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A terapia intensiva e os diferentes sentidos de vulnerabilidade

INTRODUÇÃO

Aos olhos de leigos, a terapia intensiva pode parecer um campo de estudo e prática em que reinam precisão e objetividade. Mesmo aos profissionais de saúde, soa sensato e razoável acreditar que, embora existam nuances e algum espaço à subjetividade, a prática médica dentro das unidades de terapia intensiva (UTI) deve ser pautada predominantemente por decisões técnicas. Porém, o olhar cuidadoso às particularidades do processo de tomada de decisão na terapia intensiva permite evidenciar como diferentes conceitos e valores, às vezes implicitamente adotados, repercutem nas maneiras de pensar e, consequentemente, de agir dos intensivistas. A presente publicação discute um desses conceitos que atravessam largamente o processo de trabalho da terapia intensiva, mas que segue pouco discutido: a vulnerabilidade.

Os diferentes sentidos de vulnerabilidade

O termo “vulnerabilidade” é utilizado com frequência na literatura médica, mas tem múltiplos sentidos possíveis, que comumente não são explicitados nos textos. Habitualmente, vulnerabilidade indica inabilidade de proteger os próprios interesses, suscetibilidade a danos e determinação social;(11 Clark B, Preto N. Exploring the concept of vulnerability in health care. CMAJ. 2018;190(11):E308-9.,22 Hurst SA. Vunerability in research and health care; describing the elephant in the room? Bioethics. 2008;22(4):191-202.,33 Canada. Public Health Agency of Canada. Rio political declaration on social determinants of health: a snapshot of Canadian actions 2015. Available from: https://www.canada.ca/en/public-health/services/publications/science-research-data/rio-political-declaration-social-determinants-health-snapshot-canadian-actions-2015.html.
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) em outras palavras, compõem-se por fatores internos (inabilidade de consentir) e externos (determinação social). Nessa concepção, a vulnerabilidade é entendida como atributo inerente ao ser individual, da mesma forma como é utilizada nas discussões mais comuns do tema na literatura, que a relaciona com terapia intensiva em grande parte apoiada nos princípios da humanização ou bioética e focada na problemática do acesso à saúde. Porém, por localizá-la sobretudo no indivíduo, deixa-se escapar a dimensão intersubjetiva e sistêmica que engendra o fenômeno da vulnerabilidade, e, com isso, limitam-se as possibilidades e o alcance da reflexão acerca das práticas rotineiras em espaços especializados, como a UTI. Nesse sentido, a vulnerabilidade pode servir como uma espécie de salvo-conduto para controle social e paternalismo na interação com pacientes críticos, sobretudo os que se encontram em situação de incapacidade objetiva de se manifestar.(11 Clark B, Preto N. Exploring the concept of vulnerability in health care. CMAJ. 2018;190(11):E308-9.)

Em contraposição a esse primeiro sentido, outros conceitos de vulnerabilidade foram desenvolvidos, a partir de perspectivas mais críticas, dinâmicas e reconstrutivas. Segundo explica Ayres,(44 Castellanos ME, Baptista TW, Ayres JR. Entrevista com José Ricardo Ayres. Saude Soc. 2018;27(1):51-60.) o conceito de vulnerabilidade se desenvolve e se transforma, na literatura norte-americana, a partir de seu surgimento na década de 1990, em torno da epidemia da AIDS, quando vulnerabilidade foi inicialmente compreendida à luz do modelo de história natural da doença de Leavell e Clark, segundo aspectos relacionados à maior suscetibilidade ao agravo e ao menor acesso a recursos de proteção.(55 Ayres JR. Prevenção de agravos, promoção da saúde e redução da vulnerabilidade. In: Martins MA, Carrilho FJ, Alves VA, Castilho EA, Cerri GG, Wen CL, eds. Clínica médica: atuação da clínica médica, sinais e sintomas de natureza sistêmica, medicina preventiva, saúde da mulher, envelhecimento e geriatria, medicina física e reabilitação, medicina laboratorial na prática médica. 2a ed. Barueri: Manole; 2016.) Naquele momento, o conceito se estruturou sobre uma perspectiva ética e de garantia de direitos. É com esse campo que, fundamentalmente, a literatura brasileira relacionada à terapia intensiva hoje dialoga.

