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Hipertrofia Ventricular Esquerda: Um Fenótipo, Duas Hipóteses, Três Lições

Palavras-chave
Hipertrofia Ventricular Esquerda; Insuficiência Cardíaca; Cardiomiopatia Hipertrófica; Amiloidose; Neuropatias Amiloides Familiares/diagnóstico por imagem

Histórico médico

Uma mulher de 58 anos com polineuropatia amiloidótica familiar causada pela mutação Val30Met (p.Val50Met) no gene da transtirretina (TTR) começou a apresentar sintomas neuropáticos aos 37 anos e uma biópsia da glândula salivar confirmou a deposição de amiloide TTR. Foi submetida a transplante hepático sete anos após o início dos sintomas e fazia uso de imunossupressores, com alterações neurológicas estáveis desde então. Ela também apresentava insuficiência renal crônica (estágio 3b) e um marcapasso implantado devido a doença do nó sinusal.

História da apresentação

A paciente foi encaminhada ao Ambulatório de Cardiologia 14 anos após o transplante hepático, por apresentar dispneia progressiva e edema nos dois pés. Ao exame físico, apresentava sinais de congestão periférica e pulmonar.

Os resultados do ECG e a interrogação do marcapasso revelaram fibrilação atrial e estimulação ventricular com frequência cardíaca controlada.

O ecocardiograma transtorácico revelou hipertrofia ventricular esquerda (HVE) importante, função sistólica preservada e disfunção diastólica - Figura 1.

Figura 1
Achados da ecocardiografia transtorácica. Os painéis A (projeção paraesternal de eixo longo) e B (apical de 4 câmaras) mostram aumento da espessura da parede (máximo de 15 mm no septo interventricular basal) e átrio esquerdo levemente dilatado (volume indexado pela superfície corporal de 40 mL / m2). O painel C mostra uma razão E/A aumentada de 3,4. O painel D mostra uma velocidade de e' lateral de 9 cm/s e o painel E uma e' septal de 5 cm/s, dando uma média E/e' de 15. No painel F, a velocidade de regurgitação tricúspide é estimada em 2,9 m/s com Cw Doppler. Portanto, a paciente preenchia os critérios para disfunção diastólica.

Iniciou anticoagulação oral e diuréticos, com melhora clínica.

Diagnóstico diferencial

Na presença de insuficiência cardíaca com HVE, devemos primeiro considerar as condições de carga, como hipertensão ou doença valvar, que não foram observadas nesta paciente.

A cardiomiopatia hipertrófica (CMH) sarcomérica era um diagnóstico possível, que pode se apresentar com diferentes padrões de HVE, sendo a causa genética mais comum de HVE. A doença de Fabry poderia ser outra possibilidade, embora mais rara.

Contudo, nesta paciente com uma mutação conhecida, o diagnóstico mais provável era Cardiomiopatia Amiloidótica por Transtirretina (CM-ATTR). Pacientes sem cardiomiopatia significativa no momento do transplante de fígado, particularmente se sua mutação não era Val30Met, podem progredir depois, devido à deposição aumentada de proteína do tipo selvagem.11 Stangou AJ, Hawkins PN, Heaton ND, Rela M, Monaghan M, Nihoyannopoulos P et al. Progressive cardiac amyloidosis following liver transplantation for familial amyloid polyneuropathy: implications for amyloid fibrillogenesis. Transplantation. 1998; 66(2): 229-33. doi: 10.1097/00007890-199807270-00016.
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Investigações

Surpreendentemente, a cintilografia com Tecnécio-99m (Tc-99m) com ácido 3,3-difosfono-1,2-propanodicarboxílico (DPD) foi negativa (escore zero de Perugini) - Figura 2.

Figura 2
Imagens de cintilografia com Tecnécio-99m (Tc-99m) com DPD (99mTc-DPD). As imagens à esquerda foram obtidas 10 minutos após a administração do 99mTc-DPD e as imagens à direita 2 horas depois. O escore de Perugini foi zero, o que significa ausência de captação cardíaca e captação óssea normal.

A amiloidose AL foi excluída após análise de imunofixação (urina de 24h e soro) e cadeias leves livres no soro.

A ressonância magnética cardiovascular (RMC) não foi realizada, uma vez que os eletrodos e gerador do marcapasso não eram condicionais para a RMC e a paciente era claustrofóbica. Foi solicitada biópsia endomiocárdica, que foi negativa para amiloide e não mostrou alterações significativas. Nesse ponto, outros diagnósticos foram reconsiderados para HVE.

