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Influência da aterosclerose subclínica na função diastólica em indivíduos sem doença cardiovascular

Resumos

FUNDAMENTO: É plausível que a aterosclerose subclínica altere a reserva coronariana e comprometa a função diastólica do ventrículo esquerdo. Entretanto, a associação entre os estágios subclínicos da aterosclerose e a função diastólica não foi estabelecida em indivíduos livres de doença cardiovascular. OBJETIVO: Testar a hipótese de que a aterosclerose subclínica tenha uma associação negativa com a função diastólica. MÉTODOS: Indivíduos > 35 anos de idade, sem doença cardiovascular, com pressão arterial normal e teste de esforço na esteira negativo, foram selecionados para avaliação da espessura da camada íntima-média (EIM) carotídea através de ultrassonografia e dos parâmetros de função diastólica através de ecocardiografia, primariamente a razão E'/A' através do Doppler tecidual. RESULTADOS: Quarenta e oito indivíduos, com idade de 56 ± 10 anos, 67% do sexo feminino foram estudados. A EIM carotídea apresentou uma correlação negativa significante com a razão E'/A' no Doppler tecidual (r = - 0,437, p = 0,002). Indivíduos no quarto quartil da EIM apresentavam uma razão E'/A' significantemente mais baixa no Doppler tecidual (0,76 ± 0,25), quando comparados a indivíduos no primeiro (1,2 ± 0,29), segundo (1,2 ± 0,36) e terceiro quartis (1,1 ± 0,25) - p = 0,002. A EIM carotídea no quarto quartil (> 0,8 mm) foi preditor independente da razão E'/A' (p = 0,02), após ajustes para variáveis potencialmente confundidoras, tais como idade, sexo feminino, circunferência da cintura, pressão arterial diastólica, HDL-colesterol e Risco de Framingham. CONCLUSÃO: O estágio inicial da doença arterial aterosclerótica está negativamente associado com os parâmetros de função diastólica em indivíduos saudáveis, independente da idade e características clínicas.

Aterosclerose subclínica; função diastólica; íntima-media carotídea


BACKGROUND: It is plausible that subclinical atherosclerosis alters coronary reserve and impairs diastolic function of the left ventricle. However, the relationship between subclinical stages of atherosclerosis and diastolic function has not been established in subjects free of cardiovascular disease. OBJECTIVE: To test the hypothesis that subclinical atherosclerosis has a negative association with diastolic function. METHODS: Individuals > 35 years old, free of cardiovascular disease, with normal blood pressure and negative treadmill stress test, were selected to have common carotid intima-media thickness (IMT) assessed by ultrasound and parameters of diastolic function by echocardiography, primarily tissue Doppler E'/A' ratio. RESULTS: Forty-eight subjects were studied, aged 56 ± 10 years, 67% females. Composite common carotid IMT had a significant negative correlation with tissue Doppler E'/A' ratio (r = - 0.437, p = 0.002). Individuals in the fourth quartile of IMT had a significant lower tissue Doppler E'/A' ratio (0.76 ± 0.25), as compared with the first (1.2 ± 0.29), second (1.2 ± 0.36) and third quartiles (1.1 ± 0.25) - p = 0.002. Composite common carotid IMT in the fourth quartile (> 0.8 mm) independently predicted E'/A' ratio (p = 0.02), after adjustment for potentially confounding variables, such as age, female gender, waist circumference, diastolic blood pressure, HDL-cholesterol and Framingham Risk. CONCLUSION: Early stage of subclinical atherosclerotic disease is negatively associated with diastolic function parameters in healthy individuals, regardless of age and clinical characteristics.

