Resumos
As comunidades quilombolas são consideradas comunidades negras rurais formadas por descendentes de africanos escravizados. No Vale do Ribeira, uma das regiões mais pobres do estado de São Paulo, estas comunidades vivem da agricultura de subsistência e principalmente da coleta do palmito juçara para complemento da renda familiar. A palmeira juçara possui importante papel ecológico e econômico para a Floresta Atlântica e para as comunidades rurais locais. O objetivo geral deste trabalho foi investigar aspectos etnoecológicos e etnobotânicos da palmeira juçara (Euterpe edulis Martius) em comunidades quilombolas do Vale do Ribeira, SP. A investigação se deu em sete comunidades quilombolas através da aplicação de 25 entrevistas semi-estruturadas e da realização de uma oficina de identificação dos animais consumidores de frutos da palmeira. Também foram realizadas coletas e identificação de visitantes florais. Os quilombolas entrevistados demonstraram um detalhado conhecimento ecológico local sobre a palmeira juçara, principalmente a relação da biodiversidade animal associada à espécie. Neste trabalho a etnoecologia e a etnobotânica mostram-se ferramentas importantes no levantamento participativo do conhecimento ecológico local do E. edulis que pode ser considerado no manejo e na conservação da espécie na Floresta Atlântica.
conhecimento ecológico local; palmito; Floresta Atlântica; comunidades quilombolas; biodiversidade
"Quilombola" communities are distributed all over Brazil. They are composed of the descendents of African slaves. In the Ribeira River Valley, one of the poorest regions in São Paulo state, they practice subsistence agriculture and extract plant resources from the environment, especially the juçara palm (Euterpe edulis Martius), a species that contributes to "quilombola" income. The juçara palm has special ecological and economic importance for "quilombolas". The main aim of this study was to investigate ethnobotanical and ethnoecological aspects of the juçara palm in "quilombola" communities of the Ribeira River Valley, São Paulo. The investigation conducted 25 semi-structured interviews with key-informants for seven "quilombola" communities and a workshop to identify palm-fruit animal consumers. Flower visitors were also collected and identified. The "quilombolas" interviewed showed detailed local ecological knowledge of the juçara palm, mainly animal biodiversity in relation to the species. Ethnoecology and ethnobotany were efficient tools for the participative survey of juçara palm local knowledge. Local ecological knowledge of E. edulis can be considered for Atlantic forest management and conservation.
Local ecological knowledge; palm heart; Atlantic forest; "quilombola" communities; biodiversity
ARTIGOS
Etnoecologia e etnobotânica da palmeira juçara (Euterpe edulis Martius) em comunidades quilombolas do Vale do Ribeira, São Paulo
Ethnoecology and ethnobotany of the juçara palm (Euterpe edulis Martius) in "quilombola" communities of the Ribeira River Valley, São Paulo
Renata Moreira BarrosoI,II,1; Ademir ReisIII; Natalia HanazakiIV
IUniversidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências Biológicas, Pós-graduação em Biologia Vegetal, Florianópolis, SC, Brasil
IILaboratório de Ecologia Humana e Etnobotânica, Departamento de Ecologia e Zoologia, Florianópolis, SC, Brasil
IIIProfessor Doutor do Departamento de Botânica, Centro de ciências biológicas, Florianópolis, SC, Brasil
IVUniversidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências Biológicas, Florianópolis, SC, Brasil
RESUMO
As comunidades quilombolas são consideradas comunidades negras rurais formadas por descendentes de africanos escravizados. No Vale do Ribeira, uma das regiões mais pobres do estado de São Paulo, estas comunidades vivem da agricultura de subsistência e principalmente da coleta do palmito juçara para complemento da renda familiar. A palmeira juçara possui importante papel ecológico e econômico para a Floresta Atlântica e para as comunidades rurais locais. O objetivo geral deste trabalho foi investigar aspectos etnoecológicos e etnobotânicos da palmeira juçara (Euterpe edulis Martius) em comunidades quilombolas do Vale do Ribeira, SP. A investigação se deu em sete comunidades quilombolas através da aplicação de 25 entrevistas semi-estruturadas e da realização de uma oficina de identificação dos animais consumidores de frutos da palmeira. Também foram realizadas coletas e identificação de visitantes florais. Os quilombolas entrevistados demonstraram um detalhado conhecimento ecológico local sobre a palmeira juçara, principalmente a relação da biodiversidade animal associada à espécie. Neste trabalho a etnoecologia e a etnobotânica mostram-se ferramentas importantes no levantamento participativo do conhecimento ecológico local do E. edulis que pode ser considerado no manejo e na conservação da espécie na Floresta Atlântica.
