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Publicações de acesso aberto: uma faca de dois gumes para pesquisadores de cuidados intensivos em países de baixa e média renda

Nas últimas décadas, o cenário das publicações científicas mudou radicalmente com a introdução do chamado modelo de acesso aberto (AA). Em suma, uma publicação pode ser considerada de AA quando não há barreiras financeiras para seu acesso em um formato digital. Embora os movimentos iniciais desse jogo de xadrez tenham sido recebidos com ceticismo, tanto por editores quanto por cientistas, a publicação de AA rapidamente se tornou um modelo padrão, que engloba periódicos novos e tradicionais, não indexados e de alto impacto. Na área de cuidados intensivos, três das dez principais revistas com fator de impacto dedicadas exclusivamente a esse campo são de AA, e a maioria das outras aderiu gradualmente a um modelo de AA parcial (em que os autores podem optar por uma publicação de AA).

Os dados demonstram que as publicações disponíveis como de AA são altamente citadas, e isso pode ocorrer porque algumas das agências de financiamento mais importantes do mundo, como o National Institutes of Health, dos Estados Unidos, exigem que os estudos financiados por elas sejam publicados como AA. É justo considerar que as publicações de AA democratizaram o acesso à ciência de forma ampla, especialmente em países de baixa e média renda (PBMRs), onde o acesso é bastante limitado, mesmo em centros acadêmicos. No entanto, ao considerar a perspectiva dos PBMRs ou do “sul global” sobre o AA em cuidados intensivos, continua faltando uma peça do quebra-cabeça: os pesquisadores.

Atualmente, quase 86% da população mundial vive em PBMRs; portanto, pesquisas que sejam relevantes e aplicáveis a esses países são de suma importância. Durante a pandemia da COVID-19, o acesso a informações científicas oportunas e confiáveis foi crucial, mas a capacidade de produzir pesquisas de alta qualidade também foi parte importante da resposta à pandemia que atenuou os efeitos catastróficos de sua carga sobre as UTIs. Para os pesquisadores de cuidados intensivos situados em PBMRs, o caminho sinuoso para a publicação científica tem muitos desafios, e um deles é o acesso restrito ao financiamento, incluindo o financiamento para a publicação dos resultados.

Modelo de acesso aberto e países de baixa e média renda

As revistas de AA geralmente isentam os pesquisadores de países de baixa renda das taxas de publicação, e essa isenção parece favorecer a publicação de artigos de pesquisadores da África subsaariana.(11 Iyandemye J, Thomas MP. Low income countries have the highest percentages of open access publication: a systematic computational analysis of the biomedical literature. PLoS One. 2019;14(7):e0220229.) No entanto, a produção de pesquisas científicas de alta qualidade nesses ambientes é desafiadora e, muitas vezes, financiada por agências como National Institutes of Health (NIH), Wellcome e a Fundação Gates; consequentemente, o impacto da isenção das taxas de processamento de artigos (TPAs) sobre a saúde financeira dos editores é mínimo. Por outro lado, os pesquisadores de países de renda média não recebem isenções de TPAs para publicar artigos de AA. Entre 1996 e 2022, dos 20 principais países em número de publicações, cinco pertenciam a essa categoria de renda (China, Índia, Rússia, Brasil e Turquia) e foram responsáveis por 27% de todas as publicações, de acordo com o portal SCImago.(22 SCImago Journal & Country Rank (SJR). Retrieved in October 20th, 2023. Available from https://www.scimagojr.com/countryrank.php
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) Um estudo que abrangeu os periódicos da Elsevier mostrou que as TPAs são uma barreira para a publicação de AA.(33 Smith AC, Merz L, Borden JB, Gulick CK, Kshirsagar AR, Bruna EM. Assessing the effect of article processing charges on the geographic diversity of authors using Elsevier’s “Mirror Journal” system. Quant Sci Stud. 2021;2(4):1123-43.)