Subclinical atherosclerosis; diastolic function; carotid intima-media thickness


FUNDAMENTO: Es plausible que la aterosclerosis subclínica altere la reserva coronaria y comprometa la función diastólica del ventrículo izquierdo. Entre tanto, la asociación entre los niveles subclínicos de la aterosclerosis y la función diastólica no fue establecida en individuos libres de enfermedad cardiovascular. OBJETIVO: Testear la hipótesis de que la aterosclerosis subclínica tenga una asociación negativa con la función diastólica. MÉTODOS: Individuos > 35 años de edad, sin enfermedad cardiovascular, con presión arterial normal y test de esfuerzo en la cinta negativo, fueron seleccionados para evaluación del espesor de la capa íntima-media (EIM) carotídea a través de ultrasonografía y de los parámetros de función diastólica a través de ecocardiografia, primariamente a razón E'/A' a través del Doppler tisular. RESULTADOS: Cuarenta y ocho individuos, con edad 56 ± 10 años, 67% del sexo femenino. La EIM carotídea presentó una correlación negativa significativa con la razón E'/A' en el Doppler tisular (r = - 0,437, P = 0,002). Individuos en el cuarto cuartil de la EIM presentaban una razón E'/A' significativamente más baja en el Doppler tisular (0,76 ± 0,25), cuando fueron comparados a individuos en el primero (1,2 ± 0,29), segundo (1,2 ± 0,36) y tercer cuartiles (1,1 ± 0,25) - P = 0,002. La EIM carotídea en el cuarto cuartil (> 0,8 mm) fue predictor independiente de la razón E'/A' (P = 0,02), después de ajustes para variables potencialmente confundidoras, tales como edad, sexo femenino, circunferencia de la cintura, presión arterial diastólica, HDL-colesterol y Riesgo de Framingham. CONCLUSIÓN: El nivel inicial de la enfermedad arterial aterosclerótica está negativamente asociado a los parámetros de función diastólica en individuos sanos, independientemente de la edad y características clínicas.

Aterosclerosis subclínica; función diastólica; íntima-media carotídea


ARTIGO ORIGINAL

ECOCARDIOGRAFIA ADULTOS

Influência da aterosclerose subclínica na função diastólica em indivíduos sem doença cardiovascular

Maristela Magnavita Oliveira Garcia; Marília Galeffi Rodrigues; Joaquim Antônio dos Reis Neto; Luis Claudio Correia

Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública - Fundação de Desenvolvimento de Pesquisas da Bahia, Instituto Pró-Cardíaco, Salvador, BA - Brasil

Correspondência Correspondência: Maristela Magnavita Oliveira Garcia Rua Artesão João da Prata, 268/202 - Edf. Mansão Plaza Athenée - Itaigara 41815-210 - Salvador, BA - Brasil E-mail: marisma@cardiol.br, marismacardiol@gmail.com

RESUMO

FUNDAMENTO: É plausível que a aterosclerose subclínica altere a reserva coronariana e comprometa a função diastólica do ventrículo esquerdo. Entretanto, a associação entre os estágios subclínicos da aterosclerose e a função diastólica não foi estabelecida em indivíduos livres de doença cardiovascular.

OBJETIVO: Testar a hipótese de que a aterosclerose subclínica tenha uma associação negativa com a função diastólica.

MÉTODOS: Indivíduos > 35 anos de idade, sem doença cardiovascular, com pressão arterial normal e teste de esforço na esteira negativo, foram selecionados para avaliação da espessura da camada íntima-média (EIM) carotídea através de ultrassonografia e dos parâmetros de função diastólica através de ecocardiografia, primariamente a razão E'/A' através do Doppler tecidual.

RESULTADOS: Quarenta e oito indivíduos, com idade de 56 ± 10 anos, 67% do sexo feminino foram estudados. A EIM carotídea apresentou uma correlação negativa significante com a razão E'/A' no Doppler tecidual (r = - 0,437, p = 0,002). Indivíduos no quarto quartil da EIM apresentavam uma razão E'/A' significantemente mais baixa no Doppler tecidual (0,76 ± 0,25), quando comparados a indivíduos no primeiro (1,2 ± 0,29), segundo (1,2 ± 0,36) e terceiro quartis (1,1 ± 0,25) - p = 0,002. A EIM carotídea no quarto quartil (> 0,8 mm) foi preditor independente da razão E'/A' (p = 0,02), após ajustes para variáveis potencialmente confundidoras, tais como idade, sexo feminino, circunferência da cintura, pressão arterial diastólica, HDL-colesterol e Risco de Framingham.

CONCLUSÃO: O estágio inicial da doença arterial aterosclerótica está negativamente associado com os parâmetros de função diastólica em indivíduos saudáveis, independente da idade e características clínicas. (Arq Bras Cardiol. 2010; [online]. ahead print, PP.0-0)

Palavras-chave: Aterosclerose subclínica; função diastólica; íntima-media carotídea.

