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Impacto da pandemia da COVID-19 na predição de óbito por acidente vascular cerebral em uma região carente do Brasil: um estudo de coorte retrospectiva

O acidente vascular cerebral (AVC) e as doenças cardiovasculares são as principais causas de morbidade e mortalidade em todo o mundo. Contudo, indicadores epidemiológicos mostram diminuição do número de mortes por AVC nas últimas décadas, o que pode ser atribuído aos avanços nas intervenções clínicas. A pandemia da doença pelo coronavírus 2019 (COVID-19) e a reorientação dos serviços de saúde suscitaram preocupações sobre o diagnóstico e o tratamento de outras doenças e problemas de saúde, sobretudo em áreas desfavorecidas.(11 Mahl C, Melo LR, Almeida MH, Carvalho CS, Santos LL, Nunes PS, et al. Delay in head and neck cancer care during the COVID-19 pandemic and its impact on health outcomes. Braz Oral Res. 2020;34:e126.)

Embora a ocorrência de AVC seja relativamente baixa entre pacientes hospitalizados com COVID-19, o risco de morte é maior entre aqueles com essas duas condições.(22 Nannoni S, de Groot R, Bell S, Markus HS. Stroke in COVID-19: a systematic review and meta-analysis. Int J Stroke. 2021;16(2):137-49.) Assim, este estudo pretendeu investigar o impacto da pandemia da COVID-19 na previsão de mortes por AVC numa região de baixa renda do Brasil. Tratou-se de coorte retrospectiva de doentes com AVC admitidos num hospital terciário no estado de Sergipe entre fevereiro de 2019 e fevereiro de 2020 (período pré-pandêmico) e entre março de 2020 e março de 2021 (durante a pandemia). Sergipe localiza-se na Região Nordeste do Brasil, a qual tem a maior concentração de pessoas em situação de grande vulnerabilidade no país.

As seguintes variáveis preditoras foram dicotomizadas: sexo (feminino ou masculino); idade (< 60 anos ou ≥ 60 anos); estado civil (com parceiro(a) [casado, união estável ou outras formas de união] ou sem parceiro(a) [viúvo, solteiro ou divorciado]); intubação orotraqueal (sim ou não); via de alimentação alternativa (sim ou não); disfagia (sim ou não); disfunção motora pós-AVC (sim ou não); dificuldades de comunicação pós-AVC (sim ou não); dispneia (sim ou não); confusão mental (sim ou não); duração da internação (< 14 dias ou ≥ 14 dias); período do AVC (pré-pandemia ou durante a pandemia da COVID-19); e diagnóstico laboratorial da COVID-19 com reação em cadeia da polimerase via transcriptase reversa (RT-PCR; sim ou não). Elaborou-se um modelo de regressão logística múltipla com seleção backward para avaliar a influência das variáveis preditoras no resultado de interesse (morte hospitalar). Utilizou-se como medida de associação razão de chances (RC) com intervalo de confiança de 95% (IC95%). As análises foram realizadas utilizando o programa JASP (JASP Team, Amsterdam, Países Baixos), na versão 0.13.

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Humanos da Universidade Federal de Sergipe (número de aprovação 4.219.456). Todos os participantes deram consentimento esclarecido por escrito.

Este estudo incluiu 253 pacientes com AVC: 115 que tiveram AVC antes da pandemia e 138 que tiveram AVC durante a pandemia. A maioria dos pacientes era homens (53,8%) com mais de 60 anos de idade (82,6%). A COVID-19 foi identificada em 20 (14.5%) pacientes com AVC hospitalizados durante a pandemia. Foram registadas 53 mortes hospitalares, 26 (49,1%) ocorridas antes da pandemia e 27 (50,9%) durante a pandemia. Foram registradas 10 (37%) mortes durante a pandemia entre pacientes infectados com coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2). A necessidade de intubação orotraqueal (RC = 7,01; IC95% 2,97 - 16,55; p < 0,001) e a via de alimentação alternativa (RC = 5,60; IC95% 2,38 - 13,16; p < 0,001) e infecção por SARS-CoV-2 (RC = 4,07; IC95% 1,26 - 13,09; p = 0,019) foram associadas à morte entre pacientes com AVC.

Este estudo examinou como a pandemia da COVID-19 afetou a previsão de mortes por AVC num dos estados do Brasil com as mais altas taxas de vulnerabilidade socioeconômica. Embora algumas condições, como a intubação orotraqueal e a utilização de alimentação alternativa, sejam fatores prognósticos conhecidos entre os pacientes com AVC, estes resultados apontam a infecção por SARS-CoV-2 como um novo fator associado à morte nessa população. Contudo, não foram observadas repercussões do período de hospitalização na ocorrência de mortes hospitalares por AVC, possivelmente devido aos cuidados continuados de crises agudas de AVC, apesar das dificuldades impostas pela pandemia no Brasil.

