Acessibilidade / Reportar erro

Genética das Dislipidemias

Palavras-chave
Dislipidemias / genética; Hiperlipoproteinemia Tipo II; Dislipidemias / diagnóstico

As lipoproteínas consistem em um conjunto composto por proteínas e lipídeos, organizados de modo a facilitar o transporte dos lipídeos pelo plasma sanguíneo. Níveis elevados ou diminuídos dessas lipoproteínas podem estar relacionados a alterações genéticas entre 40 e 60% dos casos.11 Weiss LA, Pan L, Abney M, Ober C. The sex-specific genetic architecture of quantitative traits in humans. Nat Genet. 2006;38(2):218-22. Tal fato explica por que é frequente encontrar anormalidades lipídicas em vários membros de uma mesma família. Os níveis aumentados dessas biomoléculas orgânicas compostas são responsáveis por aproximadamente 50% do risco atribuível ao desenvolvimento de enfermidades ateroscleróticas cardiovasculares,22 Di Angelantonio E, Sarwar N, Perry P, Kaptoge S, Ray KK, Thompson A, et al. Emerging risk factors collaboration: major lipids, apolipoproteins, and risk of vascular disease. JAMA. 2009;302(18):1993-2000.,33 Asselbergs FW, Guo Y, van Iperen EP, Sivapalaratnam S, Tragante V, Chen YD, et al. Large-scale gene-centric meta-analysis across 32 studies identifies multiple lipid loci. Am J Hum Genet. 2012;2;91(5):823-38. processo do qual também participam outros fenótipos com componente hereditário, como diabetes, obesidade e síndrome metabólica.

Estudos populacionais de associação genética identificaram mais de cem genes que poderiam ter um impacto direto nos níveis lipídicos.33 Asselbergs FW, Guo Y, van Iperen EP, Sivapalaratnam S, Tragante V, Chen YD, et al. Large-scale gene-centric meta-analysis across 32 studies identifies multiple lipid loci. Am J Hum Genet. 2012;2;91(5):823-38. Esses genes afetam os níveis plasmáticos do colesterol total, da lipoproteína de baixa densidade-colesterol (LDL-c) e da lipoproteína de alta densidade-colesterol (HDL-c), assim como dos triglicerídeos, sendo capazes de constituir fenótipos complexos. No entanto, entre aqueles genes identificados nos estudos de associação, encontra-se um grupo previamente conhecido e bem caracterizado de genes responsáveis pelo desenvolvimento das dislipidemias monogênicas. Nesses casos, a variante em um gene único explica claramente o fenótipo.

É importante frisar que, mesmo de forma isolada, tais mutações determinam enfermidades consideradas raras e o impacto produzido pelas variantes desses genes tende a ser elevado, determinando valores extremos nos níveis lipídicos. Considerando que a doença aterosclerótica cardiovascular é um processo que inicia na infância e evolui ao longo da vida,44 Berenson GS, Srinivasan SR, Bao W, Newman WP 3rd, Tracy RE, Wattigney WA. Association between multiple cardiovascular risk factors and the early development of atherosclerosis. Bogalusa Heart Study. N Engl J Med. 1998;338(23):1650-6. a identificação precoce de fatores de risco é muito importante. Nesse sentido, o diagnóstico de fenótipos determinados por doenças monogênicas do metabolismo lipídico merece atenção especial, uma vez que, ao produzir fenótipos extremos, elas podem se associar ao desenvolvimento de aterosclerose precoce e de rápida progressão. De fato, estudos genéticos, mediante técnica de Sequenciamento de Nova Geração (NGS, sigla do inglês Next-Generation Sequencing) realizada em pacientes com diagnóstico de infarto agudo do miocárdio (IAM) precoce (aqueles que ocorrem antes dos 50 anos nos homens e dos 60 anos nas mulheres), determinaram que a presença de variantes genéticas raras no gene LDLR quadruplicava o risco desse evento em seus portadores. Por sua vez, variantes raras no gene APOA5, associado a níveis elevados de triglicerídeos, triplicavam o risco. Inclusive, cerca de 2% dos casos eram de portadores de uma mutação claramente patogênica em LDLR, sugerindo que esses pacientes teriam diagnóstico de hipercolesterolemia familiar.22 Di Angelantonio E, Sarwar N, Perry P, Kaptoge S, Ray KK, Thompson A, et al. Emerging risk factors collaboration: major lipids, apolipoproteins, and risk of vascular disease. JAMA. 2009;302(18):1993-2000. Em um sentido mais amplo, estima-se que cerca de 5% dos IAM em pacientes com menos de 60 anos podem ocorrer devido à hipercolesterolemia familiar, cifra que pode se elevar até 20% quando o evento coronário agudo incide em indivíduos com menos de 45 anos.55 Hopkins PN, Toth PP, Ballantyne CM, Rader DJ; National Lipid Association Expert Panel on Familial Hypercholesterolemia. Familial hypercholesterolemias: prevalence, genetics, diagnosis and screening recommendations from the National Lipid Association Expert Panel on Familial Hypercholesterolemia. J Clin Lipidol. 2011;5(3 Suppl):S9-17.