Introdução

A doença aterosclerótica desenvolve-se precocemente e geralmente progride por décadas como um processo silencioso. Essa condição, chamada de aterosclerose subclínica, é altamente prevalente na população adulta em geral1. Durante esse período, placas ateroscleróticas não-obstrutivas não causam isquemia no sentido clínico, mas promovem alterações funcionais no tônus vascular2, relacionadas à liberação de mediadores vasoativos e afetando a produção de óxido nítrico por um endotélio disfuncional3.

A função diastólica é a primeira a ser afetada na doença cardíaca isquemica4. É possível que o processo fisiopatológico da aterosclerose subclínica, geralmente não suficiente para reduzir a função sistólica, seja capaz de alterar a função diastólica do ventrículo esquerdo (VE). Dados preliminares tem mostrado que a carga aterosclerótica apresenta uma relação inversa com as medidas da disfunção diastólica5,6. Entretanto, nenhum estudo anterior avaliou essa questão em uma população adulta saudável, conhecidamente livre de isquemia miocárdica avaliada por testes provocativos não-invasivos.

A fim de testar a hipótese de que a aterosclerose subclínica é um preditor da função diastólica, independente da isquemia miocárdica crônica, estudamos uma amostra altamente selecionada de indivíduos livres de qualquer doença cardiovascular e com resultado negativo ao teste de esforço na esteira. A carga aterosclerótica foi medida através da espessura íntima-média (EIM) das artérias carótidas e a função diastólica foi avaliada através de ecocardiografia por Doppler pulsado e tecidual.

Métodos

População do estudo

Homens e mulheres assintomáticos, com idade > 35 anos, que espontaneamente se apresentaram ao nosso ambulatório para avaliação preventiva de Junho de 2006 a Junho de 2007, foram considerados candidatos ao estudo. Os critérios de exclusão incluíram qualquer condição cardiovascular ou doença sistêmica com potencial para afetar a função diastólica: histórico de hipertensão, doença arterial coronariana, insuficiência cardíaca, doença valvar, marcapasso cardíaco, bloqueio atrioventricular, uso corrente de medicamentos cardiovasculares, disfunção renal, DPOC, diabete, doença tireoidiana ou doenças do colágeno. Após essa primeira triagem, os indivíduos foram submetidos à seguinte avaliação para melhor selecionar aqueles livres de doença cardiovascular: 1) inicialmente, a pressão arterial foi medida em repouso na posição sentada e aqueles com pressão sistólica > 140 mmHg ou pressão diastólica > 90 mmHg foram excluídos; 2) um eletrocardiograma (ECG) de repouso de 12 derivações foi realizado e aqueles com ritmo não-sinusal, evidência de isquemia (inversão onda T > 1 mm ou infradesnivelamento de segmento-ST > 0,5 mm) ou presença de ondas Q foram excluídos; 3) a ecocardiografia foi realizada e aqueles com qualquer anormalidade estrutural ou funcional (tais como hipertrofia ou dilatação ventricular, disfunção sistólica, disfunção valvar não-trivial ou doença pericárdica) foram excluídos; 4) finalmente, o teste de esforço foi realizado com protocolo máximo graduado para esteira ergométrica e os indivíduos eram excluídos quando o teste era positivo para isquemia: infradesnivelamento de segmento-ST induzido por esforço > 1 mm no ponto J ou sintoma típico de angina. O estudo foi aprovado pelo comitê de ética institucional e todos os participantes deram seu consentimento livre e informado.

Cálculo do tamanho da amostra

Com base em evidências anteriores da literatura, que descreveram um coeficiente de correlação entre EIM e a razão E/A no Doppler pulsado de 0,467, estimamos que 46 pacientes seriam necessários para detectar o mesmo coeficiente de correlação entre a EIM e a razão E'/A' no Doppler tecidual, com um poder estatístico de 90% e um nível de significância de 5%.