Palavras-chave: conhecimento ecológico local, palmito, Floresta Atlântica, comunidades quilombolas, biodiversidade
ABSTRACT
"Quilombola" communities are distributed all over Brazil. They are composed of the descendents of African slaves. In the Ribeira River Valley, one of the poorest regions in São Paulo state, they practice subsistence agriculture and extract plant resources from the environment, especially the juçara palm (Euterpe edulis Martius), a species that contributes to "quilombola" income. The juçara palm has special ecological and economic importance for "quilombolas". The main aim of this study was to investigate ethnobotanical and ethnoecological aspects of the juçara palm in "quilombola" communities of the Ribeira River Valley, São Paulo. The investigation conducted 25 semi-structured interviews with key-informants for seven "quilombola" communities and a workshop to identify palm-fruit animal consumers. Flower visitors were also collected and identified. The "quilombolas" interviewed showed detailed local ecological knowledge of the juçara palm, mainly animal biodiversity in relation to the species. Ethnoecology and ethnobotany were efficient tools for the participative survey of juçara palm local knowledge. Local ecological knowledge of E. edulis can be considered for Atlantic forest management and conservation.
Key words: Local ecological knowledge, palm heart, Atlantic forest, "quilombola" communities, biodiversity
Introdução
A palmeira juçara (Euterpe edulis Martius) é considerada uma espécie de grande importância para a Floresta Atlântica devido suas características ecológicas (Galleti et al. 1999; Reis & Kageyama 2000), e características econômicas de grande significado para a região do Vale do Ribeira-SP (Resende 2002), principalmente por constituir a renda de muitas comunidades locais como das comunidades quilombolas (ITESP 1998).
As comunidades quilombolas são consideradas populações tradicionais formadas por descendentes de escravos (Diegues & Viana 2004) que segundo Guanaes et al. (2004) residem em locais de difícil acesso e desenvolvem práticas produtivas tradicionais como a roça de subsistência e a coleta de produtos florestais, principalmente o palmito juçara para venda como ressalta o ITESP (1998).
O conhecimento ecológico local das populações tradicionais pode estar relacionado diretamente com o manejo e conservação do ambiente como propõe a etnobiologia (Posey 1986), apresentando-se como uma ferramenta fundamental no processo de elaboração de estratégias de manejo, por agregar informações de caráter ecológico, social e econômico, que podem resultar em planos de desenvolvimento melhor adaptados às condições locais (Berkes 1999; Hanazaki 2003; Coelho de Souza & Kubo 2006). Dentro na etnobiologia vários campos podem ser definidos, partindo da visão compartimentada das ciências sobre o mundo natural, tais como a etnobotânica e a etnoecologia (Haverroth 1997).
A etnoecologia segundo Martin (1996) tem sido usada para designar todos os estudos que descrevem a interação de uma população local com seu ambiente natural. Já a etnobotânica segundo Alcorn (1995) é o estudo das inter-relações planta ser-humano inseridas em ecossistemas dinâmicos com componentes naturais e sociais, ou simplesmente o estudo contextualizado do uso das plantas. Cunningham (2001) argumenta que o conhecimento etnobotânico quando considerado para a conservação geralmente é relacionado ao uso sustentável de um dado recurso.
A palmeira juçara (E. edulis), além das características favoráveis ao manejo sustentável (Reis et al. 2000), pode fornecer diversos produtos além do palmito: o estipe maduro para caibros e ripas para construção; as folhas são usadas para coberturas temporárias e forrageio; frutos fornecem um "vinho" semelhante ao do açaí Euterpe oleracea Martius (Pio Corrêa 1969).
Assim o objetivo deste estudo foi investigar alguns aspectos Etnoecológicos e Etnobotânicos da palmeira juçara (Euterpe edulis Martius) em comunidades quilombolas do Vale do Ribeira, São Paulo.
Materiais e métodos
O Vale do Ribeira está localizado no litoral sul do estado de São Paulo. Segundo a classificação de Koeppen (1948), o clima da região define-se como quente/úmido com temperaturas inferiores de 18°C no mês mais frio e superiores a 22°C no mês mais quente. A vegetação predominante é classificada como Floresta Ombrófila Densa Montana/Submontana (Veloso & Góes Filho 1982). O Vale do Ribeira possui 60% de toda a sua área recoberta por vegetação nativa e unidades de conservação estaduais (Resende 2002).
