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O cardiologista brasileiro em formação: diretriz e liberdade

Corpo clínico hospitalar; formação de recursos humanos; guia de prática médica; liberdade

PONTO DE VISTA

O cardiologista brasileiro em formação: diretriz e liberdade

Max Grinberg

Instituto do Coração (InCor) do HCFMUSP, São Paulo, SP - Brasil

Correspondência Correspondência: Max Grinberg Rua Manoel Antonio Pinto, 4 / 21A - Paraisópolis - 05663-020, São Paulo SP - Brasil E-mail: grinberg@incor.usp.br, max@cardiol.br

Palavras-chave

Corpo clínico hospitalar, formação de recursos humanos, guia de prática médica, liberdade.

"[...] por consciência e princípios morais, somos livres e portanto responsáveis, mas nos orientamos em conformidade com o princípio da causalidade [...]"

Hanna Arendt

O cardiologista brasileiro em formação, o residente, por exemplo, orienta-se por uma biblioteca de validades da literatura médica hierarquizadas por sociedades de especialidade, conhecidas como diretrizes. Elas representam maquetes da construção clínica à beira do leito, disponibilizadas por meio da tecnologia da informação qual franquias para serem reprodutíveis em cada local. Diretrizes pretendem reduzir vieses enigmáticos e influenciam os costumes da geração.

Rapidamente, a diretriz progrediu de documento tolerado para desejada conveniência de sistematização de previsibilidades em faça, não faça, provavelmente é para fazer, provavelmente não é para fazer1.

Sendo faça, não faça um guia (guideline) de "verdades" e não uma norma de "certezas", a aplicação não pode prescindir da lucidez clínica exigente de liberdade e responsabilidade para evitar desfigurações à forma humana das recomendações.

Ponderar sobre um decálogo afeito à bioética parece ser útil para o cardiologista brasileiro em formação maximizar vantagens da diretriz na tomada de decisão clínica e no seu processo educacional, e minimizar deficiências no trato do paciente-uno e da literatura-infinita.

1) Os bons princípios e os reconhecidos benefícios de diretrizes justificam a expectativa crescente por disponibilidades, mas não qualificam faça, não faça, nem como décimo primeiro mandamento de fé, nem como chave mestra da beira do leito. Rigidez de pressupostos ou indícios de predador do juízo clínico não costumam ser bem-vindos à essência individualista do médico, que valoriza o espaço da experiência.

A consciência de que o proveito da memória da literatura advém da conexão ao mundo real da beira do leito é que torna a flexibilidade um atributo vital do faça,não faça. Privilegia-se o processo de fazer,não fazer acima do resultado a qualquer custo.

2) Como "agente translacional", a sociedade de especialidade gruda etiquetas de classes e níveis com cola científico-ético-legal num percentual ainda restrito de interesses da cardiologia, e com minoria do nível A de precisão científica.

O cardiologista brasileiro em formação, por isso, sente-se liberado do faça,não faça da diretriz, em grande parte das tomadas de decisão. Isento do impacto sobre a liberdade interior que pode advir da dimensão política da sociedade de especialidade atrelada ao paradigma da medicina baseada em evidências, ele pode, paradoxalmente, até sentir certo desamparo pela ausência do faça tal prescrição, porque prevê melhor prognóstico imediato e tardio, e do não faça porque é inútil e ineficaz. Diretriz desperta simpatia pelo imperativo.

Cresce, outrossim, o referido impacto sobre a pessoalidade do ser médico, já no primeiro estágio do trial-guideline-education process2. É efeito bumerangue: alguém soube fazer a pergunta a um protocolo de pesquisa multicêntrico; que o cardiologista brasileiro em formação reflita se deve fazer ou não fazer a resposta-conhecimento novo em mãos, certamente etiqueta nível A e chance de classe I/IIA, se houver incorporação à diretriz.

3) Praticidade, agilidade, uniformidade no uso de diretriz e pouco tempo disponível desestimulam o detalhamento por si, artigo a artigo, livro a livro. Apaga-se a vontade da própria leitura crítica sobre o comentado ou referido já iluminado pelo comitê a quem foi dada uma procuração tácita.

Há risco do "fazer correto" ao paciente desprovido dos fundamentos, reduzir o ser médico a um ato algorítmico de fazer ou não fazer. Ademais, para não demonstrar desconhecimento ou inércia, há chance de se escorregar para a imprudência de um uso desajustado àquele paciente-uno.

Sentir-se livre de imposições internas e externas é salvaguarda endossável pela bioética para tomar a melhor decisão descontaminada de eventuais componentes de decisão forçada, conveniente para o médico, emocional ou lucrativa3.

4) Exclusões pela concepção pragmática, matemática e ética das pesquisas4,5 explicam por que não basta ligar o GPS-diretriz e seguir a seleção de classes e níveis. É preciso liberdade para fazer seus próprios cálculos ajustarem a diretriz-satélite da sociedade de especialidade aos sinais captados do paciente-uno.

