Acessibilidade / Reportar erro

Além da fluido-responsividade: o conceito de fluido-tolerância e sua potencial implicação no manejo hemodinâmico

INTRODUÇÃO

Apesar das diferentes metodologias e definições na literatura, a concepção mais comumente aceita de fluido-responsividade (FR) é o aumento do débito cardíaco maior que 10-15% induzido pelo aumento da pré-carga. Dessa forma, a expansão volêmica é a medida inicial mais frequentemente utilizada na tentativa de otimização de perfusão tecidual num paciente hemodinamicamente instável. No entanto, a prevalência de FR em unidade de terapia intensiva (UTI) gira ao redor de 50%;(11 Bentzer P, Griesdale DE, Boyd J, MacLean K, Sirounis D, Ayas NT. Will This hemodynamically unstable patient respond to a bolus of intravenous fluids? JAMA. 2016;316(12):1298-309.) assim, a administração indiscriminada de volume em todo paciente com instabilidade hemodinâmica, além de não auferir os possíveis benefícios induzidos pelo aumento do débito cardíaco, tem o potencial de agravar disfunções orgânicas ocasionadas pela sobrecarga hídrica, já que o excesso de fluidos, representado pelo balanço hídrico acumulado, é fator independente para aumento do tempo de internação em UTI, tempo de ventilação mecânica, probabilidade de lesão renal aguda e mortalidade.(22 Malbrain ML, Marik PE, Witters I, Cordemans C, Kirkpatrick AW, Roberts DJ, et al. Fluid overload, de-resuscitation, and outcomes in critically ill or injured patients: a systematic review with suggestions for clinical practice. Anaesthesiol Intensive Ther. 2014;46(5):361-80.

3 Sakr Y, Rubatto Birri PN, Kotfs K, Nanchal R, Shah B, Kluge S, Schroeder ME, Marshall JC, Vincent JL; Intensive Care Over Nations Investigators. Higher fuid balance increases the risk of death from sepsis: results from a large inter national audit. Crit Care Med. 2017;45(3):386-94.
-44 Jozwiak M, Silva S, Persichini R, Anguel N, Osman D, Richard C, et al. Extravascular lung water is an independent prognostic factor in patients with acute respiratory distress syndrome. Crit Care Med.2013;41(2): 472-80.)

A definição de fluido-tolerância (FT), por sua vez, é a capacidade do organismo de receber infusão de fluidos sem evoluir com disfunção orgânica(55 Kattan E, Castro R, Miralles-Aguiar F, Hernández G, Rola P. The emerging concept of fluid tolerance: a position paper. J Crit Care. 202;71:154070.) (Tabela 1). Possíveis mecanismos relacionados à gênese dessas disfunções incluem o dano tecidual na microcirculação por aumento na distância de difusão do oxigênio às células e pela diminuição do número de hemácias oxigenadas devido à hemodiluição; a alteração do glicocálix endotelial(66 Uchimido R, Schmidt EP, Shapiro NI. The glycocalyx: a novel diagnostic and therapeutic target in sepsis. Crit Care. 2019;23(1):16.) com alteração da permeabilidade vascular(77 Wollborn J, Hassenzahl LO, Reker D, Staehle HF, Omlor AM, Baar W, et al. Diagnosing capillary leak in critically ill patients: development of an innovative scoring instrument for non-invasive detection. Ann Intensive Care. 2021;11(1):175.) e maior edema tecidual; e o aumento da pressão intraparenquimatosa em órgãos encapsulados, como fígado e rim,(88 Rajendram R, Prowle JR. Venous congestion: are we adding insult to kidney injury in sepsis? Crit Care. 2014;18(1):104.) resultando numa menor pressão de perfusão e num menor fluxo sanguíneo tecidual.

Tabela 1
Disfunções orgânicas induzidas pela sobrecarga volêmica

Desse modo, a avaliação conjunta de FR e FT é de fundamental importância no manejo de um paciente hemodinamicamente instável, pois a ausência de FT, ainda que num paciente fluido-responsivo, pode mitigar qualquer suposto benefício induzido pela expansão volêmica e até mesmo agravar ou ocasionar novas disfunções orgânicas.

Perfis hemodinâmicos

Levando-se em consideração a presença ou ausência de FR e FT, podemos ter quatro perfis hemodinâmicos:

  • - A: FR presente e FT presente.

  • - B: FR ausente e FT presente.

  • - C: FR ausente e FT ausente.

  • - D: FR presente e FT ausente.

De acordo com o perfil hemodinâmico em questão, é possível definir, de maneira individualizada, a conduta de ressuscitação hemodinâmica mais adequada para um determinado paciente instável hemodinamicamente, com o objetivo de prevenir e/ou reverter disfunções orgânicas (Tabela 2).