Um estudo genético com um painel de CMH (incluindo doença de Fabry) foi solicitado e uma variante provavelmente patogênica em heterozigose foi encontrada no gene MYH7 (p.Arg783Leu). Isso nos fez questionar se o fenótipo poderia ser atribuído à CMH.

No entanto, a paciente necessitava de altas doses de diuréticos (pelo menos 120 mg de furosemida por dia para permanecer euvolêmica), embora não houvesse obstrução da via de saída do ventrículo esquerdo e era dependente de marcapasso. Revisando o ecocardiograma (Figura 1), ela apresentava um padrão de fluxo transmitral restritivo, baixas velocidades da onda S' no Doppler tecidual e ligeiro derrame pericárdico. Todos esses achados não são típicos de CMH.

Foi solicitada revisão da biópsia endomiocárdica por um patologista mais experiente, a qual na verdade mostrou infiltração amiloide grave (Figura 3).

Figura 3
Biópsia endomiocárdica, mostrando infiltração amiloide no interstício miocárdico e particularmente no endocárdio. Coloração com Vermelho Congo (A) e coloração com Vermelho Congo sob luz polarizada (B); amplificação 200x.

Discussão

Faltam critérios universalmente aceitos para o diagnóstico de cardiomiopatia amiloide, especificamente para CM-ATTR, e o algoritmo proposto por Gillmore et al.22 Gillmore JD, Maurer MS, Falk RH, Merlini G, Damy T, Dispenzieri A et al. Nonbiopsy Diagnosis of Cardiac Transthyretin Amyloidosis. Circulation. 2016; 133(24): 2404-12. doi:10.1161/CIRulationAHA.116.021612.
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ajuda a determinar o tipo de amiloidose, mas parte de achados “sugestivos de amiloidose cardíaca”, que são bastante amplos. Uma recente declaração de posição europeia propõe um algoritmo mais claro para a suspeita e diagnóstico de amiloidose cardíaca.33 Garcia-Pavia P, Rapezzi C, Adler Y, Arad M, Basso C, Brucato A et al. Diagnosis and treatment of cardiac amyloidosis: a position statement of the ESC Working Group on Myocardial and Pericardial Diseases. Eur Heart J. 2021;42(16):1554-68. doi:10.1093/eurheartj/ehab072
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Geralmente, o diagnóstico requer aumento da espessura da parede ventricular (usualmente >12 mm), combinado com os resultados de exames hematológicos, cintilografia óssea e, às vezes, biópsia.

A cintilografia com 99mTc-DPD mostrou excelente sensibilidade e especificidade para detectar CM-ATTR, muitas vezes dispensando a confirmação histológica,22 Gillmore JD, Maurer MS, Falk RH, Merlini G, Damy T, Dispenzieri A et al. Nonbiopsy Diagnosis of Cardiac Transthyretin Amyloidosis. Circulation. 2016; 133(24): 2404-12. doi:10.1161/CIRulationAHA.116.021612.
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particularmente quando um escore de Perugini de 2 ou 3 (captação cardíaca moderada ou intensa) é observado.44 Perugini E, Guidalotti PL, Salvi F, Cooke RM, Pettinato C, Riva L et al. Noninvasive etiologic diagnosis of cardiac amyloidosis using 99mTc-3,3-diphosphono-1,2-propanodicarboxylic acid scintigraphy. J Am Coll Cardiol. 2005; 46(6): 1076-84. doi: 10.1016/j.jacc.2005.05.073.
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,55 Dorbala S, Ando Y, Bokhari S, Dispenzieri A, Falk RH, Ferrari VA, et al. ASNC/ AHA/ ASE/ EANM/ HFSA/ ISA/ SCMR/ SNMMI Expert Consensus Recommendations for Multimodality Imaging in Cardiac Amyloidosis. J Card Fail .2019; 25(11): e1-39. doi:10.1016/j.cardfail.2019.08.001.
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No entanto, mais recentemente, achados falso-negativos em imagens de radionuclídeos foram encontrados em pacientes com a mutação TTR Val30Met e início precoce de sintomas neurológicos.66 Coutinho MCA, Cortez-Dias N, Cantinho G, Gonçalves S, Menezes MN, Guimarães T et al. The sensitivity of DPD scintigraphy to detect transthyretin cardiac amyloidosis in V30M mutation depends on the phenotypic expression of the disease. Amyloid. 2020; 27(3):174-83. doi:10.1080/13506129.2020.1744553.
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A causa parece estar relacionada ao fato de que esses pacientes apresentam exclusivamente fibrilas do tipo B (comprimento total), com baixa avidez por 99mTc-DPD, ao contrário de pacientes com início tardio ou outras mutações, que também têm fibrilas do tipo A (truncadas).77 Pilebro B, Suhr OB, Näslund U, Westermark P, Lindqvist P, Sundström T. (99m)Tc-DPD uptake reflects amyloid fibril composition in hereditary transthyretin amyloidosis. Ups J Med Sci 2016; 121(1):17-24. doi: 10.3109/03009734.2015.1122687.
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Nos primeiros casos, uma investigação adicional, incluindo biópsia endomiocárdica, pode ser necessária.