Digno de nota é que, mesmo tratando-se de patologias monogênicas, as mutações identificadas em muitos dos genes frequentemente responsáveis por essas enfermidades evidenciam importante variabilidade na expressão fenotípica e no risco associado, seja nos portadores de uma mesma família ou entre portadores de uma mesma mutação pertencentes a diferentes populações.66 Peters BJ, Pett H, Klungel OH, Stricker BH, Psaty BM, Glazer NL, et al. Genetic variability within the cholesterol lowering pathway and the effectiveness of statins in reducing the risk of MI. Atherosclerosis. 2011;217(2):458-64.

7 Choumerianou DM, Dedoussis GV. Familial hypercholesterolemia and response to statin therapy according to LDLR genetic background. Clin Chem Lab Med. 2005;43(8):793-801.

8 Nordestgaard BG, Chapman MJ, Humphries SE, Ginsberg HN, Masana L, Descamps OS, et al; European Atherosclerosis Society Consensus Panel. Familial hypercholesterolaemia is underdiagnosed and undertreated in the general population: guidance for clinicians to prevent coronary heart disease: consensus statement of the European Atherosclerosis Society. Eur Heart J. 2013;34(45):3478-3490.
-99 Kwiterovich PO Jr, Fredrickson DS, Levy RI. Familial hypercholesterolemia (one form of familial type II hyperlipoproteinemia). A study of its biochemical, genetic and clinical presentation in childhood. J Clin Invest. 1974;53(5):1237-49. Em certas ocasiões, esse fato pode dificultar ou retardar o diagnóstico em pacientes nos quais se utilizam somente critérios clínicos, já que, nessas circunstâncias, os níveis lipídicos podem se sobrepor aos observados na população geral.

A grande variabilidade na expressão clínica em portadores de uma determinada variante se deve ao efeito de outros fatores que atuariam como modificadores na expressão da mutação responsável, fato este que já foi demonstrado em diversas oportunidades. Por sinal, esse é o caso de variantes em genes como ApoB, PCSK9, LRP1 e Lp(a), assim como em portadores de mutações em LDLR com diagnóstico de hipercolesterolemia familiar, somente para citar alguns exemplos.66 Peters BJ, Pett H, Klungel OH, Stricker BH, Psaty BM, Glazer NL, et al. Genetic variability within the cholesterol lowering pathway and the effectiveness of statins in reducing the risk of MI. Atherosclerosis. 2011;217(2):458-64.

7 Choumerianou DM, Dedoussis GV. Familial hypercholesterolemia and response to statin therapy according to LDLR genetic background. Clin Chem Lab Med. 2005;43(8):793-801.

8 Nordestgaard BG, Chapman MJ, Humphries SE, Ginsberg HN, Masana L, Descamps OS, et al; European Atherosclerosis Society Consensus Panel. Familial hypercholesterolaemia is underdiagnosed and undertreated in the general population: guidance for clinicians to prevent coronary heart disease: consensus statement of the European Atherosclerosis Society. Eur Heart J. 2013;34(45):3478-3490.

9 Kwiterovich PO Jr, Fredrickson DS, Levy RI. Familial hypercholesterolemia (one form of familial type II hyperlipoproteinemia). A study of its biochemical, genetic and clinical presentation in childhood. J Clin Invest. 1974;53(5):1237-49.