Após a eclosão da epidemia da AIDS, o processo saúde-agravo-cuidado foi ressignificado. Antes caracterizado como relação linear entre agente agressor e agravo, ele passou a ser compreendido como resultado de interações mútuas entre agentes de agravo, hospedeiros e meio, sem que haja um agente agressor em si. Ou seja, qualquer agente (físico, químico, biológico) pode se tornar agressor diante de especificidades físicas, cognitivas, afetivas e comportamentais do hospedeiro, a depender do contexto socioambiental e do conjunto de saberes e práticas de saúde de que dispõem.(55 Ayres JR. Prevenção de agravos, promoção da saúde e redução da vulnerabilidade. In: Martins MA, Carrilho FJ, Alves VA, Castilho EA, Cerri GG, Wen CL, eds. Clínica médica: atuação da clínica médica, sinais e sintomas de natureza sistêmica, medicina preventiva, saúde da mulher, envelhecimento e geriatria, medicina física e reabilitação, medicina laboratorial na prática médica. 2a ed. Barueri: Manole; 2016.) Assim, o modelo de história natural da doença, quando entendido em sua historicidade, assume que não apenas a forma como a doença surge e se desenvolve determina o processo saúde-agravo-cuidado, mas também os modos como se apreende e interpreta o próprio processo.(55 Ayres JR. Prevenção de agravos, promoção da saúde e redução da vulnerabilidade. In: Martins MA, Carrilho FJ, Alves VA, Castilho EA, Cerri GG, Wen CL, eds. Clínica médica: atuação da clínica médica, sinais e sintomas de natureza sistêmica, medicina preventiva, saúde da mulher, envelhecimento e geriatria, medicina física e reabilitação, medicina laboratorial na prática médica. 2a ed. Barueri: Manole; 2016.)

Essa transformação conceitual reflete-se na literatura brasileira, sobretudo nas produções da saúde coletiva, um campo de saber crítico e transdisciplinar, fruto da articulação histórica entre academia, trabalhadores da saúde, gestão e movimentos sociais, inscrevendo-se no movimento conhecido como Reforma Sanitária.(66 Corrêa AK. O paciente em centro de terapia intensiva: reflexão bioética. Rev Esc Enferm USP. 1998;32(4):297-301.) Nessa perspectiva comprometida com a emancipação social, a vulnerabilidade não deve ser compreendida apenas como produto das desigualdades de poder, meios materiais ou conhecimento, a ser compensado pela decisão do profissional de saúde; mas como arcabouço para pensar e modificar ações de saúde levando-se em conta as relações sociais, sejam de raça, gênero, classe ou outras.

A partir dessas perspectivas apresentadas, torna-se clara a importância de examinar criticamente os instrumentos utilizados para intervir sobre a saúde das pessoas, não apenas os técnicos e científicos, mas também os teóricos, conceituais e epistemológicos, uma vez que eles também acarretam consequências diferentes e, muitas vezes, inadvertidas, do ponto de vista ético, político e social.(44 Castellanos ME, Baptista TW, Ayres JR. Entrevista com José Ricardo Ayres. Saude Soc. 2018;27(1):51-60.)

A terapia intensiva

As UTIs têm como particularidade a atenção ao paciente em estado grave e a ênfase no conhecimento técnico-científico.(66 Corrêa AK. O paciente em centro de terapia intensiva: reflexão bioética. Rev Esc Enferm USP. 1998;32(4):297-301.) Esses centros altamente especializados atendem utilizando tecnologia onerosa, a fim de preservar a vida e recuperar a saúde de pessoas cuja condição é tão crítica que, sem tal aparato, o risco de morte é iminente.

