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Endocardite de Prótese Valvular Aórtica por Neisseria Elongata após Procedimento de Bentall: Quando a Imagem Multimodal é Chave para o Diagnóstico

Palavras-chave
Insuficiência da Valva Aórtica/cirurgia; Aneurisma Aórtico; Próteses Valvulares Cardíacas; Endocardite; Neisseria Elongata; Tomografia Computadorizada/métodos; Ecocardiografia/métodos

Homem diabético de 65 anos com procedimento de Bentall prévio e prótese valvar aórtica mecânica apresentou febre e dor abdominal, juntamente com sopro sistólico (III/VI) e marcadores inflamatórios elevados. A tomografia computadorizada (TC) abdominal revelou infarto esplênico. Ecocardiograma transesofágico (ETE) foi negativo para vegetações. Diante da suspeita persistente de endocardite infecciosa (EI) com embolia periférica, iniciou-se terapia antimicrobiana empírica. Posteriormente, o paciente apresentou bloqueio atrioventricular total, necessitando de estimulação transvenosa temporária. Posteriormente, implantou-se um marca-passo epicárdico.

Na ocasião, a TC cardíaca revelou uma massa hipoatenuante de formato irregular apensa ao lado ventricular do anel de sutura protético, compatível com vegetação (Figura 1A), interferindo na abertura normal de um dos discos da prótese (Vídeo 1). Um novo ETE também mostrou uma pequena vegetação altamente móvel e um abscesso anular na prótese aórtica (Figura 2). As hemoculturas foram positivas para Neisseria elongata, confirmando o diagnóstico de endocardite de válvula protética (EVP); terapia antimicrobiana foi adaptada. Apesar da melhora precoce, o paciente posteriormente apresentou ataxia “de novo” e a TC de crânio revelou infarto no território vertebrobasilar direito. Novas culturas continuaram negativas e os níveis de coagulação estavam dentro da faixa terapêutica. Uma pequena vegetação persistia na TC cardíaca e no ETE, e infiltrado inflamatório tornou-se aparente na cortina mitro-aórtica.

Figura 1
1A) TC cardíaca na admissão mostrando vegetação na valva aórtica e alterações inflamatórias na fibrosa intervalvar e espaços septais interatriais. 1B) TC cardíaca na alta com tecido inflamatório residual.
Figura 2
2A) Ecocardiograma transesofágico, corte esôfago médio eixo longo da valva aórtica. (a) Vegetação (seta vermelha) e infiltrado inflamatório (seta branca). (b) Abscesso anular (seta vermelha). Ao: aorta ascendente; AE: átrio esquerdo; VE: ventrículo esquerdo. 2B) Ecocardiograma transesofágico na alta, corte esôfago médio eixo longo da valva aórtica. Não há visualização de vegetação ou abscesso. Ao: aorta ascendente; AE: átrio esquerdo; VE: ventrículo esquerdo.

O paciente foi recusado para cirurgia devido ao risco proibitivo de reoperação, e uma estratégia conservadora foi adotada após discussão em Heart Team. Após oito semanas de antibioterapia, alcançou-se remissão clínica e laboratorial. A TC revelou uma prótese normofuncionante (Vídeo 2) e os achados patológicos previamente observados estavam ausentes (VFigura 1B). As vegetações não eram mais evidentes ao ETE (Figura 3).

Após um ano de seguimento, o doente permaneceu assintomático, sem sinais ecocardiográficos ou laboratoriais de recidiva.