Protocolo do estudo

Os indivíduos foram submetidos a exame físico para obtenção de pressão arterial em repouso, peso, altura e circunferência da cintura. O índice de massa corporal foi definido como peso (kg)/altura2 (m). Uma amostra de sangue foi colhida em jejum para dosagem no plasma de níveis lipídicos, glicose e proteína C-reativa de alta sensibilidade. Métodos enzimáticos comerciais foram usados para determinar colesterol total, HDL-colesterol e triglicérides (Dimension Clinical Chemistry System, Dade-Behring, Delaware, EUA)8. O LDL - colesterol foi calculado através da fórmula de Friedewald. A proteína C-reativa de alta sensibilidade foi medida através de um método nefelométrico enzimático disponível comercialmente (Dade-Behring, Newark, Delaware, EUA), com limite de precisão de 0,3 mg/l e coeficiente de variação de 7,6%9. Com base nos dados clínicos e laboratoriais, o Escore de Risco de Framingham foi calculado para cada paciente10. No dia subsequente, a ecocardiografia foi realizada para avaliar os critérios de exclusão e para fornecer uma avaliação diastólica abrangente se o individuo fosse selecionado para o estudo. Depois disso, a ultrassonografia carotídea foi realizada para avaliar a aterosclerose subclínica como descrito abaixo. Ambas, as imagens, ecocardiográficas e ultrassonográficas das carótidas, foram adquiridas e armazenadas diretamente do sistema de ultrassom para posterior avaliação cega e off-line.

Avaliação da aterosclerose subclínica

Os indivíduos foram examinados na posição supina, com a cabeça virada em um ângulo de 45º do lado sendo escaneado. As artérias carótidas direita e esquerda foram avaliadas através de um aparelho de ultrassonografia de alta resolução no modo B (Envisor C, Philips Medical Systems) conectado a um transdutor linear de 7,5 MHz, preferencialmente a uma profundidade-padrão de 4 cm. Um observador independente mediu a espessura da camada íntima-média (EIM) carotídea em todos os indivíduos, através de método validado anteriormente11. As imagens longitudinais foram obtidas ao nível da artéria carótida comum, sincronizada à diástole, especificamente na onda R do ECG. A EIM foi definida como a distância entre a borda externa da primeira linha ecogênica e a borda externa da segunda linha ecogênica da parede posterior. Três mensurações foram feitas em cada carótida, direita e esquerda, a 1 cm antes da bifurcação carotídea. A EIM da carótida comum foi definida como a média desses três valores12-14. A média da EIM carotídea comum de ambos os lados foi a EIM carotídea comum composta, considerada a principal variável de EIM na análise dos dados.

Para testar a reprodutibilidade inter-observador, 20% dos indivíduos tiveram suas carótidas mensuradas off-line por um segundo observador independente. O coeficiente de correlação de Pearson entre os dois observadores foi 0,90 (p < 0,001). Os limites de concordância de 95% para essas medidas foram de 0 a 0,11 mm.

Avaliação da função diastólica

O exame de ecocardiografia transtorácica com Doppler foi realizado em todos os indivíduos, usando um sistema de ultrassom disponível comercialmente (Envisor C, Philips Medical Systems), equipado com transdutor de 2 a 4 MHz. A avaliação da função diastólica do VE foi realizada através de Doppler pulsado e tecidual. As imagens espectrais do Doppler pulsado foram obtidas em corte apical 4 câmaras a partir de uma amostra-volume posicionada nas extremidades dos folhetos mitrais para registrar o fluxo valvar mitral durante 3 ciclos cardíacos consecutivos. As velocidades do Doppler tecidual foram obtidas do anel mitral lateral em corte apical de 4 câmaras. Um observador independente mediu os parâmetros diastólicos em todos os indivíduos. Os seguintes índices diastólicos foram derivados do Doppler pulsado: pico da velocidade no início da diástole (E), tempo de desaceleração do pico da velocidade no início da diástole à linha basal, pico da velocidade sistólica atrial (A), a razão E/A e o tempo de relaxamento isovolumétrico. Os índices do Doppler tecidual foram: pico da velocidade do movimento sistólico, pico da velocidade inicial do movimento diastólico (E'), pico da velocidade do movimento sistólico atrial (A') e a razão E'/A'. A correlação negativa conhecida entre E' e A' reflete a dependência interna entre esses parâmetros e apóia sua análise conjunta, não individual15. A razão E/E' não foi selecionada para essa análise devido ao fato de não ser uma medida robusta em indivíduos saudáveis com fração de ejeção preservada16.

