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Infarto miocárdico inferior e choque associado a obstrução da via de saída do ventrículo esquerdo

RELATO DE CASO

Infarto miocárdico inferior e choque associado a obstrução da via de saída do ventrículo esquerdo

Bráulio Muzzi Ribeiro de Oliveira; Frank Nunes; Denise Ulhoa Dani; João Batista Gusmão; José Luiz Barros Pena

Hospital Felício Rocho, Belo Horizonte

Belo Horizonte, MG

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Dr. Bráulio Muzzi R. de Oliveira Rua Pernambuco, 360/701 Belo Horizonte - MG Cep 30130-150 E-mail: bmuzzi@cardiol.br

Relatamos o caso de um paciente admitido no setor de emergência do nosso serviço com infarto agudo do miocárdio em parede inferior, submetido a angioplastia primária, complicado com choque não responsivo a administração de catecolaminas e a balão de contrapulsação intra-aórtico. A utilização do ecocardiograma transesofágico foi crucial na demonstração da movimentação sistólica anterior da valva mitral obstruindo a via de saída do ventrículo esquerdo.

Obstrução dinâmica da via de saída do ventrículo esquerdo com movimentação sistólica anterior da valva mitral tem sido descrita associada a várias condições como hipertrofia concêntrica hipertensiva1, estimulação simpática excessiva2,3, tamponamento pericárdico4, testes de estresse com dobutamina5, pós-operatório de plastia de valva mitral6 e troca valvar aórtica7, além da cardiomiopatia hipertrófica obstrutiva. Alguns casos de obstrução dinâmica da via de saída do ventrículo esquerdo, complicando infarto do miocárdio anterior têm sido descritos8-12, mas até o momento nenhum de infarto do miocárdio em parede inferior associado a essa entidade. Os achados hemodinâmicos no infarto do miocárdio agravado por obstrução da via de saída do ventrículo esquerdo têm algumas implicações no tratamento, que não são comuns ao tratamento do infarto sem essa complicação. Na situação de deterioração hemodinâmica, o uso de balão de contrapulsação intra-aórtico pode ser deletério ao paciente com diagnóstico dessa obstrução e pode impedir a melhora da condição clínica13,14. O uso de vasodilatadores e algumas catecolaminas também podem piorar o estado de choque14. Neste artigo, relatamos o caso de um paciente com infarto do miocárdio inferior associado à obstrução da via de saída do ventrículo esquerdo agravado pelo uso de balão de contrapulsação intra-aórtico.

Relato do caso

Paciente do sexo masculino, 87 anos de idade, admitido no hospital após episódio de síncope, sem queixa de dor torácica. Ao exame físico, a pressão arterial sistêmica era de 70/40 mmHg e a freqüência cardíaca de 108 bpm. A ausculta cardíaca revelava sopro sistólico regurgitativo de intensidade III/VI, melhor audível no ápice. O restante do exame físico era normal. O eletrocardiograma mostrava um supradesnivelamento do segmento ST de 4mm em derivações inferiores. Implantado um balão de contrapulsação intra-aórtico, foi encaminhado para estudo hemodinâmico imediato. A coronariografia evidenciava artéria coronária direita dominante, oclusão no terço médio da artéria descendente posterior (fig. 1-A) e obstrução moderada no terço médio da artéria descendente anterior. A ventriculografia esquerda mostrava acinesia da parede inferior e septal e uma importante regurgitação mitral (fig. 2-A e B). Realizada angioplastia coronariana transluminal percutânea no terço médio da artéria descendente posterior, com sucesso (fig. 1-B), sendo administrado abxicimab. O paciente foi encaminhado à Unidade Coronariana e, devido à presença de choque refratário, foram iniciadas dobutamina e noradrenalina, e instalada ventilação mecânica. Os valores de creatinafosfoquinase (CPK) e sua fração músculo-cerebral (MB) atingiram picos de 165 e 30 U/L, respectivamente. Devido a ocorrência de regurgitação mitral e choque irresponsivo ao tratamento instituído, foi requisitado ecocardiograma a fim de se excluir possíveis complicações mecânicas do infarto. Realizado ecocardiograma transesofágico após a constatação de uma janela transtorácica de qualidade ruim, que demonstrou acinesia do septo inferior e parede inferior, sem nenhuma outra anormalidade de contração. A fração de ejeção estimada do ventrículo esquerdo era de 45% e não foi evidenciada hipercinesia compensatória de outros segmentos. Observou-se movimentação sistólica anterior da valva mitral (fig. 3) associada a regurgitação moderada. O Doppler contínuo evidenciou um gradiente de pico na via de saída do ventrículo esquerdo de 186 mmHg (fig. 4-A).







O paciente mantinha-se em uso de altas doses de dobutamina e noradrenalina e a freqüência do balão de contrapulsação intra-aórtico era 1:1. Atribuindo-se o alto gradiente da via de saída do ventrículo esquerdo à presença da movimentação sistólica anterior, a infusão de dobutamina foi reduzida para 5 mcg/Kg/min e a administração da noradrenalina interrompida. A freqüência do balão de contrapulsação intra-aórtico foi diminuída, e após ser desligado, os gradientes da via de saída do ventrículo esquerdo foram medidos novamente. Nesse momento, as imagens bidimensionais da movimentação sistólica anterior da valva mitral observadas nos cortes longitudinal e frontal ao ecocardiograma transesofágico permaneceram as mesmas, porém o gradiente de pico medido na via de saída do ventrículo esquerdo diminuiu para 132 mmHg (fig. 4-B). A despeito da interrupção daquelas medidas terapêuticas, a pressão arterial sistêmica média permaneceu a mesma - 80 mmHg, assim como a pressão capilar pulmonar medida com o cateter de Swan-Ganz. Ocorreram outras instabilidades hemodinâmicas associadas à deterioração da função de bomba cardíaca, que exigiram nova elevação da dose da dobutamina e reinício do balão de contrapulsação intra-aórtico.