Tabela 2
Manejo baseado em perfis hemodinâmicos de fluido-tolerância e fluido-responsividade

Como princípios básicos, temos:

- A administração de volume não deve ser realizada na ausência de FR (perfis B e C). Na ausência de FR e FT (perfil C), deve-se avaliar a necessidade de derressuscitação. Por outro lado, a administração de volume num paciente fluido-tolerante, mas sem critérios de FR (perfil B), pode levar à perda da condição de FT, com risco de novas disfunções orgânicas induzidas por hipervolemia; demandando um manejo conservador em relação à administração de fluidos.

- Na presença de FR, a administração de volume, com maior potencial benefício e menor risco de indução ou agravamento de disfunções orgânicas, será na presença concomitante de FT (perfil A).

- Na presença de FR e ausência de FT (perfil D), a administração de volume deve levar em consideração o potencial de indução e/ou agravo de disfunções orgânicas, devendo-se considerar o início precoce de drogas vasoativas.

Mecanismos de avaliação de fluido-tolerância

A avaliação de FT deve ser avaliada em dois diferentes compartimentos; esquerdo, levando-se em consideração as pressões de enchimento em câmaras cardíacas esquerdas e o grau de congestão na circulação pulmonar; e direito, avaliando as pressões de enchimento nas câmaras cardíacas direitas e o grau de sobrecarga hídrica no território venoso sistêmico.

Medidas estáticas de pressão de enchimento em câmaras cardíacas direita e esquerda, como a pressão venosa central (PVC) e pressão de oclusão de artéria pulmonar (POAP), dependem da interação entre função de retorno venoso e função ventricular, sendo também influenciadas por aumentos da pressão intratorácica em situações como pneumotórax, tamponamento cardíaco e uso de pressão positiva expiratória final (PEEP - positive end-expiratory pressure). Portanto, apresentam papel limitado na identificação de FR e volemia, ainda que valores extremamente baixos (< 6mmHg) aumentem a probabilidade de FR. Por outro lado, valores reconhecidamente elevados (PVC > 12mmHg e POAP > 18mmHg) podem indicar baixa capacidade de FT em determinadas circunstâncias clínicas, estando associados a risco aumentado de edema periférico, ascite, edema pulmonar, disfunção renal e hepática. Além disso, a mensuração dessas variáveis requer o uso de dispositivos invasivos, como o cateter venoso central, no caso da PVC, ou cateter de artéria pulmonar, na POAP.

A monitorização hemodinâmica pela termodiluição transpulmonar pode auxiliar na avaliação de FT, sobretudo esquerda, por meio de variáveis como volume diastólico global final (VDGF), índice de água extravascular pulmonar (EVLW - extravascular lung water) e índice de permeabilidade vascular pulmonar (PVPI), sendo útil no diagnóstico diferencial entre síndrome alvéolo-intersticial inflamatória e hidrostática. Apesar de ser uma ferramenta menos invasiva em relação ao cateter de artéria pulmonar, requer a inserção de cateteres venoso e arterial centrais e apresenta alto custo, limitando sua disponibilidade na maioria das unidades de terapia intensiva.

A ultrassonografia point-of-care apresenta disponibilidade crescente nas UTIs, com potencial de grande aplicabilidade na avaliação de FT tanto esquerda, quanto direita. A estimativa de EVLW por meio do ultrassom pulmonar(99 Lichtenstein DA, Mezière GA, Lagoueyte JF, Biderman P, Goldstein I, Gepner A. A-lines and B-lines: lung ultrasound as a bedside tool for predicting pulmonary artery occlusion pressure in the critically ill. Chest. 2009;136(4):1014-20.) e a avaliação das pressões de enchimento ventricular esquerda pela relação da onda E sobre a onda A, do fluxo transmitral ao Doppler pulsado, e onda E, sobre a onda E’, do Doppler tecidual, auxiliariam na avaliação de FT esquerda. O escore de avaliação por ultrassom do excesso de congestão venosa (VExUS - venous excess ultrasound), que leva em consideração o diâmetro da veia cava inferior e o padrão de fluxo venoso ao Doppler nas veias porta, supra-hepáticas e intrarrenais (Figura 1), mostra boa correlação com disfunção renal em pacientes pós-cirurgia cardíaca,(1010 Beaubien-Souligny W, Rola P, Haycock K, Bouchard J, Lamarche Y, Spiegel R, et al. Quantifying systemic congestion with Point-Of-Care ultrasound: development of the venous excess ultrasound grading system. Ultrasound J. 2020;12(1):16.) podendo ser útil em estratégias de derressuscitação e manejo de ultrafiltração em pacientes em hemodiálise,(1111 Koratala A, Reisinger N. Venous excess Doppler ultrasound for the nephrologist: pearls and pitfalls. Kidney Med. 2022;4(7):100482.,1212 Rola P, Miralles-Aguiar F, Argaiz E, Beaubien-Souligny W, Haycock K, Karimov T, et al. Clinical applications of the venous excess ultrasound (VExUS) score: conceptual review and case series. Ultrasound J. 2021;13(1):32.) sendo uma ferramenta interessante de avaliação de FT direita (Figura 2).