No contexto brasileiro, onde o subfinanciamento crônico do Sistema Único de Saúde (SUS) e outras questões de infraestrutura básica para garantir condições de vida e saúde à maioria da população não estão resolvidas,(66 Corrêa AK. O paciente em centro de terapia intensiva: reflexão bioética. Rev Esc Enferm USP. 1998;32(4):297-301.) vive-se não só a iniquidade de acesso a serviços de medicina intensiva, como também importantes limitações de acesso a outros níveis de atenção do sistema de saúde, somadas ao atravessamento de determinantes de saúde mais amplos.(66 Corrêa AK. O paciente em centro de terapia intensiva: reflexão bioética. Rev Esc Enferm USP. 1998;32(4):297-301.) Doenças preveníveis se agravam e passam a requerer tratamentos mais intensivos e dolorosos, numa cascata de efeitos danosos, que gera pressão de demanda difícil de atender. É possível argumentar que essa problemática exige respostas sistêmicas, e que, ao profissional de saúde, cabe, sobretudo, o domínio da técnica para provimento de cuidados críticos, de modo que, embora seja relevante que ele esteja ciente das vulnerabilidades de seus pacientes, não lhe cabe necessariamente responder a elas, em seu contexto direto de trabalho. Esse é o caminho predominantemente observado na literatura relacionada à saúde hoje: parte-se da identificação da vulnerabilidade, mas logo a discussão se orienta para garantia de acesso a serviços de saúde e garantia de autonomia para o paciente.

De fato, acesso e autonomia são questões pertinentes, pois, nas UTIs os pacientes ficam frequentemente impedidos de falar devido aos procedimentos (ventilação mecânica, sedação), perdem o poder de controlar a si e, nesse momento, o profissional de saúde não pode escapar à tarefa de tomar decisões. Porém, a problemática não se resume a esse tipo de acesso, pois ao profissional também cabe decidir sobre o que é bom para o paciente. Ocorre que definir o que é “bom” não é nem óbvio, nem fácil, e frequentemente envolve dilemas éticos e políticos.(66 Corrêa AK. O paciente em centro de terapia intensiva: reflexão bioética. Rev Esc Enferm USP. 1998;32(4):297-301.) É nesse lugar que reside a importância de ampliar o conceito de vulnerabilidade na terapia intensiva - o lugar da decisão pelo outro, em seus múltiplos sentidos.

A “decisão pelo outro” pode ser compreendida, em seu significado mais imediato, como processo de tomar unilateralmente decisões que interferem na vida e, especialmente, na saúde de outros; neste caso específico, de pacientes da UTI. Outro sentido poderia ser o de tomar a decisão para o outro, não pelas próprias técnicas do profissional de saúde. Guardemos esse sentido, que será desenvolvido adiante.

A decisão pelo outro é óbvia nos casos em que o paciente não pode se manifestar na UTI, mas, nesse cenário, mesmo aqueles que têm capacidade de decidir - que falam, pedem, negam, queixam - ainda esbarram na limitação da autonomia.(66 Corrêa AK. O paciente em centro de terapia intensiva: reflexão bioética. Rev Esc Enferm USP. 1998;32(4):297-301.) Não raro, ao paciente em terapia intensiva, sequer são concedidas todas as informações pertinentes à decisão acerca do próprio cuidado, e o profissional de saúde continua escolhendo pelo outro. Quando esse fenômeno se localiza no recorte da saúde pública brasileira, contudo, torna-se mais complexo. Na realidade do país, esse outro é, muitas vezes, o que a literatura chama de “vulnerável”. Este, quando em estado grave, na condição de paciente de terapia intensiva, é marcado por dupla destituição de autonomia: a vulnerabilidade social, que habitualmente já o coloca em situação de disparidade de poder com o médico, pertencente a estrato social privilegiado; e sua condição de saúde crítica e assumidamente dependente das decisões oriundas do saber especializado do profissional médico.

