser situada no contexto das formas mais amplas de negacionismo em relação à ciência, principalmente no que diz respeito às fontes causais humanas do aquecimento global/mudança climática, que têm grande impacto em todo o mundo hoje. O negacionismo mais amplo foi fomentado em grande parte por interesses neoliberais que são ameaçados pelas mudanças sociais/econômicas/políticas que são necessárias para reparar o aquecimento global, e que preferem o risco de uma catástrofe global a perder a hegemonia do neoliberalismo - e esses interesses têm contado com o apoio de importantes agentes políticos e setores influentes da mídia. O negacionismo em relação à pandemia serviu a esses interesses, mesmo que apenas desviando a atenção da urgência de lidar com o aquecimento global. Mas isso é apenas parte da história. Deixando de lado que existem pessoas que rejeitam todas as vacinas, grupos fundamentalistas religiosos e reacionários têm seus próprios motivos para desafiar as perspectivas da “elite liberal,” que consideram incluir o estabelecimento científico (scientific establishment).

Além disso, a situação tornou-se confusa porque o estabelecimento científico não desempenhou um papel uniformemente positivo no enfrentamento da pandemia. Certamente, as pesquisas realizadas rapidamente (segundo SDs) que levaram ao desenvolvimento de vacinas razoavelmente eficazes contribuiu em muito para evitar que muito mais danos fossem causados pelo coronavírus. A importância dessa conquista não deve ser diminuída. No entanto, não ter apresentado uma mensagem inicial clara sobre os mecanismos de disseminação do coronavírus e orientações claras sobre o uso de máscaras, distanciamento social, etc., gerou o contexto para questionar a credibilidade do estabelecimento científico em todas as questões relacionadas à pandemia (ao menos nos EUA, onde acompanhei de perto essa questão). (Observe que essas questões precisam ser informadas por pesquisas que envolvem a adoção de SCs e SDs). E sua credibilidade foi ainda mais corroída pelas disputas não resolvidas entre cientistas (e órgãos governamentais e de inteligência) a respeito das origens da pandemia (se foi ocasionada pela transmissão por intermediários animais - de morcegos para humanos - ou pela liberação acidental de um coronavírus criado em um laboratório na China, no qual pesquisas relevantes foram parcialmente financiadas por instituições científicas públicas dos EUA), e o bloqueio de pesquisas abertas sobre o assunto por institutos científicos financiados pelos governos chinês e norte-americano. É difícil discernir, em muitas das partes dessas disputas, um compromisso claro com a imparcialidade, neutralidade e pelo menos certa medida de autonomia. Penso que a confiança generalizada nos resultados de pesquisas científicas e nas declarações de instituições científicas depende da consciência pública de que, em suas pesquisas, os cientistas estão tentando responder a esses ideais - e enquanto as pesquisas realizadas segundo SCs forem marginalizadas, esses ideais não podem ser respondidos de forma confiável.

Revista Aurora (RA): Agradecendo-lhe, mais uma vez, pela oportunidade desta entrevista, gostaria de fazer uma última pergunta: qual o futuro da filosofia e o que nos espera diante do impacto trazido pelas novas tecnologias? Ainda há espaço para uma reflexão crítica, engajada e transformadora sobre os avanços da ciência?

Hugh Lacey (HL): Essa é uma questão importante - e difícil - que precisa ser discutida de forma ampla e urgente na comunidade filosófica. Pessoalmente, às vezes me sinto sobrecarregado com a rapidez com que novas tecnologias estão surgindo e, infelizmente, não tenho competência (e como estou envelhecendo, me falta tempo para desenvolver a competência) para contribuir para a discussão sobre a maioria delas (notavelmente as recentes inovações da IA). Há alguns anos, decidi que iria me concentrar em uma das novas tecnologias, os transgênicos. Ao entrar em polêmicas sobre a segurança do uso de transgênicos, percebi que não basta criticar o uso de transgênicos; é crucial enfatizar que há alternativas melhores, e isso me levou a escrever sobre a agroecologia e as metodologias da pesquisa agroecológica, e a mostrar seu papel no fortalecimento do caso para PE. Esses escritos receberam uma resposta positiva em diferentes partes do Brasil, sugerindo-me que há um futuro para a filosofia que lida (epistemológica e eticamente) com questões que são de importância existencial imediata - e lida com elas no curso do diálogo com pessoas que estão diretamente implicadas nas questões. Há espaço para “uma reflexão crítica, engajada e transformadora sobre os avanços da ciência”. Atualmente não é um espaço amplo, e qualquer espaço que puder ser encontrado precisa ser ocupado e expandido passo a passo - e precisa construir uma reflexão crítica sobre todas as novas tecnologias e (onde os riscos de utilizá-las são julgados como perigosos demais) a exploração sistemática de alternativas que possam servir de base para novos desenvolvimentos do mundo da vida que reverteriam os danos causados pela multiplicidade das crises contemporâneas. Naturalmente, há grandes obstáculos para fazer isso, e eles não podem ser superados a menos que encontremos maneiras coletivas de cultivar a esperança de que os obstáculos possam ser superados e de agirmos informados por essa esperança.

Obrigado pelas perguntas interessantes e investigativas. Foi um prazer respondê-las.

A entrevista foi cedida ao Professor Léo Peruzzo, Editor da Revista de Filosofia Aurora, em 10/05/2023.

Referências

  • LACEY, H. A Controvérsia sobre os Transgênicos: questões científicas e éticas. São Paulo: Idéias & Letras, 2006.
  • LACEY, H. Is Science Value Free?: Values and Scientific Understanding. London: Routledge, 1998.
  • LACEY, H. Valores e Atividade Científica 1. São Paulo: Editora, 34, 2008.
  • LACEY, H. Valores e Atividade Científica 2. São Paulo: Editora, 34, 2009.
  • LACEY, H. Values and Objectivity in Science: The Current Controversy about Transgenic Crops. Maryland: Lexington Books, 2005.
  • 1 Para definições resumidas de SDs e SCs, consulte Valores e Atividade Científica 3, p 384-385; e de VPT, VC&M, e VJS/PD/SA, p. 388-390.
  • 2 Ver Values and Objectivity in Science; current controversy about transgenic crops (Valores e Objetividade na Ciência; controvérsia atual sobre os cultivos transgênicos.). Lanham, MD: Lexington Books, 2005.
  • 3 "Sustentando" e "endossando" afirmações no curso de atividades científicas. Studies in History and Philosophy of Science (Estudos em História e Filosofia da Ciência) 53, 2015: 89-95. Para um resumo dos vários sentidos de “aceitar”, consulte Valores e Atividade Cientifica 3, p. 383.
  • 4 Consulte Valores e Atividade Científica 3, cap. 7 para as características das SCs adotadas na agroecologia.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    31 Maio 2023
  • Aceito
    31 Maio 2023
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