O paciente apresentou ainda, como complicações, infecção pulmonar que exigiu terapia antibiótica e 29 dias de ventilação mecânica, insuficiência renal e coma vigil. Outro ecocardiograma transesofágico foi realizado 19 dias após o primeiro, sendo que movimentação sistólica anterior da valva mitral e gradiente da via de saída do ventrículo esquerdo não foram mais detectados (fig. 5). A função ventricular esquerda estava normal, fração de ejeção estimada em 60%, e não havia mais nenhuma alteração de contratilidade de paredes. O paciente recebeu alta após 47 dias de hospitalização.


Discussão

Até onde sabemos, este é o primeiro caso relatado de infarto inferior associado a movimentação sistólica anterior da valva mitral e obstrução da via de saída do ventrículo esquerdo. Os casos descritos em associação com infarto do miocárdio anterior ou apical foram atribuídos à resposta hiperdinâmica das porções basais do ventrículo esquerdo, levando à aceleração do fluxo sangüíneo através da via de saída do ventrículo esquerdo, criando-se um efeito Venturi e sucção anterior da valva mitral com sua obstrução. Para ocorrência desse fenômeno, os segmentos basais das paredes do ventrículo esquerdo devem apresentar perfusão miocárdica normal14. Neste caso relatado, o infarto não era localizado na região ântero-apical, e não se observou hipercontratilidade dos segmentos basais do ventrículo esquerdo.

O movimento sistólico anterior é uma condição do ventrículo esquerdo resultante de um balanço alterado de forças que atuam sobre o aparelho valvar mitral. O mecanismo que o causa é ainda matéria de discussão. Há duas teorias que explicam a movimentação sistólica anterior da valva mitral: a hipótese de Venturi e a teoria da alteração geométrica de músculo papilar-valva mitral. Esta última sugere que a movimentação sistólica anterior da valva mitral resulta da distribuição anormal de forças nas cordoalhas, que redundariam na movimentação anterior anormal do aparelho valvar mitral15. Foram evidenciados em pacientes com cardiomiopatia hipertrófica obstrutiva o deslocamento anterior dos músculos papilares, a movimentação anterior dos folhetos mitrais e de seu ponto de coaptação, com estiramento da porção residual e alongamento dos folhetos. O redirecionamento anterior do ponto de tensão dos músculos papilares, causando afrouxamento dos folhetos (relacionado à restrição posterior diminuída), e um comprimento aumentado do folheto residual além do ponto de coaptação, podem levar à interposição dos folhetos na direção do fluxo da via de saída do ventrículo esquerdo, levando-os a serem deslocados anterior e superiormente. Essa combinação de forças, determinando o relaxamento relativo e a redundância da porção média dos folhetos afetados, torna-os predispostos a serem puxados anteriormente pelas forças do fenômeno de Venturi, ou empurrados anteriormente pelas forças de tensão do fluxo16.

O rearranjo na geometria do ventrículo esquerdo do nosso paciente pode ter alterado a relação de espaço e forças entre os músculos papilares, os folhetos da valva mitral, seu ponto de coaptação e a via de saída do ventrículo esquerdo. Juntas, estas alterações poderiam determinar a precipitação e surgimento da movimentação sistólica anterior da valva mitral. Assistência com balão de contrapulsação intra-aórtico, causando uma diminuição da pós-carga, o uso de catecolaminas e uma possível hipovolemia, diminuindo a cavidade ventricular, podem ter agravado o estado de obstrução da via de saída do ventrículo esquerdo e a condição hemodinâmica do paciente. A suspensão temporária dessas medidas terapêuticas causaram uma diminuição no gradiente da via de saída do ventrículo esquerdo. A recuperação do paciente com a resolução das anormalidades de contração regionais, e desmame do balão de contrapulsação intra-aórtico e das aminas vasoativas, coincidiram com o desaparecimento completo da movimentação sistólica anterior da valva mitral e da obstrução da via de saída do ventrículo esquerdo.

Como primeiro relato de infarto não-anterior associado a movimentação sistólica anterior da valva mitral e obstrução da via de saída do ventrículo esquerdo, este caso reforça a importância de se ampliar nosso leque diagnóstico quando são tratados pacientes que apresentam quadro de infarto, choque refratário e regurgitação mitral significativa, sendo que o ecocardiograma transesofágico desempenha importante papel diagnóstico nesta condição clínica.

Referências

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Recebido para publicação em 16/2/03

Aceito em 5/8/03

  • Endereço para correspondência

    Dr. Bráulio Muzzi R. de Oliveira
    Rua Pernambuco, 360/701
    Belo Horizonte - MG Cep 30130-150
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Ago 2004
    • Data do Fascículo
      Jul 2004
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