A intersecção entre vulnerabilidade, tecnologias e saberes médicos

De volta ao discurso de Ayres acerca do conceito de vulnerabilidade,(44 Castellanos ME, Baptista TW, Ayres JR. Entrevista com José Ricardo Ayres. Saude Soc. 2018;27(1):51-60.) vale destacar que não há pessoas inerentemente vulneráveis – como apresentado na introdução –, mas atravessamentos por diferentes vulnerabilidades, que se dão de modo relacional e contextual. Dito de outro modo, ela não é atributo de uma pessoa, mas de uma certa situação (histórica, social, biológica, geográfica, política), que incide de maneira desigual sobre as pessoas.

Nessa conjunção, um conceito individualizante, no qual vulnerabilidade seja entendida como estado de suscetibilidade e incapacidade de se proteger, implica que a decisão recaia sobre o profissional e gire em torno de garantir acesso aos procedimentos necessários. No dramático cenário da terapia intensiva, como o que está em jogo é o acesso a procedimentos garantidores de vida, acaba-se deixando de observar as repercussões de transferir o poder de decisão sobre o que é e não é bom do paciente ao profissional de saúde. Cabe explorar, aqui, que tipo de transformação no processo de cuidado da terapia intensiva a adoção de uma concepção dialógica de vulnerabilidade traria consigo.

Para abordar a questão, lançamos mão do pensamento de Merhy sobre as tecnologias em saúde. Esse autor se apropria figurativamente da imagem da “valise”, espécie de maleta ou mala de mão, como aquelas utilizadas por médicos nos séculos 19 e 20, para guardar seus instrumentos para exame clínico, a fim de discutir diferentes tipos de tecnologia utilizadas pelo profissional, em seu agir no processo de interseção que configura o encontro médico-paciente.(77 Merhy EE. Um ensaio sobre o médico e suas valises tecnológicas: contribuições para compreender as reestruturações produtivas do setor Saúde. Interface Comun Saude Educ. 2000;4(6):109-16.) O autor discrimina três tipos de valises, caixas de ferramentas tecnológicas, saberes e seus desdobramentos materiais e não materiais, das quais o clínico lança mão no processo de cuidar: as tecnologias duras, as leve-duras e as leves. As tecnologias leves são compreendidas como aquelas que mobilizam recursos relacionais entre o paciente e o profissional para produção de cuidado; as tecnologias leve-duras, como aquelas que mobilizam conhecimentos do profissional, sejam clínicos, teórico-conceituais, ou epidemiológicos; as tecnologias duras, como aquelas que utilizam recursos tecnológicos e materiais para produção do cuidado, como o estetoscópio, o tomógrafo, o ventilador mecânico e o monitor.(77 Merhy EE. Um ensaio sobre o médico e suas valises tecnológicas: contribuições para compreender as reestruturações produtivas do setor Saúde. Interface Comun Saude Educ. 2000;4(6):109-16.)

Os modos de cuidado à saúde estruturados a partir de tecnologias predominantemente leves organizam-se, portanto, como espaço relacional, no qual o trabalho médico não é capturado plenamente pelo saber tecnológico, mas competido com o usuário, formando um espaço de disputa permanente, no qual a produção de cuidado é singular e expressa acolhimento.(77 Merhy EE. Um ensaio sobre o médico e suas valises tecnológicas: contribuições para compreender as reestruturações produtivas do setor Saúde. Interface Comun Saude Educ. 2000;4(6):109-16.) Esse tipo de tecnologia prevalece no contexto da Atenção Primária à Saúde, menos apoiada em densidade tecnológica, e que remete à máxima do próprio autor de que “não há só uma forma de se realizar o ato clínico”. A presença de tecnologia dura nesse espaço é de menor intensidade, e o encontro terapêutico não depende da tecnologia.(77 Merhy EE. Um ensaio sobre o médico e suas valises tecnológicas: contribuições para compreender as reestruturações produtivas do setor Saúde. Interface Comun Saude Educ. 2000;4(6):109-16.) Por outro lado, aqueles modos estruturados a partir de tecnologias duras organizam-se ao redor de equipamentos e, no limite, de saberes técnicos do profissional de saúde, empobrecendo-se da valise de tecnologias leves e deslocando o eixo do modelo de saúde para a competência da ação do médico e dos procedimentos, que se tornam pontuais e subespecializados, por vezes praticamente anulando a prática propriamente cuidadora.(77 Merhy EE. Um ensaio sobre o médico e suas valises tecnológicas: contribuições para compreender as reestruturações produtivas do setor Saúde. Interface Comun Saude Educ. 2000;4(6):109-16.) É aí que usualmente se situa a terapia intensiva.