Este estudo envolveu sete comunidades quilombolas da região do Vale do Ribeira: Ivaporunduva, Sapatu, Nhunguara, Galvão, São Pedro, Pedro Cubas, pertencente ao município de Eldorado, e Mandira pertencente ao município de Cananéia.
Foram entrevistadas 25 pessoas das 7 comunidades. Os entrevistados foram considerados informantes-chave por possuírem conhecimentos adquiridos localmente a partir da observação, do uso ou da exploração do palmito juçara nas áreas de florestas locais. As entrevistas ocorreram ao longo do ano de 2008.
Para cada indivíduo foram explicados os propósitos da entrevista, sendo solicitada a Anuência Prévia para realização da mesma. Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas, utilizando um protocolo de entrevistas com perguntas sobre a caracterização do informante como a idade e o seu envolvimento com a atividade de exploração do palmito juçara (E. edulis). Para o levantamento de informações sobre a etnoecologia da palmeira juçara foram realizadas perguntas abertas sobre: o período de floração e frutificação, visitantes florais, a variedade de animais que se alimentam das partes reprodutivas e vegetativas da palmeira, e outras informações ecológicas da espécie. No levantamento de informações etnobotânicas as perguntas foram sobre a importância que os quilombolas atribuem à espécie, sobre as partes que utilizam, os usos que realizam da palmeira e sobre alguns aspectos ecológicos da floresta que influenciam o desenvolvimento do E. edulis.
Neste trabalho foi aplicada uma metodologia para identificação dos nomes científicos das diversas espécies de aves e mamíferos citados nas entrevistas baseada na utilização de imagens e fotografias. Nas primeiras entrevistas notou-se que os animais citados eram principalmente aves e mamíferos, foram então procuradas publicações ilustradas em que esses animais apareciam contendo nomenclatura popular e científica. A partir daí as publicações ilustradas foram mostradas aos quilombolas após a realização das entrevistas e os animais ilustrados apontados por eles foram utilizados na preparação de uma oficina de re-identificação.
Com os dados resultantes da pré-identificação dos animais citados nas entrevistas e dos animais apontados pelos entrevistados nos guias ilustrados, foi preparado o material utilizado na oficina de re-identificação realizada na comunidade de Ivaporunduva. A intenção da oficina foi reunir alguns entrevistados de forma participativa para reconhecer e confirmar a identificação das espécies de aves e mamíferos que se alimentam dos frutos e de partes vegetativas da palmeira juçara.
Os materiais utilizados foram ilustrações e fotos coloridas de aves e mamíferos (Develey & Endrigo 2004; Souza 2004; Frisch 2005; Reis et al. 2006; Bonvicino et al. 2008) e um cartaz onde foram desenhadas com tinta guache diversas palmeiras juçara frutificando. O cartaz foi estendido ao chão e as crianças presentes distribuíram e colaram no cartaz as ilustrações coloridas de todos os animais citados nas entrevistas. Depois da colagem das figuras, seis adultos, dos quais cinco participaram das entrevistas, marcaram com canetas coloridas as figuras dos animais os quais se alimentavam dos frutos e partes e vegetativas da palmeira juçara (Fig. 1).
Após a oficina, as ilustrações identificadas tiveram suas nomenclaturas popular e científica listadas. Com a lista das espécies identificadas foi realizada uma pesquisa em bibliografias que estudaram os animais consumidores e dispersores de E. edulis na Floresta Atlântica.
A fim de identificar alguns dos visitantes florais citados nas entrevistas foi realizada captura de insetos em quintais quilombolas do município de Eldorado. Os insetos foram capturados com puçá e conservados em álcool 72%. Realizou-se 5 horas e meia de observação distribuídas em 3 dias entre o período das 9:30 às 13:00 horas, entre os meses de dezembro de 2008 a janeiro de 2009. Os insetos foram identificados por Rafael Kamke e Lívia Leal Dorneles do Laboratório de Abelhas da Universidade Federal de Santa Catarina (LAN-UFSC).
Com os dados mensais de ocorrência de flor e fruto fornecido nas entrevistas foi possível montar um calendário de fenologia de flor e fruto com base no total de citações para cada um dos meses. Os resultados obtidos nas entrevistas sobre os visitantes florais e os animais consumidores de frutos e partes vegetativas da palmeira juçara tiveram sua porcentagem de citações calculada da relação entre o número de entrevistas em que aparecem como resposta pelo total de entrevistas realizadas (n=25).