10 Marks D, Thorogood M, Neil HA, Humphries SE. A review on the diagnosis, natural history, and treatment of familial hypercholesterolaemia. Atherosclerosis. 2003;168(1):1-14.
-1111 Genest J, Hegele RA, Bergeron J, Brophy J, Carpentier A, Couture P, et al. Canadian Cardiovascular Society position statement on familial hypercholesterolemia. Can J Cardiol. 2014;30(12):1471-81. A participação de variantes genéticas como modificadoras na expressão do fenótipo tem explicação no fato que os genes envolvidos podem se associar de forma independente, sendo capazes de promover incremento ou diminuição nos níveis da lipoproteína que afetam. Em outras palavras, as interações de seus efeitos atenuam ou aumentam os níveis lipídicos, assim como o risco associado nos portadores. Da mesma forma, determinadas variantes podem influir não somente na expressão fenotípica, senão também na resposta ao tratamento farmacológico, determinando que a intervenção seja ou não efetiva em seu objetivo de diminuição do risco associado.66 Peters BJ, Pett H, Klungel OH, Stricker BH, Psaty BM, Glazer NL, et al. Genetic variability within the cholesterol lowering pathway and the effectiveness of statins in reducing the risk of MI. Atherosclerosis. 2011;217(2):458-64.,77 Choumerianou DM, Dedoussis GV. Familial hypercholesterolemia and response to statin therapy according to LDLR genetic background. Clin Chem Lab Med. 2005;43(8):793-801.

Genes Relacionados com Alterações nos Níveis de LDL -C

Hipercolesterolemia familiar

Essa doença familiar constitui uma das patologias monogênicas mais prevalentes, sendo identificada em aproximadamente 1:500 indivíduos na população geral. Interessante é que, em algumas subpopulações europeias, estima-se que a frequência seja ainda maior, ficando na ordem de 1:250 indivíduos.88 Nordestgaard BG, Chapman MJ, Humphries SE, Ginsberg HN, Masana L, Descamps OS, et al; European Atherosclerosis Society Consensus Panel. Familial hypercholesterolaemia is underdiagnosed and undertreated in the general population: guidance for clinicians to prevent coronary heart disease: consensus statement of the European Atherosclerosis Society. Eur Heart J. 2013;34(45):3478-3490. No passado, a caracterização da hipercolesterolemia familiar era realizada utilizando-se critérios exclusivamente clínicos e de laboratório. No entanto, o conhecimento das limitações dessa estratégia, no que tange à baixa sensibilidade para o diagnóstico,99 Kwiterovich PO Jr, Fredrickson DS, Levy RI. Familial hypercholesterolemia (one form of familial type II hyperlipoproteinemia). A study of its biochemical, genetic and clinical presentation in childhood. J Clin Invest. 1974;53(5):1237-49.,1010 Marks D, Thorogood M, Neil HA, Humphries SE. A review on the diagnosis, natural history, and treatment of familial hypercholesterolaemia. Atherosclerosis. 2003;168(1):1-14. motivou modificações em dois dos três principais critérios diagnósticos dessa entidade nosológica. De acordo com os critérios estabelecidos pela Dutch Lipid Clinic Criteria (Tabela 1) e pelo Simon Broome Diagnostic Criteria, a identificação de mutações patogênicas, quando somadas a critérios clínicos adicionais, tem sido utilizada para considerar como definitivo o diagnóstico de hipercolesterolemia familiar. Por sinal, identificar mutações patogênicas em probandos constitui o primeiro passo para se iniciar a triagem genética na família desse indivíduo. Essa abordagem é de fundamental importância nos familiares de idade pediátrica e em adolescentes nos quais os critérios clínicos podem não estar bem definidos, embora a doença já possa ter começado a exercer seus efeitos à nível vascular. No que diz respeito ao diagnóstico e ao manejo dessa enfermidade, tal perspectiva tem sido apoiada por diretrizes redigidas por importantes sociedades médicas como a canadense,1111 Genest J, Hegele RA, Bergeron J, Brophy J, Carpentier A, Couture P, et al. Canadian Cardiovascular Society position statement on familial hypercholesterolemia. Can J Cardiol. 2014;30(12):1471-81. a britânica (National Institute for Health and Clinical Excellence − NICE),1212 National Institute for Health and Care Excellence (NICE). Familial hypercholesterolaemia: identification and management. [on line]. [Cited in 2015 Jun 10]. Available from: https://www.nice.org.uk/guidance/cg71
https://www.nice.org.uk/guidance/cg71...
a australiana/neozelandesa1313 Index of/up-content/uploads/2013/03. [on line]. [Cited in 2015 May 21]. Available from: http://www.csanz.edu.au/wp-content/uploads/2013/03/download_document.png
http://www.csanz.edu.au/wp-content/uploa...
e a espanhola,1414 Mata P, Alonso R, Ruiz A, Gonzalez-Juanatey JR, Badimón L, Díaz-Díaz JL, et al. [Diagnosis and treatment of familial hypercholesterolemia in Spain: consensus document]. Atención Primaria. 2015;47;(1):56-65. entre outras.

