Open-access Scaffolds Vasculares Descelularizados Provenientes de Vasos Sanguíneos de Placenta Bovina

Resumo

Fundamento  As doenças associadas ao aparelho circulatório são as principais causas de morbidade e mortalidade em todo o mundo, implicando a necessidade de implantes vasculares. Assim, a produção de biomateriais vasculares tem se mostrado uma alternativa promissora às terapias utilizadas em estudos e pesquisas relacionados à fisiologia vascular.

Objetivos  O presente projeto visa ao desenvolvimento artificial de vasos sanguíneos pela recelularização de scaffolds vasculares derivados de vasos placentários bovinos.

Métodos  A superfície corioalantoide da placenta bovina foi utilizada para produzir biomateriais descelularizados. Para a recelularização, 2,5 x 104 células endoteliais foram semeadas acima de cada fragmento de vaso descelularizado durante três ou sete dias, quando a cultura foi interrompida e os fragmentos foram fixados para análise de adesão celular. Biomateriais descelularizados e recelularizados foram avaliados por histologia básica, microscopia eletrônica de varredura e imuno-histoquímica.

Resultados  o processo de descelularização produziu vasos que mantiveram a estrutura natural e o conteúdo de elastina, e não foram observadas células e gDNA remanescentes. Além disso, células precursoras endoteliais se ligaram ao lúmen e à superfície externa do vaso descelularizado.

Conclusão  nossos resultados mostram a possibilidade de usos futuros desse biomaterial na medicina cardiovascular, como, por exemplo, no desenvolvimento de vasos artificiais.

Matriz Extracelular Descelularizada; Bioengenharia; Vasos Sanguíneos

Background

Diseases associated with the circulatory system are the main causes of worldwide morbidity and mortality, implying the need for vascular implants. Thus, the production of vascular biomaterials has proven to be a promising alternative to therapies used in studies and research related to vascular physiology.

Objectives  The present project aims to achieve the artificial development of blood vessels through the recellularization of vascular scaffolds derived from bovine placental vessels.

Methods  The chorioallantoic surface of the bovine placenta was used to produce decellularized biomaterials. For recellularization, 2.5 x 104 endothelial cells were seeded above each decellularized vessel fragment during three or seven days, when culture were interrupted, and the fragments were fixed for cell attachment analysis. Decellularized and recellularized biomaterials were evaluated by basic histology, scanning electron microscopy, and immunohistochemistry.

Results  The decellularization process produced vessels that maintained natural structure and elastin content, and no cells or gDNA remains were observed. Endothelial precursor cells were also attached to lumen and external surface of the decellularized vessel.Conclusion: Our results show a possibility of future uses of this biomaterial in cardiovascular medicine, as in the development of engineered vessels.

Decellularized Extracellular Matrix; Bioengineering; Blood Vessels

Introdução

As doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) têm aumentado principalmente devido ao sedentarismo, alimentação industrializada, ingestão calórica alta, consumo de álcool e tabagismo. Dentre as DCNT, as relacionadas à insuficiência do sistema circulatório são as principais causas de morbidade e mortalidade mundial.1-3 Essa insuficiência é majoritariamente tratada por cirurgia vascular e são necessários vasos viáveis, que geralmente são derivados da dissecção de vasos periféricos autólogos e implantação no local afetado. No entanto, são comumente descritas complicações infecciosas, necrose e deiscência no local da retirada dos vasos. Em alguns casos, coloca-se um stent no vaso lesionado em vez do fragmento do vaso periférico, porém possíveis complicações são fraturas e hiperplasia intimal.4,5

Nesse cenário, avanços significativos foram alcançados pela bioengenharia na produção de novos órgãos funcionais ou funcionalizados, como o desenvolvimento de vasos sanguíneos projetados para dar suporte à vascularização funcional.6-8 Até agora, vasos de pequena escala foram produzidos e a maioria deles é formada a partir de derivados de polímeros sintéticos rígidos.6,9 Por outro lado, vasos projetados que mantenham sua função estrutural e celular por períodos longos ainda não foram produzidos.