A dispersão realizada pelos animais que se alimentam dos frutos nos cachos da palmeira foi considerada como a dispersão primária, a dispersão realizada pelos animais que se alimentam dos frutos no solo das florestas foi considerada como sendo a dispersão secundária e os animais que consomem partes vegetativas da palmeira foram considerados predadores, assim como nos trabalhos de Reis (1995) e Reis & Kageyama (2000).
Resultados e discussão
Dos vinte e cinco entrevistados 96% possuíam juçara em seus quintais, 92% já praticaram exploração do palmito para venda, e 64% já manejaram sementes de juçara nos quintais para venda. A idade da maioria dos entrevistados estava entre 30 e 70 anos.
O calendário reprodutivo da palmeira juçara segundo a observação dos quilombolas encontra-se na Tab. 1 As citações para o período de floração ocorreram nos meses de agosto a fevereiro tendo o pico floração entre os meses de setembro a novembro, as citações para período de frutificação ocorreram entre os meses de setembro a julho, tendo o pico de frutos maduros entre os meses de fevereiro a julho. Não apareceram diferenças nos resultados dos períodos de pico de floração e frutificação entre as entrevistas realizadas nos municípios de Cananéia e Eldorado. O período de frutificação de E. edulis no calendário quilombola apresenta longa duração durante o ano, o que também foi encontrado por Castro (2003).
Do total dos entrevistados 20% disseram que o período reprodutivo depende de algumas características locais de clima como chuva e temperatura. Segundo o calendário quilombola, o início do período reprodutivo depende de variações climáticas anuais. Ziparro (2004) avaliando a fenologia de flor e fruto do E. edulis afirma que o período reprodutivo pode variar conforme o clima, a quantidade de chuvas e a temperatura, Mantovani & Morellato (2000) afirmam que o período reprodutivo também é influenciado pela altitude e latitude.
A Tab. 2 apresenta os nomes populares dos 20 visitantes florais da palmeira juçara citados nas entrevistas e as porcentagens de citações em relação ao número total de entrevistados. Foi citada uma grande variedade de visitantes florais, os mais citados foram as abelhas (92%) (Apis sp.), incluindo abelhas africanas e européias, seguidas pela abelha arapuá nativa (48%) e as mamangavas (40%).
Dos insetos coletados em campo foram identificadas em laboratório 5 famílias em 3 ordens: Hymenoptera, Halictidae (Augochloropsis sp., Dialictus sp., Habralictus cf. flavopictus, Neocorynura sp.); Hymenoptera, Apidae (Apis mellifera, Bombus morio, Bombus brasiliensis, Trigona spinipes, Exomalopsis sp.); Lepidoptera, Arctiidae (não identificado); Diptera, Muscidae (não identificado) e Diptera, Drosophilidae (não identificado).
Durante as entrevistas um dos entrevistados disse que em suas observações as flores da palmeira juçara só desenvolvem os frutos quando são visitadas pela abelha nativa conhecida como arapuá, espécie que foi identificada como Trigona spinipes.
"(...) a abelha arapuá é a única que faz granar o fruto" (morador da comunidade do Sapatu, 56 anos).
A maior variedade de animais citados nas entrevistas foi dos que se alimentam dos frutos sobre as árvores e assim realizam a dispersão primária (Tab. 3) apresentando grande riqueza de aves e alguns mamíferos. Dos 28 animais citados 26 são de aves (93%) e dois de mamíferos (7%). A possível identificação desses animais, obtida a partir das entrevistas e da oficina será discutida adiante.
Quanto aos animais que se alimentam dos frutos sob as árvores (Tab.4), dos 20 animais citados 16 são mamíferos (81%), três aves (14%) e um réptil (5%).
A percepção dos entrevistados sobre a maneira que os animais se alimentam dos frutos de E. edulis estão resumidas na Tab. 5 Em relação aos animais que se alimentam dos frutos nos cachos, foram citadas as aves e sua grande maioria, havendo consenso entre os quilombolas entrevistados que estas se alimentam da polpa; 36% dizem que as aves "cospem" as sementes; 32% dizem que as aves só "fazem as sementes junto com as fezes" e citaram o jacu como exemplo; 24% dos entrevistados acham que algumas aves "cospem" as sementes e outras "fazem as sementes junto com as fezes". Para 76% dos entrevistados os animais que se alimentam dos frutos no solo mastigam os frutos inteiros e engolem, com exceção dos preás e ratos que roem a polpa e parte da semente, e da anta que "faz as sementes inteiras" nas fezes, o restante dos entrevistados (8%), não soube responder.