Três das dez principais revistas de cuidados intensivos que publicam exclusivamente em formato de AA (Critical Care, Annals of Intensive Care e Journal of Intensive Care) tinham TPA entre US$ 2.490 e US$ 3.790 em 2023. Após a correção da paridade do poder de compra, conforme calculado pela Organization for Economic Co-operation and Development (OECD) em 2022,(44 Organization for Economic Co-operation and Development (OECD). OECD Data. Purchasing power parity calculation and estimation. Retrieved in October 20th, 2023. Available from https://data.oecd.org/conversion/purchasing-power-parities-ppp.htm
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) essas taxas corresponderiam à faixa de R$ 6.300 a R$ 9.600. Esses custos corresponderiam de 4,7 a 7,2 vezes o salário mínimo brasileiro,(55 Brasil. Presidência da República. Casa Civil. Secretaria Especial para Assuntos Jurídicos. Lei Nº 14.663, de 28 de agosto de 2º23. Define o valor do salário mínimo a partir de 1º de maio de 2023; estabelece a política de valorização permanente do salário mínimo a vigorar a partir de 1º de janeiro de 2024; e altera os valores da tabela mensal do Imposto sobre a Renda da Pessoa Física de que trata o art. 1º da Lei nº 11.482, de 31 de maio de 2007, e os valores de dedução previstos no art. 4º da Lei nº 9.250, de 26 de dezembro de 1995. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/L14663.htm#:~:text=Art.%202%C2%BA%20O%20valor%20do,1%C2%BA%20de%20maio%20de%202023
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) mas apenas de 1,9 a 2,8 vezes o salário mínimo francês(66 Republique Française. Increase of the minimum wage in France. [Retrieved in October 30th 2023). Available from https://www.welcometofrance.com/en/increase-of-the-minimum-wage-in-france
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) ou de 1,2 a 1,7 vez o salário mínimo canadense em 2023.(77 Government of Canada. Employment and Social Development Canada. Federal minimum wage rising to $16.65 on April 1. [Retrieved in October 30th 2023). Available from https://www.canada.ca/en/employment-social-development/news/2023/03/federal-minimum-wage-rising-to-1665-on-april-1.html
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) Convém destacar que as bolsas de pesquisa brasileiras não destinam fundos específicos para o pagamento de TPAs de artigos de AA, um descuido que precisa ser reconhecido e mudado com urgência. A política do NIH de exigir o AA dos resultados derivados de suas bolsas é um exemplo a ser seguido. Uma pesquisa informal e on-line com os 35 membros do Comitê Científico da Brazilian Research Intensive Care Network (BRICnet)(88 Brazilian Research in Intensive Care Netword (BRICnet). BRICnet, uma rede brasileira colaborativa para a realização de estudos multicêntricos em medicina intensiva. Rev Bras Ter Intensiva. 2007;19(3):408.) em setembro de 2023 para avaliar as atitudes em relação aos periódicos de AA recebeu respostas de 29 membros. Em termos gerais, concluiu-se que a maioria dos pesquisadores excluiu os periódicos de AA baseados em taxas ou levou em consideração esse recurso do periódico ao escolher um periódico para enviar um manuscrito, e as instituições dos pesquisadores ou não pagaram as taxas de publicação ou as subsidiaram apenas parcialmente (Figura 1).

Figura 1
Resultados de uma pesquisa informal e on-line para avaliar as atitudes em relação a periódicos de acesso aberto feita com 35 pesquisadores de terapia intensiva, membros da Brazilian Research Intensive Care Network (BRICnet) em setembro de 2023.