5) Diretriz é documento vivo em que pode pairar um ar de regulação da autoridade profissional e nivelação de experientes e não-experientes.

A possibilidade de soar como "coerção por uma autoridade" provoca um efeito teflon6 na aderência universal às diretrizes7,8 e, inevitavelmente, traz à mente 1984 de George Orwell (1903-1950)9.

A verdade, no entanto, é que o projeto da diretriz jamais relou representar teletela, novilíngua ou polícia do pensamento, à semelhança do romanceado em 19849. Até mesmo os propósitos de custo-efetividade e auditoria que poderiam servir a interesses outros que não os do paciente estão anos-luz de um sentido de invasão de privacidade.

O alerta é, entretanto, sempre válido, nada de Grande Irmão (Big Brother), Hipócrates é quem é o vigilante!

6) Diretriz é documento terceirizado à autoridade da sociedade de especialidade e à qualificação de selecionados membros da nossa "adotiva família" de especialistas. Cada opinião sobre dado e fato publicados pode aparentar uníssona, mas o consenso sobre melhor ou não-melhor evidência pode ser apenas parcial numa decisão por votação.

A sociedade de especialidade não é o Ministério da Verdade do livro 1984 que reescreve o passado; mesmo quando "[...] equívocos e incoerências da publicação original são corrigidos na medida do possível [...]", issoé informado na introdução de diretriz ACC/AHA10. Mantém-se a informação, recria-se o conhecimento, licença da ciência, prima da metanálise.

Não-melhores evidências, persistem, obviamente, boa publicação - e citação -, passíveis de uma segunda opinião e de jamais serem rotuladas como inevidência ou ironizadas como vidência. Na ciência da incerteza e arte da probabilidade, um método inferiorizado pelo p < 0,001 pode sobressair no mundo real da beira do leito perante não-beneficiários da maior chance estatística de sucesso.

7) O cardiologista brasileiro em formação escuta dois tons de aprendizado do faça,não faça, envolvendo diretriz: o tom-pater no anfiteatro e o tom-frater à beira do leito.

O tom-pater é a voz educativo-ético-legal que figura "patriotismo" e "paternalismo-algo padrasto" em fóruns científicos.

O "patriotismo" faz analogia ao nosso dístico Ordem e Progresso, expressão de crença no desenvolvimento imposto de cima para baixo e no menor valor de uma ordenação espontânea. Críticas não faltam ao positivismo. O "paternalismo-algo padrasto" reflete o poder político da sociedade de especialidade para centralizar a elaboração de diretrizes. Demanda reflexões culturais, científicas e geográficas.

O tom-pater ecoa as fronteiras da excelência tecnocientífica com uma não-liberdade teórica no trato da ciência-diretriz e da ciência-protocolo de pesquisa multicêntrico.

O tom-pater de líderes de opinião com ou sem conflitos de interesses e um forte efeito de grupo podem criar atmosfera de pouca atração para outros expressarem a experiência pessoal.

8) Já o tom-frater da beira do leito ensina que a prática da cardiologia à beira do leito não é exatamente uma "política de governo".

Aprender a inflexão adequada do tom-frater na "conversa" com cada necessidade do cotidiano beneficia-se da liberdade prática para ajustar os significados de estado da arte, diretriz e resultado de acrônimos multicêntricos ao paciente-uno.

9)Manter ativo em si um diálogo entre o tom-pater do anfiteatro e o tom-frater da beira do leito é conselho útil ao cardiologista brasileiro em formação, com inspiração na bioética.

10) Fica claro que a beira do leito convive com a impossibilidade de uma perfeita liberdade para eleger o conhecimento científico à beira do leito, independentemente dos anseios humanos do paciente-uno.

Ciência com humanização destaca-se como fundamento para o cardiologista brasileiro em formação comprometer-se a chegar à beira do leito com as mãos liberadas de uma diretriz-algema. Com elas livres, ele pode empunhar a diretriz-bússola, ao mesmo tempo que pode apontar rumos por visão direta. E assim ele segue em direção à soberania da expertise clínica, livre de pressões para acomodar o paciente na diretriz, caminhando como ser médico lado a lado com as tensões e os valores da sociedade compatriota.

Esse percurso coloca a sua impressão digital no benéfico e não-maléfico, afasta-o de qualquer possibilidade de novilíngua reducionista e contradiz a suposição de crimidéia9 em qualquer desobediência a diretrizes.

Artigo recebido em 19/08/08; revisado recebido em 11/09/08; aceito em 11/09/08

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  • Correspondência:
    Max Grinberg
    Rua Manoel Antonio Pinto, 4 / 21A - Paraisópolis
    - 05663-020, São Paulo SP - Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Fev 2009
    • Data do Fascículo
      Jan 2009

    Histórico

    • Revisado
      11 Set 2008
    • Recebido
      19 Ago 2008
    • Aceito
      11 Set 2008
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