Tabela 1
Critérios da Dutch Lipid Clinic Criteria para o diagnóstico de hipercolesterolemia familiar (pontuação)

Os genes para os quais existe evidência demonstrada de associação com a hipercolesterolemia familiar são LDLR, ApoB, PCSK9 e LDLRAP1. A principal alteração lipoproteica ligada ao fenótipo é o incremento nos níveis da lipoproteína LDL. No entanto, algumas variantes nos genes ApoB e PCSK9 podem determinar a diminuição dessa lipoproteína. É de se destacar que o fenótipo determinado pelos três genes LDLR, ApoB e PCSK9 apresenta um padrão de transmissão autossômico dominante, enquanto o fenótipo determinado por mutações no gene LDLRAP1 se transmite exclusivamente de forma autossômica recessiva.

Sitosterolemia

Trata-se de um dos principais diagnósticos diferenciais em pacientes com suspeita de hipercolesterolemia familiar. É uma doença causada pela absorção anormal do colesterol e pelo acúmulo de esteróis, sobretudo daqueles de origem vegetal (daí seu nome). As características clínicas dessa patologia incluem presença de xantomas e aterosclerose coronária prematura, além de anemia hemolítica e/ou hepatopatia. Os genes associados a essa enfermidade são ABCG5 e o ABCG8. Em relação a outros genes que alteram o metabolismo dessa lipoproteína, inclui-se um grupo associado à diminuição de seus níveis (hipobetalipoproteinemias familiares), com possível efeito protetor para a doença cardiovascular em portadores.1515 Sankatsing RR, Fouchier SW, de Haan S, Hutten BA, de Groot E, Kastelein JJ, et al. Hepatic and cardiovascular consequences of familial hypobetalipoproteinemia. Arterioscler Thromb Vasc Biol. 2005;25(9):1979-84. Os genes associados a esses fenótipos são ANGPTL3, MTTP e MYLIP.

Genes Associados a Alterações no Metabolismo dos Triglicerídeos

O papel da hipertrigliceridemia de etiologia genética como fator de risco para enfermidade aterosclerótica cardiovascular já está bem estabelecido. Em estudo recente, que incluiu uma extensa coorte de pacientes com IAM precoce (antes dos 50 anos), nos quais se realizou sequenciação mediante NGS, os portadores de variantes no gene APOA5 apresentavam aumento no risco de até 3,3 vezes em relação aos não portadores.1616 Do R, Stitziel NO, Won HH, Jørgensen AB, Duga S, Angelica Merlini P, et al. Exome sequencing identifies rare LDLR and APOA5 alleles conferring risk for myocardial infarction. Nature. 2015;518(7537):102-6. Associação parecida já havia sido estabelecida previamente em outra grande coorte (Copenhagen Cohort), na qual o gene LPL também foi investigado. Nesse estudo observacional, foi determinado que, para cada aumento de 1 mmol/L (39 mg/dL) nos níveis de colesterol rico em triglicerídeos (remanescente), o qual é mediado por causa genética, o incremento de risco para doença arterial coronária (DAC) foi 2,8 maior do que nos controles.1717 Varbo A, Benn M, Tybjaerg-Hansen A, Jørgensen AB, Frikke-Schmidt R, Nordestgaard BG. Remnant cholesterol as a causal risk factor for ischemic heart disease. J Am Coll Cardiol. 2013;61(4):427-36. Os principais genes associados ao aumento nos níveis de triglicerídeos (como fenótipo principal) são APOA5, APOC2, APOE, GPD1, GPIHBP1, HNF1A, LMF1, LPL e SLC25A40. É digno de nota que um grupo de variantes raras no gene APOC3 se associou a uma redução nos níveis de triglicerídeos, promovendo diminuição de até 40% no risco de DAC.1818 Jørgensen AB, Frikke-Schmidt R, Nordestgaard BG, Tybjærg-Hansen A. Loss-of-function mutations in APOC3 and risk of ischemic vascular disease. N Engl J Med. 2014;371(1):32-41.