O campo das tecnologias leves, habitado pela intersubjetividade, é mais facilmente associado a conceitos como vulnerabilidade e cuidado. Em contrapartida, parece racional considerar que, na unidade de terapia intensiva, a pessoa é justificadamente abstraída de suas complexidades de vida (suas relações, território, papéis e autonomia), devido ao risco iminente de falência do corpo biológico, e colocada em cenário de complexidade tecnológica dura, até que o organismo não mais dele necessite. Nesse cenário hipotético, parece não haver conflito entre a vontade do profissional de saúde e do paciente. Porém, para Merhy, mesmo a medicina tecnológica é permeada pela tensão constitutiva da produção do cuidado, isto é, a disputa entre o que quer o profissional e o que quer o usuário do serviço, uma vez que a produção de cuidado é ato vivo, que procura tornar a produção de ações de saúde de acordo com certos interesses e interditar outros.(77 Merhy EE. Um ensaio sobre o médico e suas valises tecnológicas: contribuições para compreender as reestruturações produtivas do setor Saúde. Interface Comun Saude Educ. 2000;4(6):109-16.) Isso se explica pela forma como as três valises de Merhy se arranjam, de forma estratégica, em um espectro que define o modelo de Atenção à Saúde. Nos modelos em que predominam tecnologias duras, apesar do esforço em trazer os usuários para o mundo do agir tecnológico, os saberes médicos não se sobrepõem plenamente ao que é pretendido pelo usuário, de forma que projetos terapêuticos que aí se constroem são tensos, devido ao embate estabelecido entre as diferentes vontades do médico e do paciente.(77 Merhy EE. Um ensaio sobre o médico e suas valises tecnológicas: contribuições para compreender as reestruturações produtivas do setor Saúde. Interface Comun Saude Educ. 2000;4(6):109-16.)

A oposição entre tecnologias leves e duras pode invisibilizar o potencial das relações em ambientes tão tecnológicos como as UTIs, mas, como afirma Merhy, é preciso “promover a troca de um médico centrado em procedimentos por um outro ordenado a partir das relações cuidadoras” e incentivar a busca por dispositivos que permitam manter a autonomia daqueles que são cuidados, utilizando tensões como potências para transformação.(77 Merhy EE. Um ensaio sobre o médico e suas valises tecnológicas: contribuições para compreender as reestruturações produtivas do setor Saúde. Interface Comun Saude Educ. 2000;4(6):109-16.)

Nesse contexto, o conceito de tecnologias leve-duras é capaz de desafiar essa falsa oposição entre tecnologia leve e tecnologia dura e situar inclusive a terapia intensiva em campo receptivo para a concepção de vulnerabilidade, que seja instrumental para a transformação das práticas, uma vez que se estabelecem em um lugar-cruzamento que não é definitivamente subjetivo, pessoal, singular ou relacional, como as tecnologias leves, e nem irrestritamente material (ou objetivo), como as tecnologias duras. Essas tecnologias permitem aquilo a que Ayres convida: a busca por arranjos tecnológicos sensíveis às necessidades de saúde individuais e coletivas, em um espaço relacional que se apoie no tecnológico, mas o extrapole, subvertendo-o.(88 Ayres JR. Cuidado: tecnologia ou sabedoria prática? Interface Comun Saude Educ. 2000;4(6):117-20.) De fato, na cena da UTI, o saber médico, em todo seu arcabouço teórico-conceitual que articula diferentes campos disciplinares é vital ao processo de cuidar como característico das tecnologias leve-duras, quiçá muito mais que a disponibilidade de tecnologia dura. Segundo o autor, quando a saúde é compreendida como forma de ser no mundo, decidir pelo uso das tecnologias torna-se exercício de autonomia humana que cabe apenas no momento da decisão, traduzindo a intersubjetividade do cuidado em saúde. O conceito de vulnerabilidade que queremos explorar aqui se encaixa nessa descrição.