Além disso, as dimensões das câmaras e a fração de ejeção do VE (FEVE) foram medidas pelo ecocardiograma em modo-M e o volume do átrio esquerdo foi determinado pela regra de Simpson usando o corte apical 4 câmaras e indexado pela área de superfície corpórea17. A massa do VE foi calculada de acordo com a equação de Devereux e indexada pela área de superfície corpórea18.

Para testar a reprodutibilidade inter-observador, 20% dos indivíduos tiveram suas medidas diastólicas realizadas off-line por um segundo observador independente. O coeficiente de correlação de Pearson foi 0,99 (p < 0,001) para a razão E'/A' e os limites de concordância de 95% para essas medidas foram de - 0,074 to + 0,12.

Análise de dados

Primeiramente, a associação linear foi testada entre a EIM carotídea comum composta e os parâmetros diastólicos pelo coeficiente de correlação de Pearson e regressão linear. Segundo, as variáveis diastólicas foram comparadas entre quartis de EIM através de análise de variância (ANOVA), seguida por uma comparação entre dois grupos extremos de acordo com o grau de carga aterosclerótica: aqueles com uma EIM carotídea comum composta no quarto quartil de distribuição de nossa amostra (> 0,8 mm) vs aqueles abaixo do quarto quartil. Os parâmetros diastólicos numéricos foram comparados pelo teste t de Student e as variáveis com distribuição não-normal foram log-transformadas antes da comparação estatística. Terceiro, as características basais foram comparadas entre esses dois grupos e aqueles com uma associação significante com a EIM (p < 0,05) foram considerados variáveis potencialmente confundidoras na relação entre aterosclerose e função diastólica. Para essas comparações, o teste t de Student foi usado para variáveis contínuas e o teste Qui-quadrado foi utilizado para variáveis categóricas. Quarto, a fim de ajustar o efeito da aterosclerose na função diastólica, uma análise de covariância (ANCOVA) foi realizada, tomando-se a razão E'/A' como a variável dependente contínua, a EIM carotídea comum composta no quarto quartil como a variável preditora e as variáveis potencialmente confundidoras como covariáveis (contínuas ou categóricas). Valores de probabilidade bi-caudais < 0,05 foram considerados estatisticamente significantes. Os dados foram apresentados como médias ± desvios-padrão para variáveis contínuas e porcentagens para variáveis categóricas. O programa de software SPSS versão 13.0 para Windows (SPSS Inc, Chicago, Il) foi utilizado para a análise de todos os dados.

Resultados

Quarenta e oito indivíduos foram estudados, com idade de 56 ± 10 anos (variação de 37 a 81 anos), 67% do sexo feminino e 60% de etnia branca. Como mostrado na Tabela 1, a pressão arterial e nível glicêmico estavam dentro dos limites normais, enquanto IMC, colesterol total e triglicérides estavam levemente elevados. A amostra consistia de uma população de baixo risco, com uma mediana de risco de 10 anos para morte ou infarto do miocárdio de 3,5%, com base no Escore de Risco de Framingham. As medidas ecocardiográficas da massa do VE, FEVE e volume do AE apresentavam médias normais. A média da EIM carotídea comum composta foi de 0,75 ± 0,16 mm, indicando uma amostra populacional com um grau apenas inicial de aterosclerose. A média da onda E' do Doppler tecidual foi de 12 ± 3,0 cm/s, indicando uma população predominantemente normal em relação à função diastólica.