Acesso aberto total: o modelo da Critical Care Science

A Critical Care Science é uma publicação oficial da Associação de Medicina Intensiva Brasileira e da Sociedade Portuguesa de Cuidados Intensivos, de AA e indexada ao PubMed®. Apesar de ser de AA, ela não tem TPAs, o que significa que não há custo para os autores pela publicação. Esse modelo só é possível porque essas sociedades médicas decidiram financiar a revista como uma forma de beneficiar a comunidade médica. Esse modelo elimina as barreiras de publicação tanto para os leitores quanto para aqueles que produzem ciência. Outras sociedades importantes da área, ao adotarem políticas semelhantes, contribuiriam muito para a melhoria global da qualidade da assistência e da equidade.

Nos últimos 12 meses, 71% das submissões à Critical Care Science foram de autores sediados no sul global (com a exclusão do Brasil e de Portugal da lista). O que significa essa proporção? Ela representa claramente que a revista é diversificada e publica estudos dos principais países produtores de ciência (ou seja, Estados Unidos, França, Canadá), mas também significa que nossa abordagem de AA total oferece um caminho bem pavimentado sem barreiras para pesquisadores de PBMRs.

Atualmente, a revista continua comprometida com sua missão de manter o acesso totalmente aberto, sem barreiras, tanto para pesquisadores quanto para leitores. Essa prática beneficia todos os interessados e capazes de produzir (e aplicar) novas descobertas científicas em cuidados intensivos, independentemente de estarem em países de alta, média ou baixa renda.

As publicações de acesso aberto são essenciais para reduzir as desigualdades de acesso às publicações científicas. Entretanto, da perspectiva daqueles que produzem ciência, a publicação continua relativamente restritiva devido às altas taxas de processamento de artigos. Melhorar esse modelo em termos de equidade é o dever dos acadêmicos, das sociedades médicas e científicas, das agências de financiamento e dos órgãos reguladores, se quiserem traduzir a retórica sobre “saúde global” em uma realidade que beneficie a todos.

REFERENCES

  • 1
    Iyandemye J, Thomas MP. Low income countries have the highest percentages of open access publication: a systematic computational analysis of the biomedical literature. PLoS One. 2019;14(7):e0220229.
  • 2
    SCImago Journal & Country Rank (SJR). Retrieved in October 20th, 2023. Available from https://www.scimagojr.com/countryrank.php
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  • 3
    Smith AC, Merz L, Borden JB, Gulick CK, Kshirsagar AR, Bruna EM. Assessing the effect of article processing charges on the geographic diversity of authors using Elsevier’s “Mirror Journal” system. Quant Sci Stud. 2021;2(4):1123-43.
  • 4
    Organization for Economic Co-operation and Development (OECD). OECD Data. Purchasing power parity calculation and estimation. Retrieved in October 20th, 2023. Available from https://data.oecd.org/conversion/purchasing-power-parities-ppp.htm
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  • 5
    Brasil. Presidência da República. Casa Civil. Secretaria Especial para Assuntos Jurídicos. Lei Nº 14.663, de 28 de agosto de 2º23. Define o valor do salário mínimo a partir de 1º de maio de 2023; estabelece a política de valorização permanente do salário mínimo a vigorar a partir de 1º de janeiro de 2024; e altera os valores da tabela mensal do Imposto sobre a Renda da Pessoa Física de que trata o art. 1º da Lei nº 11.482, de 31 de maio de 2007, e os valores de dedução previstos no art. 4º da Lei nº 9.250, de 26 de dezembro de 1995. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/L14663.htm#:~:text=Art.%202%C2%BA%20O%20valor%20do,1%C2%BA%20de%20maio%20de%202023
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  • 6
    Republique Française. Increase of the minimum wage in France. [Retrieved in October 30th 2023). Available from https://www.welcometofrance.com/en/increase-of-the-minimum-wage-in-france
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  • 7
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  • 8
    Brazilian Research in Intensive Care Netword (BRICnet). BRICnet, uma rede brasileira colaborativa para a realização de estudos multicêntricos em medicina intensiva. Rev Bras Ter Intensiva. 2007;19(3):408.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    31 Out 2023
  • Aceito
    01 Nov 2023
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