Figura 1
Padrão ultrassonográfico do Doppler pulsado das veias hepática, portal e renal interlobar do protocolo de avaliação ultrassonográfica do excesso de congestão venosa.

Figura 2
Avaliação hemodinâmica com avaliação da fluido-responsividade e fluido-tolerância para decisão de expansão volêmica.

CONCLUSÕES

As evidências crescentes, no paciente crítico, de agravamento de disfunções orgânicas relacionadas à sobrecarga de fluidos, implicam que a avaliação hemodinâmica avance além da fluido-responsividade e passe a englobar a fluido-tolerância. A avaliação coordenada dessas duas variáveis tem o potencial de prevenir e reverter disfunções orgânicas agudas e atribui nova obrigação ao intensivista: a de fluido-responsabilidade.

REFERENCES

  • 1
    Bentzer P, Griesdale DE, Boyd J, MacLean K, Sirounis D, Ayas NT. Will This hemodynamically unstable patient respond to a bolus of intravenous fluids? JAMA. 2016;316(12):1298-309.
  • 2
    Malbrain ML, Marik PE, Witters I, Cordemans C, Kirkpatrick AW, Roberts DJ, et al. Fluid overload, de-resuscitation, and outcomes in critically ill or injured patients: a systematic review with suggestions for clinical practice. Anaesthesiol Intensive Ther. 2014;46(5):361-80.
  • 3
    Sakr Y, Rubatto Birri PN, Kotfs K, Nanchal R, Shah B, Kluge S, Schroeder ME, Marshall JC, Vincent JL; Intensive Care Over Nations Investigators. Higher fuid balance increases the risk of death from sepsis: results from a large inter national audit. Crit Care Med. 2017;45(3):386-94.
  • 4
    Jozwiak M, Silva S, Persichini R, Anguel N, Osman D, Richard C, et al. Extravascular lung water is an independent prognostic factor in patients with acute respiratory distress syndrome. Crit Care Med.2013;41(2): 472-80.
  • 5
    Kattan E, Castro R, Miralles-Aguiar F, Hernández G, Rola P. The emerging concept of fluid tolerance: a position paper. J Crit Care. 202;71:154070.
  • 6
    Uchimido R, Schmidt EP, Shapiro NI. The glycocalyx: a novel diagnostic and therapeutic target in sepsis. Crit Care. 2019;23(1):16.
  • 7
    Wollborn J, Hassenzahl LO, Reker D, Staehle HF, Omlor AM, Baar W, et al. Diagnosing capillary leak in critically ill patients: development of an innovative scoring instrument for non-invasive detection. Ann Intensive Care. 2021;11(1):175.
  • 8
    Rajendram R, Prowle JR. Venous congestion: are we adding insult to kidney injury in sepsis? Crit Care. 2014;18(1):104.
  • 9
    Lichtenstein DA, Mezière GA, Lagoueyte JF, Biderman P, Goldstein I, Gepner A. A-lines and B-lines: lung ultrasound as a bedside tool for predicting pulmonary artery occlusion pressure in the critically ill. Chest. 2009;136(4):1014-20.
  • 10
    Beaubien-Souligny W, Rola P, Haycock K, Bouchard J, Lamarche Y, Spiegel R, et al. Quantifying systemic congestion with Point-Of-Care ultrasound: development of the venous excess ultrasound grading system. Ultrasound J. 2020;12(1):16.
  • 11
    Koratala A, Reisinger N. Venous excess Doppler ultrasound for the nephrologist: pearls and pitfalls. Kidney Med. 2022;4(7):100482.
  • 12
    Rola P, Miralles-Aguiar F, Argaiz E, Beaubien-Souligny W, Haycock K, Karimov T, et al. Clinical applications of the venous excess ultrasound (VExUS) score: conceptual review and case series. Ultrasound J. 2021;13(1):32.

Editado por

Editor responsável: Felipe Dal-Pizzol

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2023

Histórico

  • Recebido
    13 Jan 2023
  • Aceito
    12 Mar 2023
Associação de Medicina Intensiva Brasileira - AMIB Rua Arminda, 93 - 7º andar - Vila Olímpia, CEP: 04545-100, Tel.: +55 (11) 5089-2642 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: ccs@amib.org.br