A medida da EIM carotídea comum composta apresentou uma correlação negativa com a razão E/A, tempo de relaxamento isovolumétrico, onda E' e razão E'/A', com uma correlação positiva com tempo de desaceleração do fluxo mitral, indicando uma associação negativa entre a carga aterosclerótica e a função diastólica - Tabela 2. Essas associações foram especialmente significantes quando os índices da função diastólica no Doppler tecidual foram utilizados, tais como a onda E' (r = - 0,32, p = 0,03) e a razão E'/A' (r = - 0,437, p = 0,002 - Figura 1A). Quando a razão E'/A' foi comparada entre quartis de EIM, o primeiro (1,2 ± 0,29), segundo (1,2 ± 0,36) e terceiro quartis (1,1 ± 0,25) apresentaram valores similares, enquanto o quarto quartil era significantemente mais baixo (0,76 ± 0,25, p = 0,002 por ANOVA). Essa observação sugere a influência da aterosclerose na função diastólica em um limiar próximo ao limite do quarto quartil. Assim, comparamos as diferenças entre o quarto quartil da EIM (> 0,8 mm) e os primeiros três quartis considerados juntos (razão E'/A': 0,76 ± 0,25 vs 1,2 ± 0,3; p < 0,001 - Figura 1b). Indivíduos no quarto quartil apresentavam uma razão E/A do fluxo mitral mais baixa (0,98 ± 0,27 vs 1,23 ± 0,30; p = 0,01), um tempo de desaceleração mais longo (260 ± 69 ms vs 198 ± 61 ms; p = 0,005), enquanto o relaxamento isovolumétrico apresentava uma tendência à ser mais curto no quarto quartil, quando comparado aos primeiros três quartis (67 ± 24 ms vs 82 ± 22 ms; p = 0,05) - Tabela 3.


A análise das características basais identificou as seguintes diferenças entre os indivíduos no quarto vs os três primeiros quartis de EIM, que eram variáveis potencialmente confundidoras na relação entre a EIM e a função diastólica: idade, gênero, circunferência da cintura, risco de Framingham, HDL-colesterol e pressão arterial diastólica - Tabela 4. Após ajuste para essas variáveis confundidoras através da análise de covariância, a EIM carotídea na quarto quartil (> 0,08 mm) permaneceu um significante preditor da razão E'/A' (p = 0,02). Também a idade foi preditora da razão E'/A', independente da aterosclerose (p < 0,001) e o risco de Framingham apresentou uma tendência à ser preditor (p = 0,07) - Tabela 5.

Discussão

Esse estudo fornece evidência de uma associação negativa entre a aterosclerose subclínica e a função diastólica em uma amostra altamente selecionada de indivíduos saudáveis: na maioria adultos jovens, com ausência de hipertensão, risco cardiovascular muito baixo, de acordo com o risco de Framingham, sem isquemia miocárdica no teste de esforço ou qualquer tipo de anormalidade cardíaca no ecocardiograma. Assim, a aterosclerose aqui estudada não é geralmente considerada um processo patológico no sentido clínico. De fato, é um estágio bastante inicial da doença, como demonstrado pelos valores médios da EIM. Mesmo assim, nossos dados sugerem que essa condição subclínica, além de certo nível, está associada com um relativo comprometimento da função diastólica.

Devido ao fato de a EIM carotídea estar relacionada à idade, controlamos a influência do envelhecimento na função diastólica como um potencial confundidor na relação entre a aterosclerose e a função diastólica. Essas análises mostraram que após o ajuste para idade, o efeito da aterosclerose permaneceu altamente significante, demonstrando a natureza independente da associação entre a aterosclerose e a função diastólica. De fato, os dois únicos preditores de função diastólica foram idade e carga aterosclerótica. Considerando que os primeiros três quartis da EIM não apresentavam um gradiente de função diastólica, que diminuía somente no quarto quartil, a aterosclerose apresenta um limiar para começar a afetar a diástole, que foi ao redor de 0,8 mm de EIM. Esse valor de limiar não deve ser considerado uma estimativa precisa, devido ao pequeno tamanho da amostra. Dessa forma, ele deve ser confirmado em estudos futuros. De qualquer forma, é interessante notar que é o mesmo ponto de corte que determina o aumento no risco cardiovascular de acordo com a maioria dos estudos longitudinais19-22. Em níveis mais baixos de EIM, o espessamento pode refletir uma resposta adaptiva à alterações no estresse de cisalhamento, mas além desse nível a EIM mais provavelmente representa um processo de doença22.