Genes Relacionados com os Níveis de HDL-C

Estudos epidemiológicos da década de 1990 estabeleceram relação inversa entre os níveis de HDL-c e o risco de DAC.1919 Assmann G, Schulte H, von Eckardstein A, Huang Y. High-density lipoprotein cholesterol as a predictor of coronary heart disease risk. The PROCAM experience and pathophysiological implications for reverse cholesterol transport. Atherosclerosis. 1996;124 Suppl:S11-20. Na atualidade, o que se sabe é que essa associação parece estar mais relacionada com a qualidade das partículas de HDL-c, por anomalias estruturais secundárias a mutações, do que pela quantidade absoluta dessa lipoproteína2020 Sirtori CR, Calabresi L, Franceschini G, Baldassarre D, Amato M, Johansson J, et al. Cardiovascular status of carriers of the apolipoprotein A-I(Milano) mutant: the Limone sul Garda study. Circulation. 2001;103(15):1949-54.,2121 Rader DJ. Lecithin: cholesterol acyltransferase and atherosclerosis: another high-density lipoprotein story that doesn't quite follow the script. Circulation. 2009;120(7):549-52. − fato este que pode explicar o recente questionamento sobre o significado dos níveis do HDL-c sobre o desenvolvimento da DAC.2222 Voight BF, Peloso GM, Orho-Melander M, Frikke-Schmidt R, Barbalic M, Jensen MK, et al. Plasma HDL cholesterol and risk of myocardial infarction: a mendelian randomisation study. Lancet. 2012;380(9841):572-80. Erratum in: Lancet. 2012;380(9841):564. O exemplo paradigmático da relação estrutura/função é aquele representado por uma mutação que afeta a apolipoproteína A1 (ApoA1), um dos principais constituintes da lipoproteína HDL, a qual se associa a um efeito contrário ao esperado. Por exemplo, a mutação (Arg173Cys) determina a produção de dímeros de ApoA1, determinando que os níveis de HDL-c sejam extremadamente baixos. Porém, essas partículas são muito eficientes no transporte reverso do colesterol, o que faz com que os portadores tenham uma incidência muito baixa de cardiopatia isquêmica, apesar de um HDL-c medido de forma quantitativa extremadamente baixo.

De todos os modos, os baixos níveis de HDL-c de etiologia monogênica determinam um grupo de patologias que apresentam elevada prevalência de doenças cardiovascular aterosclerótica precoce. Os genes associados ao HDL-c baixo de etiologia monogênica são APOA1, ABCA1, LCAT, SAR1B e ABCG1.

APOA1 é o gene responsável pelo fenótipo da hipoalfalipoproteinemia familiar, entidade de etiologia autossômica dominante. Já o gene ABCA1 se associa com a doença de Tangier, a qual é autossômica recessiva. Da mesma forma, os genes LCAT, que se associam à doença do olho de peixe, e o gene SAR1B, que tem relação com enfermidade por retenção de quilomicras, também cursam com diminuição nos níveis de HDL-c.