Ayres atribui três dimensões à vulnerabilidade, que permitem ampliar ainda mais ou restringir o conceito, que são identificadas e relacionadas às perspectivas e interesses dos sujeitos.(55 Ayres JR. Prevenção de agravos, promoção da saúde e redução da vulnerabilidade. In: Martins MA, Carrilho FJ, Alves VA, Castilho EA, Cerri GG, Wen CL, eds. Clínica médica: atuação da clínica médica, sinais e sintomas de natureza sistêmica, medicina preventiva, saúde da mulher, envelhecimento e geriatria, medicina física e reabilitação, medicina laboratorial na prática médica. 2a ed. Barueri: Manole; 2016.) São elas as dimensões individual, social e programática da vulnerabilidade, que orientam a identificação e a articulação de elementos explicativos, para conhecer e responder aos agravos à saúde.(55 Ayres JR. Prevenção de agravos, promoção da saúde e redução da vulnerabilidade. In: Martins MA, Carrilho FJ, Alves VA, Castilho EA, Cerri GG, Wen CL, eds. Clínica médica: atuação da clínica médica, sinais e sintomas de natureza sistêmica, medicina preventiva, saúde da mulher, envelhecimento e geriatria, medicina física e reabilitação, medicina laboratorial na prática médica. 2a ed. Barueri: Manole; 2016.) Essas dimensões também ajudam a compreender o impacto que ampliar o conceito de vulnerabilidade pode ter sobre o cuidado nas UTIs.

A dimensão individual diz respeito à capacidade de cada indivíduo de experimentar processos de adoecimento e se proteger deles, envolvendo aspectos de constituição física e modo de vida.(55 Ayres JR. Prevenção de agravos, promoção da saúde e redução da vulnerabilidade. In: Martins MA, Carrilho FJ, Alves VA, Castilho EA, Cerri GG, Wen CL, eds. Clínica médica: atuação da clínica médica, sinais e sintomas de natureza sistêmica, medicina preventiva, saúde da mulher, envelhecimento e geriatria, medicina física e reabilitação, medicina laboratorial na prática médica. 2a ed. Barueri: Manole; 2016.) Sem desconhecer a importância de aspectos biológicos, reconhece-se a importância do grau e da qualidade da informação de que o indivíduo dispõe sobre o estado de saúde, de sua motivação e de sua habilidade para elaborar e incorporar a informação às suas práticas de vida.(55 Ayres JR. Prevenção de agravos, promoção da saúde e redução da vulnerabilidade. In: Martins MA, Carrilho FJ, Alves VA, Castilho EA, Cerri GG, Wen CL, eds. Clínica médica: atuação da clínica médica, sinais e sintomas de natureza sistêmica, medicina preventiva, saúde da mulher, envelhecimento e geriatria, medicina física e reabilitação, medicina laboratorial na prática médica. 2a ed. Barueri: Manole; 2016.) A dimensão social diz respeito diretamente aos contextos que conformam vulnerabilidades individuais, como a estrutura jurídico-política; as relações econômicas; e as relações de gênero, crenças religiosas, pobreza e exclusão social. Isso porque a possibilidade de elaborar e incorporar informação não depende apenas das pessoais individualmente, mas de acesso à comunicação, à escolarização, a recursos materiais e a meios de influenciar decisões políticas e enfrentar barreiras culturais.(55 Ayres JR. Prevenção de agravos, promoção da saúde e redução da vulnerabilidade. In: Martins MA, Carrilho FJ, Alves VA, Castilho EA, Cerri GG, Wen CL, eds. Clínica médica: atuação da clínica médica, sinais e sintomas de natureza sistêmica, medicina preventiva, saúde da mulher, envelhecimento e geriatria, medicina física e reabilitação, medicina laboratorial na prática médica. 2a ed. Barueri: Manole; 2016.) A dimensão programática diz respeito à atuação de instituições, principalmente de saúde, educação, bem-estar social e cultura, na redução, reprodução ou potencialização de condições de vulnerabilidade.(55 Ayres JR. Prevenção de agravos, promoção da saúde e redução da vulnerabilidade. In: Martins MA, Carrilho FJ, Alves VA, Castilho EA, Cerri GG, Wen CL, eds. Clínica médica: atuação da clínica médica, sinais e sintomas de natureza sistêmica, medicina preventiva, saúde da mulher, envelhecimento e geriatria, medicina física e reabilitação, medicina laboratorial na prática médica. 2a ed. Barueri: Manole; 2016.)