Nossos achados estão de acordo com dados recentes relacionados à associação entre aterosclerose e função diastólica23. Fernandes e cols.24 discutiram essa questão em uma coorte de base populacional no estudo "Multi-ethnic Study of Atherosclerosis" (MESA) e demonstraram que uma maior EIM carotídea está associada com disfunção miocárdica sistólica e diastólica incipiente avaliada por taxas de deformação regional (strain rate), através da ressonância magnética24. Comparada ao nosso estudo, a população do estudo MESA era em média 10 anos mais velha, não estava totalmente livre de fatores de risco cardiovascular (40% hipertensão, 18% diabete), a EIM média era mais alta (0,86 ± 0,20 mm) e a possibilidade de isquemia miocárdica não foi descartada pelos testes provocativos. Dessa forma, nossos dados expandem os achados do estudo MESA para uma população mais jovem e normal, sem isquemia miocárdica. Outros dados preliminares demonstraram achados similares em pacientes hipertensos6 e indivíduos idosos25. Assim, a originalidade do presente estudo reside na natureza normal de uma amostra populacional altamente selecionada, o que previne uma interação complexa de fatores confundidores e enfatiza o impacto da aterosclerose em seus estágios mais iniciais. Precisamos reconhecer que o teste ergométrico não é um exame de alta sensibilidade para descartar isquemia miocárdica. Por outro lado, a probabilidade pré-teste muito baixa de doença coronariana de nossa população leva à um valor preditivo negativo muito alto do teste de esforço em nosso estudo. Dessa forma, a probabilidade pós-teste de isquemia miocárdica após o teste de esforço negativo deve ser muito baixa em nossa amostra populacional.

Mecanismos adjacentes à relação da aterosclerose subclínica e função diastólica estão provavelmente relacionados à função vascular. Primeiro, já se sabe que o espessamento intimal é um indicador de redução da reserva de fluxo miocárdico26. Isso pode ser o resultado de obstrução coronária microvascular e/ou redução da reserva vasodilatadora dos vasos epicárdicos devido à disfunção endotelial. Esses fenômenos podem acontecer na ausência de doença coronária obstrutiva e isquemia crônica. Segundo, a aterosclerose pode aumentar a rigidez arterial das grandes artérias, tais como a carótida e a aorta, aumentado a pós-carga para o VE, com impacto negativo na função diastólica. De fato, o aumento na rigidez arterial está relacionado não apenas com a aterosclerose, mas também com a disfunção diastólica27. Considerando que a função endotelial, reserva de fluxo coronário e rigidez arterial não foram avaliados no presente estudo, um entendimento mais abrangente do processo fisiopatológico deve ser o foco de pesquisas futuras. Devido à natureza transversal de nosso estudo, não é possível garantir que a relação observada seja o resultado da aterosclerose afetando a função diastólica.

Entretanto, vários critérios científicos de causalidade (tais como consistência com literatura prévia, poder estatístico, ausência de explicação alternativa e, principalmente, plausibilidade biológica) sugerem que é a aterosclerose que afeta a função diastólica e não o oposto.

O significado prático de nossos achados ainda precisa ser melhor estudado. Não tratamos a disfunção diastólica como uma variável categórica, apenas avaliamos os parâmetros como variáveis contínuas. Dessa forma, ainda precisa ser determinado se a associação negativa entre aterosclerose e disfunção diastólica é clinicamente importante. Outra aplicação a ser testada em estudos futuros é se a função diastólica pode ser considerada um substituto (surrogate) para a aterosclerose subclínica em certos grupos de pacientes. Em outras palavras, indivíduos com disfunção diastólica isolada apresentam maior risco de eventos relacionados à doença aterosclerótica?

Além disso, nossos achados podem ser a base para testes futuros da hipótese de que a terapia hipolipemiante melhora a função diastólica. Em todas essas questões, estudos de natureza longitudinal trarão novos insights não fornecidos pelo desenho transversal do presente estudo.

Em conclusão, o presente estudo fornece evidências para a associação independente e negativa entre aterosclerose subclínica e função diastólica, e aumenta o conhecimento a respeito de indivíduos de baixo risco cardiovascular e com pequeno grau de aterosclerose subclínica.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação Acadêmica

Este artigo é parte de dissertação de Mestrado de Maristela Magnavita Oliveira Garcia pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública.

Artigo recebido em 14/09/09; revisado recebido em 08/10/09; aceito em 16/12/09

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  • Correspondência:

    Maristela Magnavita Oliveira Garcia
    Rua Artesão João da Prata, 268/202 - Edf. Mansão Plaza Athenée - Itaigara
    41815-210 - Salvador, BA - Brasil
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Ago 2010
    • Data do Fascículo
      Out 2010

    Histórico

    • Aceito
      16 Dez 2009
    • Revisado
      08 Out 2009
    • Recebido
      14 Set 2009
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