Assim, a produção de biomateriais vasculares por recelularização, e especialmente por bioimpressão, tem se mostrado uma alternativa promissora às terapias utilizadas em doenças e estudos relacionados à fisiologia vascular.9,10 Nosso objetivo aqui é produzir biomateriais vasculares derivados de vasos placentários bovinos descelularizados que possam ser usados como sua estrutura tridimensional natural ou como biogéis.

Materiais e Métodos

Amostra e células

Para isolamento dos vasos, placenta bovina com idade estimada de 270 dias de gestação foi obtida em abatedouro. Para os ensaios de citocompatibilidade, duas células progenitoras endoteliais foram utilizadas: saco vitelino canino (SV) e células do saco vitelino canino com superexpressão do fator de crescimento endotelial vascular (VEGF) e da proteína verde fluorescente (eGFP) (SV-VEGF).11 Todos os experimentos foram aprovados pelo Comitê de Ética no Uso de Animais da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo, sob o protocolo número 9715100718.

Protocolo de descelularização

A superfície corioalantóide da placenta bovina foi utilizada para produzir biomateriais descelularizados. O corioalantoide foi individualizado e as artérias umbilicais foram canuladas com cateteres nº 14 e conectadas ao biorreator ORCA (Harvard Aparattus, EUA). Inicialmente, a perfusão foi realizada com solução tampão de fosfato (PBS: 136,9 mM NaCl, 26,8 mM KCl, 14,7 MM KH2PO4 e 8,1 mM Na2HPO4.7H2O; pH 7,2) com volume constante de 0,5 ml/min até completa limpeza do sistema vascular, aproximadamente 24 horas. Em seguida, uma solução de dodecil sulfato de sódio a 0,01% (SDS, Sigma-Aldrich 11767289001) foi perfundida em água destilada também a 0,5ml/min por 24 horas. Posteriormente, a solução foi alterada para SDS 0,1% por dois dias, para 0,25% por um dia, para 0,5% por 1 dia e para 1,0% por um dia. O corioalantoide descelularizado foi então perfundido com Triton X-100 a 1% (#0694-1L, Amresco-Solon, EUA) por três horas. Por fim, foi lavado com PBS por 24 horas, perfazendo um total de 10 dias.

Após a descelularização, todo o sistema vascular da superfície alantocoriônica foi isolado do cotilédone e da membrana. Em seguida, os vasos foram preservados em paraformaldeído (PFA) a 4% para validação da descelularização ou congelados rapidamente para ensaio de citocompatibilidade e produção de hidrogel.

Validação da descelularização

Para validação da descelularização por análise histológica, as amostras preservadas em PFA foram rotineiramente desidratadas, diafanizadas e embebidas em parafina. Em seguida, foram seccionadas em micrótomo manual (Leica RM2125 RT) em fatias de 5 µm de espessura e transferidas para lâminas histológicas. Para verificar a ausência de núcleos celulares visíveis, as lâminas foram coradas em hematoxilina e eosina (HE) ou 4’,6’-diamino-2-fenil-indol (DAPI) e observadas em microscópio Nikon Eclipse 80l sob luz ou epifluorescência, respectivamente.

Além disso, a validação da descelularização foi realizada pela quantificação do ácido desoxirribonucleico genômico remanescente (gDNA) que foi extraído por precipitação de sal, adaptado de Olerup e Zetterquist,12 conforme descrito por Barreto et al.13

Ensaio de recelularização

Primeiramente, fragmentos de vasos descelularizados de 4 cm foram esterilizados por lavagem com suplemento de PBS com 2% de antibióticos (penicilina e estreptomicina), seguido de banho de álcool 70% e luz ultravioleta (UV).

Para a recelularização, 2,5 x 104 células SV ou 2,5 x 104 células SV-VEGF foram semeadas acima de cada fragmento de vaso descelularizado durante três ou sete dias, quando a cultura foi interrompida e os fragmentos foram fixados para análise de adesão celular. A cultura foi realizada com meio alfa mínimo essencial (α-MEM) (LGC Biotechnology), suplementado com 10% de soro fetal bovino e 1% de estreptomicina/penicilina, sob temperatura de 37 °C e 5% de CO2.