Tanto quanto sabemos, este é o primeiro relato de caso de EVP em paciente com procedimento de Bentall prévio devido a Neisseria elongata. Destacamos a importância da imagem multimodal, principalmente quando o diagnóstico permanece incerto após avaliação ecocardiográfica inconclusiva. Em última análise, o diagnóstico se baseou nos achados da TC, incluído como um dos critérios major diagnósticos nas diretrizes mais recentes de endocardite.11. Habib G, Lancellotti P, Antunes MJ, Bongiorni MG, Casalta J-P, Del Zotti F et al. 2015 ESC Guidelines for the management of infective endocarditis: The Task Force for the Management of Infective Endocarditis of the European Society of Cardiology (ESC). Endorsed by: European Association for Cardio-Thoracic Surgery (EACTS), the European Association of Nuclear Medicine (EANM). Eur Heart J. 2015; 36(44):3075–128. A TC tem excelente resolução espacial e permite a visualização detalhada da anatomia paravalvar e suas complicações, com menos artefato de sombra da prótese.22. Cahill TJ, Baddour LM, Habib G, Hoen B, Salaun E, Pettersson GB et al. Challenges in Infective Endocarditis. J Am Coll Cardiol. 2017; 69(3):325-44.

Apesar das indicações cirúrgicas óbvias, o paciente foi tratado com sucesso com uma estratégia conservadora (controversa). Embora a remoção e a substituição do material protésico fossem tradicionalmente consideradas obrigatórias, se a intervenção não for viável, os pacientes devem ser tratados com antibioterapia prolongada.33. Machelart I, Greib C, Wirth G, Camou F, Issa N, Vialland JF, et al. Graft infection after a Bentall procedure: A case series and systematic review of the literature. Diagn Microbiol Infect Dis. 2017; 88(2):158–62. Diversas séries, incluindo o registro ESC-EORP EURO-ENDO,44. Habib G, Erba PA, Iung B, Donal E, Cosyns B, Laroche C et al. Clinical presentation, aetiology and outcome of infective endocarditis. Results of the ESC-EORP EURO-ENDO (European infective endocarditis) registry: a prospective cohort study. Eur Heart J. 2019; 40(39):3222-33. declararam a discrepância entre as indicações cirúrgicas orientadas por diretrizes e a prática real, em grande parte explicada por pacientes cada vez mais complexos, com mais comorbidades e intervenções prévias com material protésico intracardíaco. Este caso é ilustrativo dos desafios atuais envolvidos no diagnóstico e tratamento de EVP, onde o tratamento conservador pode, ocasionalmente, ser bem-sucedido e ser a única opção aceitável.

  • Fontes de Financiamento
    O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.
  • Vinculação Acadêmica
    Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.
  • Aprovação Ética e Consentimento Informado
    Este artigo não contém estudos com humanos ou animais realizados por nenhum dos autores.

Referências

  • 1
    Habib G, Lancellotti P, Antunes MJ, Bongiorni MG, Casalta J-P, Del Zotti F et al. 2015 ESC Guidelines for the management of infective endocarditis: The Task Force for the Management of Infective Endocarditis of the European Society of Cardiology (ESC). Endorsed by: European Association for Cardio-Thoracic Surgery (EACTS), the European Association of Nuclear Medicine (EANM). Eur Heart J. 2015; 36(44):3075–128.
  • 2
    Cahill TJ, Baddour LM, Habib G, Hoen B, Salaun E, Pettersson GB et al. Challenges in Infective Endocarditis. J Am Coll Cardiol. 2017; 69(3):325-44.
  • 3
    Machelart I, Greib C, Wirth G, Camou F, Issa N, Vialland JF, et al. Graft infection after a Bentall procedure: A case series and systematic review of the literature. Diagn Microbiol Infect Dis. 2017; 88(2):158–62.
  • 4
    Habib G, Erba PA, Iung B, Donal E, Cosyns B, Laroche C et al. Clinical presentation, aetiology and outcome of infective endocarditis. Results of the ESC-EORP EURO-ENDO (European infective endocarditis) registry: a prospective cohort study. Eur Heart J. 2019; 40(39):3222-33.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    Maio 2021

Histórico

  • Recebido
    25 Jun 2020
  • Revisado
    05 Set 2020
  • Aceito
    09 Nov 2020
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