Os quilombolas mostraram possuir um sistema de classificação próprio (Tab. 5) que distingue em duas classes os grupos de animais que se alimentam dos frutos nos cachos e em três classes os animais que se alimentam dos frutos no solo. Esta classificação quilombola é semelhante à classificação de Reis e Kageyama (2000), que agruparam os animais dispersores de E. edulis tomando como base o comportamento e a capacidade destes animais em dispersar as sementes. As cinco classes de animais que se alimentam de frutos de E. edulis segundo os quilombolas entrevistados correspondem à seis classes do sistema de classificação frugívoros de Reis & Kageyama (2000).
A segunda maior riqueza de animais citados, num total de 25, foi dos animais que consomem partes vegetativas da palmeira (Tab. 6) como o estipe, palmito, folhas, sementes em início de germinação e plântulas. Não foram encontrados registros em literatura sobre o consumo de partes vegetativas de juçara.
Nas entrevistas foram citados 57 animais de diferentes espécies que consomem partes reprodutivas (frutos e sementes) e partes vegetativas na palmeira (plântulas, folhas e palmito) onde estão incluídas espécies de aves, mamíferos, reptéis, gastrópodes e insetos. Durante a oficina para identificação dos animais consumidores e dispersores de frutos de E. edulis realizada na comunidade de Ivaporunduva (Fig. 1) foi possível chegar à identificação de 40 espécies de aves e mamíferos com nomenclatura científica. As espécies de aves e mamíferos com nomenclatura popular e científica, a parte do fruto que consomem, o levantamento bibliográfico em que esses animais são citados e seus respectivos locais de estudo encontram-se nas Tab.7 e Tab. 8.
Reis & Kageyama (2000) identificaram sabiás (Turdus spp.), tucanos (Ramphastus discolorus), arapongas (Procnias nudicollis), jacuguaçus (Penelope obscura), jacupemba (Penelope superciliares), aracuans (Ortalis squamata), bem-te-vis (Pitangus sulphuratus), siriris (Tyrannus melancholicus), surucuás (Trogon sp.), sanhaço (Traupis spp), araçaris-banana (Baillonius bailoni), e esquilos (Sciurus aestuans), alimentando-se dos frutos sobre as plantas dos palmiteiros, a maioria desses animais também foi citado pelos quilombolas, tirando aracuans, bem-te-vis, siriris, e sanhaço.
Nas entrevistas as aves mais citadas (Tab. 3) e provavelmente as aves que mais são observadas foram o tucaninho de bico-rajado (Selenidera), os tucanos de bico verde e bico preto (Ramphastos), os jacus (Penelope e Pipile), os sabiás (Turdus), e as arapongas (Procnias nudicollis).
Os roedores apareceram nas entrevistas tanto como dispersores primários como dispersores secundários, como é o caso do esquilo também chamado de caxinguelê na região de estudo. Reis & Kageyama (2000) observaram que os resíduos de polpa e as marcas de dentes nas sementes sugerem a participação de roedores na dispersão. O lagarto também foi citado pelos quilombolas como dispersor secundário dos frutos de E. edulis, em campo Reis & Kageyama (2000) observaram répteis como o lagarto (Tupinambus spp.) também apresentando interações com os frutos.
Na oficina na comunidade de Ivaporunduva foi possível a identificação com nome científico de 40 espécies de animais, sendo 25 de aves (62%) e 15 de mamíferos (37%). Troian (2009), em um levantamento sobre o conhecimento ecológico local dos animais consumidores de frutos de E. edulis com pequenos agricultores do município de Maquiné-RS, levantou 29 espécies de animais sendo 59% de aves e 41% de mamíferos.
Cortês (2006) em um levantamento de aves e mamíferos frugívoros consumidores de frutos de E. edulis observou 22 espécies consumindo os frutos em Caraguatatuba-SP e 11 espécies na Ilha Anchieta-SP. Em Caraguatatuba foram observadas 18 espécies de aves (82%) e 3 de mamíferos (19%), na Ilha Anchieta foram 9 espécies de aves (82%) e duas de mamíferos (19%).
No Parque Estadual de Intervales (PEI), Galetti et al. (1999) realizaram a observação focal de 32 espécies, 21 aves (65,6%) e 11 mamíferos (34,4%) neste trabalho os autores predizem que nas áreas não defaunadas da Floresta Atlântica a assembléia de frugívoros que poderiam consumir os frutos de E. edulis poderia chegar a riqueza de 25 espécies de aves e 15 espécies de mamíferos (incluindo roedores e morcegos), exatamente a riqueza de aves e mamíferos que foram identificadas no atual trabalho, porém com algumas espécies diferentes.