Como Ayres já adverte, ao localizar no plano da suscetibilidade social o alvo de intervenções para redução de vulnerabilidade, mesmo intervenções que são individuais se estendem além da tarefa de alertar e precisam responder de forma a superar obstáculos materiais, culturais e políticos, que mantêm a vulnerabilidade.(55 Ayres JR. Prevenção de agravos, promoção da saúde e redução da vulnerabilidade. In: Martins MA, Carrilho FJ, Alves VA, Castilho EA, Cerri GG, Wen CL, eds. Clínica médica: atuação da clínica médica, sinais e sintomas de natureza sistêmica, medicina preventiva, saúde da mulher, envelhecimento e geriatria, medicina física e reabilitação, medicina laboratorial na prática médica. 2a ed. Barueri: Manole; 2016.) Segundo o autor, as pessoas precisam não apenas saber dos riscos, mas saber principalmente como se proteger e mobilizar para transformar as situações estruturais que as tornam suscetíveis. Na terapia intensiva, valorizamos a tecnologia dura, que mantém vivo, mas não é capaz de modificar o modo de vida. Assim, o campo das tecnologias leveduras é especialmente propício para intervenções sobre a vulnerabilidade.

Um exemplo mundano pode ser tomado no manejo de emergências hipertensivas em pacientes com hipertensão arterial sistêmica descompensada em ambiente de UTI. Muitos pacientes rotulados como vulneráveis pelos profissionais de saúde são aqueles que chegam a estados de doença graves por falta de acesso a serviços de menor complexidade tecnológica efetivos, ou mesmo por falta de possibilidade de elaborar e incorporar informações sobre a própria saúde. Não é incomum que pacientes com hipertensão arterial sistêmica não adiram ao tratamento no estágio assintomático, o que é interpretado por muitos médicos como escolha pessoal baseada no entendimento da doença, que os profissionais de saúde desejam alterar, mas têm dificuldade, a fim de melhorar a adesão. Esses pacientes ditos não aderentes eventualmente sofrem complicações da doença e entram em emergência, tratada com terapia intensiva. Se o médico intensivista acredita que seu papel é apenas o de reverter o quadro orgânico e repetir as orientações medicamentosas de tratamento ambulatorial, mas que atuar sobre a vulnerabilidade não é seu escopo, porque é uma condição inerente daquele que é vulnerável, pouco é feito em termos de prevenção terciária, quando em realidade, o cenário é fértil para outras estratégias. Por outro lado, se o profissional acredita em seu papel preventivo em qualquer ambiente, o atendimento configura também oportunidade de transformar a relação que a pessoa tem com a própria doença, sendo campo para questionar quais elementos, individuais, sociais ou programáticos, interferem na capacidade desse sujeito de incorporar orientações de tratamento e também para pensar estratégias de superação quando cabíveis, especialmente à luz da recente experiência de gravidade da doença, que pode ajudar a sensibilizar a pessoa sobre o estado de saúde, sem necessariamente culpabilizá-lo.