Por outro lado, existe um grupo de genes associados ao incremento nos níveis de HDL-c. Apesar disso, não há evidência de efeito protetor para aterosclerose. Uma explicação para esse achado poderia estar ligada ao fato de que essas variantes genéticas alteram a distribuição das subclasses das partículas de HDL-c, incrementando aquelas menos protetoras.2323 Calabresi L, Gomaraschi M, Simonelli S, Bernini F, Franceschini G. HDL and atherosclerosis: Insights from inherited HDL disorders. Biochim Biophys Acta. 2015;1851(1):13-8. Essa informação pode ser relevante para determinar se o aumento dessa lipoproteína pode ser considerado para o cálculo do risco cardiovascular associado à relação entre as lipoproteínas. Os genes associados ao incremento do HDL-c de etiologia genética são CETP, LIPC, PLTP e SCARB1.

Dislipidemias de Causa Secundária

Lipodistrofias

As lipodistrofias constituem um grupo heterogêneo de enfermidades raras, cuja característica comum é a perda seletiva do tecido adiposo. No entanto, elas predispõem ao desenvolvimento de complicações metabólicas semelhantes àquelas observadas em indivíduos com obesidade. Entre elas, podem ser incluídas alterações no metabolismo lipídico (aumento de triglicerídeos e redução no HDL-c), como também a resistência à insulina e o diabetes melito, entidades associadas ao incremento no risco de aterosclerose prematura.2424 Simha V, Garg A. Lipodystrophy: lessons in lipid and energy metabolism. Curr Opin Lipidol. 2006;17(2):162-9.,2525 Hegele RA. Premature atherosclerosis associated with monogenic insulin resistance. Circulation. 2001;103(18):2225-9. Os principais genes associados a essas enfermidades são LPL, AGPAT2, BSCL2, CAV1, CIDEC, LMNA, PLIN1, PPARG, PTRF e ZMPSTE24.

Outros Genes de Interesse

Miopatia induzida por estatinas

Dor muscular secundária ao tratamento com as estatinas representam o efeito adverso mais frequentemente associado ao uso desses fármacos. Estima-se que afeta de 1 a 10% dos pacientes tratados,2626 Thompson PD, Clarkson P, Karas RH. Statin-associated myopathy. JAMA. 2003;289(13):1681-90. sendo uma complicação subdiagnosticada.2727 Law M, Rudnicka AR. Statin safety: a systematic review. Am J Cardiol. 2006;97(8A):52C-60C. A severidade e o risco para o desenvolvimento de complicações maiores como a rabdomiólise apresentam relação com o uso combinado de estatinas, dose e fatores como sexo e idade, assim como com o uso concomitante de outros fármacos que alteram a biodisponibilidade desses compostos. Os determinantes genéticos de risco associado estão constituídos por genes que codificam enzimas relacionadas com o metabolismo desses fármacos, assim como com transportadores e com genes associados à disfunção mitocondrial. Todos esses fatores somam efeitos àqueles gerados pelas estatinas per se, como etiologia de dano muscular.2828 Feng Q, Wilke RA, Baye TM. Individualized risk for statin-induced myopathy: current knowledge, emerging challenges and potential solutions. Pharmacogenomics. 2012;13(5):579-94. Os genes com maior nível de evidência de associação com essa complicação são AMPD1, COQ2, CPT2, CYP2D6, PPARA, PYGM e SLC22A8 e SLCO1B1.

Conclusão

As dislipidemias primárias ou sem causa aparente podem ser classificadas genotipicamente ou fenotipicamente por meio de análises bioquímicas. Na classificação genotípica, as dislipidemias se dividem em monogênicas (causadas por mutações em um só gene) e poligênicas (causadas por associações de múltiplas mutações que, isoladamente, não seriam de grande repercussão).2929 Sposito AC, Caramelli B, Fonseca FA, Bertolami MC, Afiune Neto A, Souza AD, et al. [IV Brazilian Guideline for dyslipidemia and atherosclerosis prevention: Department of Atherosclerosis of Brazilian Society of Cardiology]. Arq Bras Cardiol. 2007;88 Suppl 1:2-19.

O conhecimento da base molecular das dislipidemias permite um diagnóstico correto das mesmas. Nesse cenário, a instituição de uma terapêutica farmacológica ótima pode ser melhor fundamentada. Além disso, o diagnóstico genético em um caso índice pode desencadear um processo de investigação na família, o que possibilita identificação precoce, orientação terapêutica e consequente redução do risco cardiovascular nesses indivíduos.