Validação da recelularização

Para verificar a adesão celular, alguns fragmentos de vasos recelularizados foram corados com DAPI e observados sob microscópio confocal a laser (Olympus Fluo View 1000 - FV1000). Os demais fragmentos foram fixados em Karnovsky (4% PFA e 2,5% glutaraldeído em tampão cacodilato de sódio 0,1 M pH 7,2) e posteriormente fixados em tetróxido de ósmio a 1% (SEM R 148- HATFIELD, EUA) por 90 minutos. Eles foram desidratados em uma série crescente de etanol sob agitação, depois passaram por um processo de secagem automatizado (MSCPD 300, Leica) e foram metalizados com ouro (#K550, Emitech-Ashford, Reino Unido). Também foi realizada imuno-histoquímica, consequentemente,13 para verificar a elastina na parede do vaso e VEGF da linha celular SV-VEGF.

Resultados

Após a descelularização, não foram observados núcleos visíveis nos fragmentos dos vasos nem pela coloração por hematoxilina e eosina (HE) nem pela coloração por DAPI (Figura Central – D2). Além disso, foi quantificado menos de 50 ng de gDNA por mg de vaso descelularizado (Figura 1). Com relação à conservação do arranjo vascular dos vasos da placenta bovina, observou-se, mesmo em vasos de até 5 mm de diâmetro (Figura 1-F), pela microscopia eletrônica de varredura, que os vasos descelularizados apresentavam manutenção estrutural e lúmen poroso (Figura Central – A4).

Figura Central
: Scaffolds Vasculares Descelularizados Provenientes de Vasos Sanguíneos de Placenta Bovina

Figura 1
– Descelularização dos vasos placentários bovinos: A: bar = 10 cm, placenta dissecada e artéria e veia umbilical canuladas. B: bar = 10 cm, início do processo de descelularização. C-E: bar = 10 cm, avanço da descelularização. F: bar = 10 cm, conclusão da descelularização, com manutenção da estrutura. G: ácido desoxirribonucleico genômico (gDNA) nos scaffolds vasculares da superfície corioalantoide da placenta bovina descelularizada.

Após a recelularização, mesmo no terceiro dia de cultura, foi possível observar células na superfície e no lúmen do vaso descelularizado; entretanto, visualmente, o número de células aumentou no sétimo dia. Além disso, as células SV-VEGF foram mais numerosas do que as células SV, tanto no terceiro quanto no sétimo dia. Essas células foram observadas pelas colorações HE e DAPI (Figura Central – D1 e F2).

O padrão de distribuição da elastina foi semelhante nos vasos placentários nativos, descelularizados e recelularizados (Figura Central – A3, B3 e D3).

Discussão

A placenta bovina é um órgão que, após a descelularização, pode ser utilizado como fonte de biomaterial, principalmente scaffolds vasculares. Mesmo após o processo de descelularização, tanto os cotilédones13 quanto a membrana corioalantoide14 mantiveram sua estrutura e composição da matriz extracelular preservadas. Aqui produzimos vasos descelularizados com estrutura e manutenção da elastina, mesmo em vasos de pequeno diâmetro. Além disso, esses vasos descelularizados apresentavam citocompatibilidade com células precursoras endoteliais (células SV e SV-VEGF) e os resultados morfológicos e comportamentais dessas linhagens celulares já haviam sido descritos e permanecem de acordo com os apresentados pela recelularização em outros biomateriais, conforme demonstrado por Fratini et al.15

Ademais, outra alternativa para o uso desse vaso descelularizado é sua digestão para produzir biogéis ricos em colágeno, que podem ser usados para produzir vasos de bioengenharia com diâmetros e tamanhos diferentes.6,16,17

Conclusão

Os vasos da placenta bovina podem produzir biomateriais descelularizados viáveis e citocompatíveis que podem ser uma fonte de biomateriais vasculares estruturalmente naturais, bem como perspectivas futuras para vasos de bioengenharia.

Agradecimentos

Todas as imagens de microscópio tiveram o apoio do Centro Avançado em Diagnóstico por Imagem (CADI-FMVZ-USP).

Referências

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  • Vinculação acadêmica
    Este artigo é parte de tese de doutorado de Tarley Santos Oliveira pela Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo.
  • Fontes de financiamento: O presente estudo foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (bolsa FAPESP nº 2014/50844-3) e parcialmente financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    23 Nov 2022
  • Revisado
    10 Fev 2023
  • Aceito
    05 Abr 2023
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