A potência da vulnerabilidade

Por fim, como ficam, então, as decisões que implicam na saúde daqueles internados em terapia intensiva, com quem não se consegue estabelecer relações intersubjetivas? Qual a potência do conceito de vulnerabilidade para resolver o dilema e quais seus limites? Ayres aponta para uma possível resposta em seu convite a romper com a ideia de que o indivíduo é uma mônada, que atua sobre o mundo apenas segundo imperativos sociais, sem possibilidade de transformação da realidade.(44 Castellanos ME, Baptista TW, Ayres JR. Entrevista com José Ricardo Ayres. Saude Soc. 2018;27(1):51-60.) O autor, assim, impele-nos a evitar a naturalização da vulnerabilidade quando tomada como característica intrínseca do sujeito.(44 Castellanos ME, Baptista TW, Ayres JR. Entrevista com José Ricardo Ayres. Saude Soc. 2018;27(1):51-60.) De fato, se, ao invés de se compreender a vulnerabilidade como produto fixo das desigualdades instaladas em determinadas populações, a escolha for por instrumentar-se do conceito relacional de vulnerabilidade e entender que o vulnerável é também agente modificador, outras práticas de saúde, móveis como são as relações, tornar-se-ão possíveis. Não que comunicação, humanização e autonomia devam perder espaço no campo de atuação em saúde, mas se forem ajuizadas na perspectiva puramente ética, não serão suficientes para garantir o cuidado que a medicina moderna se presta a oferecer às necessidades coletivas e individuais. É preciso incorporar usos e sentidos mais amplos e potentes acerca da vulnerabilidade, o que, inclusive na terapia intensiva, desafia a ver o próximo como agente de transformação, seja na condição que estiver.

As reflexões sobre vulnerabilidade aqui apresentadas não se prestam a fornecer respostas objetivas acerca do que deve ou não ser decidido. Mas antes, a provocar questionamentos sobre o processo de cuidado que o deslocam, mesmo que sutilmente, da posição estática de médico-cuidador e paciente-cuidado, para um lugar em que as relações podem se tornar dialógicas. Debruçar-se sobre essas questões pode se revelar bastante benéfico e fértil para o campo da terapia intensiva.

REFERENCES

  • 1
    Clark B, Preto N. Exploring the concept of vulnerability in health care. CMAJ. 2018;190(11):E308-9.
  • 2
    Hurst SA. Vunerability in research and health care; describing the elephant in the room? Bioethics. 2008;22(4):191-202.
  • 3
    Canada. Public Health Agency of Canada. Rio political declaration on social determinants of health: a snapshot of Canadian actions 2015. Available from: https://www.canada.ca/en/public-health/services/publications/science-research-data/rio-political-declaration-social-determinants-health-snapshot-canadian-actions-2015.html
    » https://www.canada.ca/en/public-health/services/publications/science-research-data/rio-political-declaration-social-determinants-health-snapshot-canadian-actions-2015.html
  • 4
    Castellanos ME, Baptista TW, Ayres JR. Entrevista com José Ricardo Ayres. Saude Soc. 2018;27(1):51-60.
  • 5
    Ayres JR. Prevenção de agravos, promoção da saúde e redução da vulnerabilidade. In: Martins MA, Carrilho FJ, Alves VA, Castilho EA, Cerri GG, Wen CL, eds. Clínica médica: atuação da clínica médica, sinais e sintomas de natureza sistêmica, medicina preventiva, saúde da mulher, envelhecimento e geriatria, medicina física e reabilitação, medicina laboratorial na prática médica. 2a ed. Barueri: Manole; 2016.
  • 6
    Corrêa AK. O paciente em centro de terapia intensiva: reflexão bioética. Rev Esc Enferm USP. 1998;32(4):297-301.
  • 7
    Merhy EE. Um ensaio sobre o médico e suas valises tecnológicas: contribuições para compreender as reestruturações produtivas do setor Saúde. Interface Comun Saude Educ. 2000;4(6):109-16.
  • 8
    Ayres JR. Cuidado: tecnologia ou sabedoria prática? Interface Comun Saude Educ. 2000;4(6):117-20.

Editado por

Editor responsável: Felipe Dal-Pizzol

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    13 Set 2022
  • Aceito
    12 Jan 2023
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