  • Fontes de Financiamento
    O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.
  • Vinculação Acadêmica
    Este artigo é parte de tese de pós-doutorado no exterior (Espanha) de Ricardo Stein pelo Programa de Pós-graduação em Cardiologia e Ciências Cardiovasculares da UFRGS.

References

  • 1
    Weiss LA, Pan L, Abney M, Ober C. The sex-specific genetic architecture of quantitative traits in humans. Nat Genet. 2006;38(2):218-22.
  • 2
    Di Angelantonio E, Sarwar N, Perry P, Kaptoge S, Ray KK, Thompson A, et al. Emerging risk factors collaboration: major lipids, apolipoproteins, and risk of vascular disease. JAMA. 2009;302(18):1993-2000.
  • 3
    Asselbergs FW, Guo Y, van Iperen EP, Sivapalaratnam S, Tragante V, Chen YD, et al. Large-scale gene-centric meta-analysis across 32 studies identifies multiple lipid loci. Am J Hum Genet. 2012;2;91(5):823-38.
  • 4
    Berenson GS, Srinivasan SR, Bao W, Newman WP 3rd, Tracy RE, Wattigney WA. Association between multiple cardiovascular risk factors and the early development of atherosclerosis. Bogalusa Heart Study. N Engl J Med. 1998;338(23):1650-6.
  • 5
    Hopkins PN, Toth PP, Ballantyne CM, Rader DJ; National Lipid Association Expert Panel on Familial Hypercholesterolemia. Familial hypercholesterolemias: prevalence, genetics, diagnosis and screening recommendations from the National Lipid Association Expert Panel on Familial Hypercholesterolemia. J Clin Lipidol. 2011;5(3 Suppl):S9-17.
  • 6
    Peters BJ, Pett H, Klungel OH, Stricker BH, Psaty BM, Glazer NL, et al. Genetic variability within the cholesterol lowering pathway and the effectiveness of statins in reducing the risk of MI. Atherosclerosis. 2011;217(2):458-64.
  • 7
    Choumerianou DM, Dedoussis GV. Familial hypercholesterolemia and response to statin therapy according to LDLR genetic background. Clin Chem Lab Med. 2005;43(8):793-801.
  • 8
    Nordestgaard BG, Chapman MJ, Humphries SE, Ginsberg HN, Masana L, Descamps OS, et al; European Atherosclerosis Society Consensus Panel. Familial hypercholesterolaemia is underdiagnosed and undertreated in the general population: guidance for clinicians to prevent coronary heart disease: consensus statement of the European Atherosclerosis Society. Eur Heart J. 2013;34(45):3478-3490.
  • 9
    Kwiterovich PO Jr, Fredrickson DS, Levy RI. Familial hypercholesterolemia (one form of familial type II hyperlipoproteinemia). A study of its biochemical, genetic and clinical presentation in childhood. J Clin Invest. 1974;53(5):1237-49.
  • 10
    Marks D, Thorogood M, Neil HA, Humphries SE. A review on the diagnosis, natural history, and treatment of familial hypercholesterolaemia. Atherosclerosis. 2003;168(1):1-14.
  • 11
    Genest J, Hegele RA, Bergeron J, Brophy J, Carpentier A, Couture P, et al. Canadian Cardiovascular Society position statement on familial hypercholesterolemia. Can J Cardiol. 2014;30(12):1471-81.
  • 12
    National Institute for Health and Care Excellence (NICE). Familial hypercholesterolaemia: identification and management. [on line]. [Cited in 2015 Jun 10]. Available from: https://www.nice.org.uk/guidance/cg71
    » https://www.nice.org.uk/guidance/cg71
  • 13
    Index of/up-content/uploads/2013/03. [on line]. [Cited in 2015 May 21]. Available from: http://www.csanz.edu.au/wp-content/uploads/2013/03/download_document.png
    » http://www.csanz.edu.au/wp-content/uploads/2013/03/download_document.png
  • 14