No trabalho de Troian (2009), que realizou 14 entrevistas sobre a variedade de animais que consomem os frutos da palmeira juçara em Maquiné-RS, encontrou-se uma diferença entre a riqueza de espécies de aves (59%) e mamíferos (41%) (Tab. 7 e Tab. 8) bem menor se comparada aos outros levantamentos realizados no estado de São Paulo. A metodologia utilizada no trabalho de Troian (2009) assemelha-se mais ao atual trabalho por tratar-se do conhecimento ecológico local, quando comparada ao de Cortês (2006) e Galetti et al. (1999).
De todos os animais citados nas entrevistas, aqueles que consomem as partes vegetativas da palmeira juçara, e se comportam como animais predadores, foram os que representaram a maior riqueza de classes. Dos 25 animais citados que se enquadram nesta definição 16 são mamíferos (64%) e 4 são aves (16%), 4 são insetos (16%) e um gastrópode (4%).
Dados de Reis e Kageyama (2000) chamam a atenção para o fato de que além de terem a disponibilidade de frutos maduros durante seis meses por ano, os animais têm ainda disponíveis no chão da floresta, as sementes, os frutos imaturos e todo o banco de plântulas como alimento potencial para os herbívoros. Algumas aves foram observadas por Galetti et al. (1999) ingerindo frutos imaturos de palmito, mostrando que estes também servem de recursos alimentares para algumas espécies. Cortês (2006) identificou o tucaninho-de-bico-rajado (Selenidera maculistrostris) alimentando-se de frutos verdes em Caraguatatuba SP. Nas entrevistas, os quilombolas citaram além do tucaninho-de-bico-rajado a araponguinha-amarela (Oxyruncus cristatus) que também consome frutos verdes.
Apesar dos animais que se alimentam das partes vegetativas da palmeira terem apresentado grande riqueza de espécies e a maior diversidade de classes, não foi encontrado nenhum estudo sobre animais que consomem partes vegetativas de E. edulis. Estudos nesta área seriam de importância fundamental para o entendimento da demografia, dinâmica e níveis de interação de E. edulis com outras espécies.
Durante a coleta de dados alguns entrevistados disseram que conhecem muitos dos animais que se alimentam dos frutos da juçara ao observarem a polpa roxa na retirada das vísceras durante o preparo da carne da caça para consumo caseiro, pois na floresta costumam observar apenas os vestígios desses animais.
"(...)Vejo a coisa roxa da Jiçara na tripa das caças aí é que sei" (morador da comunidade do Nhunguara, 69 anos).
Os caçadores, além de circularem bastante pela mata muitas vezes permanecem observando horas a um determinado local a espera de suas "presas". Esta estratégia faz com que a maioria dos caçadores tenha um conhecimento detalhado acerca da dieta de animais frugívoros, além de quais animais encontram-se na mata.
Os territórios das comunidades quilombolas que participaram deste estudo fazem parte de um contínuo de áreas protegidas formado por Áreas de Proteção Ambiental e Parques Estaduais. A grande riqueza de espécies deste estudo provavelmente deve-se à alta diversidade de espécies que ocorrem neste contínuo de áreas protegidas onde se localizam as comunidades quilombolas, e também devido a estas comunidades apresentarem um detalhado conhecimento sobre a biodiversidade local. O conhecimento sobre os animais consumidores e dispersores dos frutos de E. edulis segundo os entrevistados foi adquirido da observação durante a exploração de diversos recursos florestais, como o corte de palmito e a prática da caça.
Outros aspectos ecológicos relacionados ao desenvolvimento do E. edulis na floresta atlântica foram mencionados pelos quilombolas entrevistados. Os aspectos mais citadas foram principalmente em relação a umidade e luminosidade, como lugar úmido e fresco (76%), lugar de vale sombreado (72%), condições de sombreamento para a germinação (40%) e em menor frequência o equilíbrio entre sombra e sol (12%) e abertura de clareiras (12%).
Segundo Reitz et al. (1978) e Klein (1968) E. edulis é tida como uma espécie de sombra. Paulilo (2000) relata que a espécie E. edulis tem capacidade de aclimatar-se em até 20% de luz solar direta, acima deste nível de radiação a espécie não mais aumenta sua taxa de crescimento. A desidratação é a principal causa da morte rápida das sementes, a redução do teor de umidade abaixo de 28% provoca significativa redução nas taxas de germinação de E. edulis (Reis et al. 1999). Estes trabalhos (Klein, 1968; Reitz et al. 1978; Reis et al. 1999; Paulilo 2000) mostram que as características mais citadas pelos quilombolas como o alto teor de umidade, baixa condição de luminosidade para a germinação e o aparecimento de clareiras, são condições ambientais necessárias ao desenvolvimento inicial de E. edulis no sub-bosque das florestas.