Curiosamente, nesta paciente, a biópsia endomiocárdica foi inicialmente negativa, levando-nos a explorar outros diagnósticos, a saber, CMH (como as biópsias eram muito pequenas e provenientes do ventrículo direito, a hipertrofia dos cardiomiócitos pode passar despercebida). Entretanto, devemos reconhecer que um patologista com experiência no diagnóstico de amiloidose é crucial.

Nosso grupo e vários outros descreveram o desenvolvimento de CM-ATTR anos após o transplante de fígado, não apenas em pacientes com início tardio ou mutações não-Val30Met, como relatado inicialmente, mas também em pacientes com Val30Met de início precoce. Esse fenômeno foi atribuído a mecanismos de semeadura: pequenos depósitos de fibrilas amiloides com um precursor de TTR mutado podem promover o acúmulo tardio de fibrilas de tipo selvagem. No entanto, ainda não entendemos por que esses pacientes não têm um escore positivo na cintilografia com 99mTc-DPD com mais frequência, similar a pacientes com doença do tipo selvagem. Por fim, o teste genético tem sido cada vez mais útil na investigação das cardiomiopatias, mas os resultados precisam ser discutidos com cautela, pois podem ter implicações no diagnóstico e no rastreamento familiar. O conhecimento acumulado sobre cardiogênese vai esclarecer a classificação de algumas variantes. Quando uma variante patogênica ou provavelmente patogênica é encontrada, o rastreamento genético é geralmente oferecido aos membros da família.

Conclusão

Nosso diagnóstico final foi CM-ATTR, embora os primeiros exames parecessem ter afastado essa hipótese, destacando o fato de que as biópsias endomiocárdicas são altamente dependentes do patologista e a cintilografia com 99mTc-DPD pode apresentar resultados falso-negativos. Além disso, os resultados dos testes genéticos em CMH precisam ser interpretados no contexto clínico, uma vez que o achado de uma mutação, principalmente se ela não for claramente patogênica, não significa que a mesma seja a causadora do fenótipo.

Infelizmente, atualmente não há medicamentos aprovados para o tratamento da cardiomiopatia amiloide em pacientes transplantados; contudo, esperamos que isso mude em um futuro próximo.

O que já se sabe sobre esse assunto? O que este estudo adiciona?

Este caso fornece três lições importantes:

  • a identificação da causa da HVE é frequentemente negligenciada, mas buscar hipóteses diferentes e identificar a etiologia tem implicações clínicas para o paciente e sua família;

  • devemos estar cientes das armadilhas da identificação de amiloide em biópsias, particularmente a importância de um patologista experiente;

  • A cintilografia com 99mTc-DPD também tem limitações, principalmente em pacientes com mutação Val30Met de início precoce; combinar a história clínica com os resultados de diferentes exames é fundamental para o diagnóstico da amiloidose cardíaca.

  • Fontes de financiamento
    O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.
  • Vinculação acadêmica
    Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.
  • Aprovação ética e consentimento informado
    Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética do Centro Hospitalar do Porto sob o número de protocolo 2017.219 (189-DEFI/181-CES). Todos os procedimentos envolvidos nesse estudo estão de acordo com a Declaração de Helsinki de 1975, atualizada em 2013. O consentimento informado foi obtido de todos os participantes incluídos no estudo.

Referências

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    » https://doi.org/10.3109/03009734.2015.1122687

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    Nov 2021

Histórico

  • Recebido
    09 Fev 2021
  • Revisado
    19 Abr 2021
  • Aceito
    09 Jun 2021
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