    Mata P, Alonso R, Ruiz A, Gonzalez-Juanatey JR, Badimón L, Díaz-Díaz JL, et al. [Diagnosis and treatment of familial hypercholesterolemia in Spain: consensus document]. Atención Primaria. 2015;47;(1):56-65.
  • 15
    Sankatsing RR, Fouchier SW, de Haan S, Hutten BA, de Groot E, Kastelein JJ, et al. Hepatic and cardiovascular consequences of familial hypobetalipoproteinemia. Arterioscler Thromb Vasc Biol. 2005;25(9):1979-84.
  • 16
    Do R, Stitziel NO, Won HH, Jørgensen AB, Duga S, Angelica Merlini P, et al. Exome sequencing identifies rare LDLR and APOA5 alleles conferring risk for myocardial infarction. Nature. 2015;518(7537):102-6.
  • 17
    Varbo A, Benn M, Tybjaerg-Hansen A, Jørgensen AB, Frikke-Schmidt R, Nordestgaard BG. Remnant cholesterol as a causal risk factor for ischemic heart disease. J Am Coll Cardiol. 2013;61(4):427-36.
  • 18
    Jørgensen AB, Frikke-Schmidt R, Nordestgaard BG, Tybjærg-Hansen A. Loss-of-function mutations in APOC3 and risk of ischemic vascular disease. N Engl J Med. 2014;371(1):32-41.
  • 19
    Assmann G, Schulte H, von Eckardstein A, Huang Y. High-density lipoprotein cholesterol as a predictor of coronary heart disease risk. The PROCAM experience and pathophysiological implications for reverse cholesterol transport. Atherosclerosis. 1996;124 Suppl:S11-20.
  • 20
    Sirtori CR, Calabresi L, Franceschini G, Baldassarre D, Amato M, Johansson J, et al. Cardiovascular status of carriers of the apolipoprotein A-I(Milano) mutant: the Limone sul Garda study. Circulation. 2001;103(15):1949-54.
  • 21
    Rader DJ. Lecithin: cholesterol acyltransferase and atherosclerosis: another high-density lipoprotein story that doesn't quite follow the script. Circulation. 2009;120(7):549-52.
  • 22
    Voight BF, Peloso GM, Orho-Melander M, Frikke-Schmidt R, Barbalic M, Jensen MK, et al. Plasma HDL cholesterol and risk of myocardial infarction: a mendelian randomisation study. Lancet. 2012;380(9841):572-80. Erratum in: Lancet. 2012;380(9841):564.
  • 23
    Calabresi L, Gomaraschi M, Simonelli S, Bernini F, Franceschini G. HDL and atherosclerosis: Insights from inherited HDL disorders. Biochim Biophys Acta. 2015;1851(1):13-8.
  • 24
    Simha V, Garg A. Lipodystrophy: lessons in lipid and energy metabolism. Curr Opin Lipidol. 2006;17(2):162-9.
  • 25
    Hegele RA. Premature atherosclerosis associated with monogenic insulin resistance. Circulation. 2001;103(18):2225-9.
  • 26
    Thompson PD, Clarkson P, Karas RH. Statin-associated myopathy. JAMA. 2003;289(13):1681-90.
  • 27
    Law M, Rudnicka AR. Statin safety: a systematic review. Am J Cardiol. 2006;97(8A):52C-60C.
  • 28
    Feng Q, Wilke RA, Baye TM. Individualized risk for statin-induced myopathy: current knowledge, emerging challenges and potential solutions. Pharmacogenomics. 2012;13(5):579-94.
  • 29
    Sposito AC, Caramelli B, Fonseca FA, Bertolami MC, Afiune Neto A, Souza AD, et al. [IV Brazilian Guideline for dyslipidemia and atherosclerosis prevention: Department of Atherosclerosis of Brazilian Society of Cardiology]. Arq Bras Cardiol. 2007;88 Suppl 1:2-19.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Maio 2016

Histórico

  • Recebido
    08 Jan 2016
  • Revisado
    12 Jan 2016
  • Aceito
    20 Jan 2016
Sociedade Brasileira de Cardiologia - SBC Avenida Marechal Câmara, 160, sala: 330, Centro, CEP: 20020-907, (21) 3478-2700 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil, Fax: +55 21 3478-2770 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@cardiol.br