Segundo alguns entrevistados, as condições ambientais necessárias ao desenvolvimento da palmeira juçara na floresta influenciam características relacionadas à qualidade do palmito, das folhas e dos frutos da palmeira.
"No sol o palmito desenvolve mais rápido que na floresta. O palmito desenvolve mais no úmido e fica maior e melhor do que na terra seca. No mato como não tem luz ela cresce mais e vai subindo. No limpo a Jiçara vai crescendo grossa desde nova porque pega sol desde nova. Com quatro cinco anos no limpo já está produzindo fruto, no mato vai até dezessete anos para produzir" (morador da comunidade de Pedro Cubas, 63 anos).
"Quando cortava palmito ia em terra úmida, porque o palmito rendia mais para cortar e descascar, como beira de rio." (morador da comunidade do Nhunguara, 69 anos).
Esses depoimentos mencionam as características de umidade do solo e a luminosidade como fatores que influenciam na grossura e na maciez do palmito a ser colhido. A frequente colheita de produtos florestais, como o palmito que os quilombolas realizam nas florestas são práticas do dia-a-dia dos moradores quilombolas que propiciam a observação de aspectos fisiológicos, morfológicos e ecológicos da palmeira juçara. Estes aspectos observados influenciam o manejo a ser realizado e a qualidade do produto no qual os quilombolas estão interessados, seja, o palmito, o estipe, as folhas ou os frutos.
Quanto ao reconhecimento da importância que a palmeira juçara representa para a floresta e para o homem, a maioria dos quilombolas entrevistados reconhecem que a espécie é muito importante na alimentação dos animais que vivem nas florestas (80%), 36% atribui ao fato de atrair diversas espécies de animais, 20% na alimentação humana na forma de palmito, 16% para a atração de animais de caça contribuindo também na alimentação humana, 16% reconhecem a importância econômica e social devido a geração de renda que o palmito representa para as comunidades locais, 12% atribui importância utilitária que fazem das diversas partes da palmeira em seu dia-a-dia como o uso de tronco (estipe), folhas e palmito, e 12% dos entrevistados disseram que as juçaras embelezam os lugares, atribuindo valor paisagístico aos quintais e florestas onde ocorrem.
Destaca-se a importância indireta dos frutos de E. edulis para as comunidades quilombolas, pois seus frutos atraem muitos animais que são caçados para complemento da alimentação humana. Alguns entrevistados falaram da importância de ter palmeiras nos quintais pois os animais se alimentam dos frutos de juçara e os moradores consequentemente se alimentam desses animais.
Todos os entrevistados mencionaram coletar partes da palmeira para variadas funções. O palmito, parte correspondente ao meristema apical da planta, o estipe e as folhas apareceram com maior freqüência. O palmito é utilizado na alimentação e na comercialização. O estipe já foi muito utilizado em construção de casas de pau-a-pique na forma de esteios, hoje é principalmente usado na estrutura dos telhados, como ripa, caibro, na fabricação de alguns móveis como prateleira, estrado de cama e utensílios domésticos e de caça como moenda de cana, e mundéu (armadilha de caça). As folhas trançadas ou não, são utilizadas para a cobertura de barracos (acampamentos na mata), nas capovas (pequenas casas de pau-a-pique tradicionais quilombolas onde são armazenadas as colheitas das roças), coberturas e galinheiros, canteiros de horta e viveiros de mudas, também na confecção de colchões e trançados para caçar peixe. Além disso, também são utilizadas como alimento para burros e cavalos.
As sementes são usadas na produção de mudas, em repovoamento por semeadura a lanço e na confecção de artesanato.
O uso mais diferenciado mencionado foi o uso medicinal da seiva do palmito jovem. Dos entrevistados 52% já utilizaram ou viram alguém da família utilizar, a seiva de forma medicinal para desinfecção, anestésico, ou para a coagulação do sangue em regiões do corpo de cães ou seres humanos que foram afetados por cortes ou picadas de cobra na mata.
Os quilombolas mencionaram fazer uso de diversas partes da palmeira para variadas funções ressaltando a importância econômica da espécie em seu dia-a-dia. Como vemos a espécie apresenta múltiplos usos. O levantamento dos diversos usos que a palmeira juçara (E. edulis) pode fornecer representa um desafio para a transformação desses produtos em alternativas econômicas sustentáveis. O potencial desses produtos deve ser considerado para subsistência e complemento de renda das populações que vivem dos recursos florestais.