Tabela 1 Análises univariadas e multivariadas de fatores associados à morte entre pacientes internados com acidente vascular cerebral
Variáveis n Mortes n (%) Análise univariada Análise multivariada (modelo final)
RC (IC95%) Valor de p RC (IC95%) Valor de p
Sexo
Masculino 136 27 (19,9) 1,15 (0,63 - 2,11) 0,644
Feminino 117 26 (22,2)
Idade (anos)
< 60 44 7 (15,9) 1,49 (0,62 - 3,57) 0,369
≥ 60 209 46 (22,0)
Estado civil
Sem parceiro(a) 147 31 (21,1) 0,98 (0,53 - 1,81) 0,949
Com parceiro(a) 106 22 (20,8)
Entubação orotraqueal
Não 207 27 (13,0) 8,67 (4,26 - 17,62) < 0,001 7,01 (2,97 - 16,55) < 0,001
Sim 46 26 (56,5)
Duração da internação (dias)
< 14 179 40 (22,4) 0,74 (0,37 - 1,48) 0,397
≥ 14 74 13 (17,6)
Via de alimentação alternativa
Não 128 9 (7,0) 7,18 (3,32 - 15,52) < 0,001 5,60 (2,38 - 13,16) < 0,001
Sim 125 44 (35,2)
Disfunção motora pós-AVC
Não 83 23 (27,7) 0,56 (0,30 - 1,04) 0,067
Sim 170 30 (17,6)
Dificuldades de comunicação pós-AVC
Não 112 28 (25,0) 0,65 (0,35 - 1,19) 0,160
Sim 141 25 (17,7)
Confusão mental
Não 192 37 (19,3) 1,49 (0,76 - 2,92) 0,246
Sim 61 16 (26,2)
Período do AVC
Antes da pandemia 115 26 (22,6) 0,833 (0,45 - 1,53) 0,554
Durante a pandemia 138 27 (19,6)
Infecção por SARS-CoV-2
Não 233 43 (18,5) 4,42 (1,73 - 11,23) 0,002 4,07 (1,26 - 13,09) 0,019
Sim 20 10 (50,0)
  • RC - razão de chances; IC95% - intervalo de confiança de 95%; AVC - acidente vascular cerebral.
  • Há evidências de que o SARS-CoV-2 tem potencial de neuroinvasão(33 Araújo NM, Ferreira LC, Dantas D P, Silva DS, Santos CA, Cipolotti R, et al. First report of SARS-CoV-2 detection in cerebrospinal fluid in a child with Guillain-Barré syndrome. Pediatr Infect Dis J. 2021;40(7):e274-6.) e a ocorrência de AVC entre pacientes com COVID-19 é mais elevada do que entre pessoas com influenza.(44 Merkler AE, Parikh NS, Mir S, Gupta A, Kamel H, Lin E, et al. Risk of ischemic stroke in patients with coronavirus disease 2019 (COVID-19) vs patients with influenza. JAMA Neurol. 2020;77(11):1-7.) Embora os mecanismos exatos subjacentes à ligação entre a infecção por SARS-CoV-2 e o AVC sejam desconhecidos, tem sido sugerido que a coagulopatia e a endoteliopatia causadas pela tempestade de citocinas podem desempenhar um papel na fisiopatologia do AVC em pacientes com COVID-19.(55 Vogrig A, Gigli GL, Bnà C, Morassi M. Stroke in patients with COVID-19: clinical and neuroimaging characteristics. Neurosci Lett. 2021;743:135564.) Além disso, foi demonstrada a ocorrência de sintomas neurológicos atípicos e isolados em pacientes com COVID-19,(66 Avula A, Nalleballe K, Narula N, Sapozhnikov S, Dandu V, Toom S, et al. COVID-19 presenting as stroke. Brain Behav Immun. 2020;87:115-9.) o que implica a necessidade de investigar a presença da infecção por SARS-CoV-2 em pacientes admitidos com suspeita de AVC, particularmente em regiões com disparidades de saúde mais acentuadas. Não obstante as limitações inerentes a este estudo, conclui-se que estes resultados corroboram a evidência existente de que a infecção pelo SARS-CoV-2 é um novo fator associado à morte entre pacientes com AVC.

    REFERENCES

    • 1
      Mahl C, Melo LR, Almeida MH, Carvalho CS, Santos LL, Nunes PS, et al. Delay in head and neck cancer care during the COVID-19 pandemic and its impact on health outcomes. Braz Oral Res. 2020;34:e126.
    • 2
      Nannoni S, de Groot R, Bell S, Markus HS. Stroke in COVID-19: a systematic review and meta-analysis. Int J Stroke. 2021;16(2):137-49.
    • 3
      Araújo NM, Ferreira LC, Dantas D P, Silva DS, Santos CA, Cipolotti R, et al. First report of SARS-CoV-2 detection in cerebrospinal fluid in a child with Guillain-Barré syndrome. Pediatr Infect Dis J. 2021;40(7):e274-6.
    • 4
      Merkler AE, Parikh NS, Mir S, Gupta A, Kamel H, Lin E, et al. Risk of ischemic stroke in patients with coronavirus disease 2019 (COVID-19) vs patients with influenza. JAMA Neurol. 2020;77(11):1-7.
    • 5
      Vogrig A, Gigli GL, Bnà C, Morassi M. Stroke in patients with COVID-19: clinical and neuroimaging characteristics. Neurosci Lett. 2021;743:135564.
    • 6
      Avula A, Nalleballe K, Narula N, Sapozhnikov S, Dandu V, Toom S, et al. COVID-19 presenting as stroke. Brain Behav Immun. 2020;87:115-9.

    Editado por

    Editor responsável: Viviane Cordeiro Veiga

    Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Jun 2023
    • Data do Fascículo
      2023

    Histórico

    • Recebido
      15 Out 2022
    • Aceito
      01 Dez 2022
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