Outras características etnobotânicas da palmeira juçara
Nas entrevistas realizadas resultaram outras informações sobre a palmeira juçara consideradas relevantes quando relacionadas ao manejo do E. edulis, como a existência de palmeira juçara vermelha, da palmeira juçara branca e da palmeira "macho".
Para 56% dos quilombolas a palmeira juçara "macho", também conhecida como "capeado", possui a região do palmito coberto por uma capa de folhas mortas, e por isso não emite inflorescências. Reis (1995) também observou esses indivíduos em Blumenau-SC, reconhecidos popularmente como "machos" ou "encapados", segundo o autor devido a presença de folhas não decíduas as inflorescências não conseguem ficar expostas aos polinizadores, o que pode ter origem genética relacionada com a potencialidade de reprodução dentro de indivíduos de uma mesma população. Segundo os quilombolas entrevistados os indivíduos "machos" são caracterizados por possuírem o palmito mais grosso, mais comprido e com mais polpa que outros não "machos".
Para 36% dos quilombolas entrevistados há dois tipos da palmeira juçara, a branca e a vermelha. Segundo eles a diferença aparece na cor da casca do palmito e em outras características morfológicas. A palmeira branca emite muitas raízes ao solo, é baixa, o estipe e o palmito são mais grossos, e mais fáceis de cortar por serem macios e os frutos são graúdos. Devido a todas estas características favoráveis ao manejo do palmito e dos frutos, é a juçara preferida para plantio em quintais. A palmeira vermelha possui características contrárias à branca, emite poucas raízes ao solo, é alta, o estipe e o palmito são finos e difíceis de cortar por serem mais rígidos, além dos frutos serem menores. Devido à característica de possuir um estipe mais rígido, ela é considerada viável para a produção de madeira para construção. Os quilombolas diziam que quando cortavam palmito conseguiam reconhecer os dois tipos de juçara ao sentirem o estipe macio ou rígido, o palmito fácil ou difícil de descascar, e ao observarem a cor da casca do palmito branca ou avermelhada.
"No meu quintal só tem palmeira branca, o palmito é mais mole e cresce rápido. O tronco da palmeira vermelha é mais duro, bom para fazer um palanque, pois é mais dura que a branca. O cerne da branca é branco mesmo, e da vermelha é vermelho. A branca dá mais cacho que a vermelha e o fruto é mais graúdo. A vermelha demora mais para crescer que a branca e é mais difícil de morrer." (morador da comunidade do Ivaporunduva, 64 anos).
O conhecimento popular associado aos recursos genéticos de plantas cultivadas segundo afirma Valle (2002), é imprescindível para viabilizar sua utilização, tanto para finalidades tradicionais determinadas pela própria população que mantém esses recursos, quanto para sua conservação in- situ e ex- situ visando utilizações futuras em melhoramento genético participativo.
Durante o levantamento etnobotânico, neste trabalho, vimos que a palmeira juçara é uma espécie que apresenta múltiplos usos, assim seu manejo pode ser direcionado para a obtenção de diversos produtos como folhas, tronco (estipe), palmito, frutos e sementes. Apesar do conhecimento dos diferentes tipos de palmeira juçara apresentarem grande importância para a conservação, a utilização e o manejo da espécie, nenhum trabalho foi encontrado sobre as palmeiras juçara branca e vermelha, o que mostra a necessidade de estudos que as caracterizem visando o uso múltiplo da espécie.
Neste trabalho a etnoecologia e a etnobotânica mostram-se como ferramentas eficientes no levantamento do conhecimento ecológico local e na abordagem participativa de características do E. edulis que podem ser consideradas na discussão e na proposição de práticas do manejo sustentável e de conservação da espécie na Floresta Atlântica.
Agradecimentos
Agrademos todas os entrevistados quilombolas que participaram da pesquisa; ao pessoal do laboratório de Ecologia Humana e Etnobotânica/UFSC; a V. A. Klier; a D. B. Nogueira; a R. Kamke e L. L. Dornelles, do Laboratório de Abelhas Nativas da UFSC; ao PPG Biologia Vegetal- UFSC e ao Instituto Socioambiental. N. Hanazaki agradece ao CNPq pela bolsa produtividade.
Referências bibliográficas
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Recebido em 12/10/2009.
Aceito em 29/03/2010
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
09 Ago 2010 -
Data do Fascículo
Jun 2010
Histórico
-
Recebido
12 Out 2009 -
Aceito
29 Mar 2010