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E(TI)cossistema da cardiologia diretriz, mecenas do estado da arte

PONTO DE VISTA

E(TI)cossistema da cardiologia diretriz, mecenas do estado da arte

Max Grinberg

Instituto do Coração do Hospital das Clínicas – FMUSP – São Paulo, SP – Brasil

Correspondência Correspondência: Max Grinberg InCor - Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44 05403-000 - São Paulo, SP - Brasil E-mail: grinberg@incor.usp.br

Palavras-chave: Bioética; diretrizes, comentário (tipo de publicação), parecer de especialista.

"... guidelines, anything less than viewed as objective and reflecting broad consensus, may be inadequate to overcome the rugged individualism inherent to physicians..." Anthony N. De Maria (Editor-in-chief Journal of the American College of Cardiology)

"...porque sabes como é difícil afirmar o que não se pode comprovar pela argumentação ou o que não tem lembrança de onde viu mencionado ou provado ..."

Moshe ben Maimon- Maimonides (1135-1204)

"... a experiência é o excelente mestre que testa antes de ministrar a lição..."

Vernon Sanders Law (1930-...)

I - Nota preliminar

Declaro que não tenho conflito de interesses, mas que tenho interesse nos conflitos das diretrizes ligados à seleção dos dados científicos, à interpretação como evidência, à classificação das recomendações e a sua implementação. É uma forma de acompanhar, pelo lado de dentro, o processo de equilíbrio entre os dois pólos do médico, a Medicina e o paciente, no ecossistema da Cardiologia; ou seja, seguir de perto a dinâmica entre o que estaria tecnicamente em conformidade com o que se pretende a melhor Medicina, à disposição da relação médico-paciente - que subtende um exercício contínuo- e a aplicação das suas unidades que melhor completariam as necessidades individuais- que subentende um exercício de momento- para que resulte a "melhor decisão" para a situação.

Facilita analisar as responsabilidades que decorrem do privilégio de estar capacitado a tomar decisões, enquanto locomotiva, e clarifica sobre direitos e deveres da postura de subordinação, enquanto vagão, mesmos trilhos, mesmas estações, mesmo destino.

Provoca reflexões sobre a questão ética da dissonância entre uma ciência de medidas objetivas-mas que lembra uma linha de produção e suscita uma cultura de controle e padronização-, e a arte da competência e julgamento- que não separa quem conhece do seu conhecimento, mas que lembra intuições e "sacadas"1.

Fornece suporte para apreciar a irrupção das perguntas que partem da beira do leito -mas não exclusivamente-, inspiradas pelo contato direto com as realidades mórbidas, e que, tornando-se hipóteses para pesquisas, geram dados científicos, respostas-fontes passíveis de retornarem à beira do leito que as provocou, como evidências valorizadas.

Ajuda a embrenhar-se na alta complexidade da biologia humana para conhecer sutilezas inerentes às matérias-primas fornecidas pelas doenças e ao trabalhado com elas, em vários níveis do conhecimento, que compõem, no âmbito das cardiopatias, o que poderíamos denominar de produto interno bruto do ecossistema da Cardiologia.

Suscita entender o quanto a beira do leito comportaria diretriz funcionando como "autoridade" para recomendação e obediência; e, apesar de incutir confiança, ela não cercear a liberdade profissional do médico; e, ademais, apreciar o quanto a mesma beira do leito sofre, não somente, com ambivalências perniciosas-retroalimentadas por certas infrações éticas-, como também, com a abdicação do processo decisório- pela má-atitude do desconhecimento e incapacitação, e que pode se materializar em negligência.

Procura a real dimensão do quanto a beira do leito é ambiente para indecisões -faço? o que faço? quando faço? como faço? E, assim, repercutir o uso de diretriz como estratégia para aperfeiçoar a inversão -que o médico já costuma praticar na beira do leito- do conceito que a humanidade "... está dividida em decision makers and abdicators... a maioria tende a se comportar como abdicators...muitos requerem a pressão estimulante do deadline para tomar decisão... com risco de impulsividade... "(Theodore Isaac Rubin, 1923-...). Na terapêutica, as respostas parecem ser mais positivas, mas na prevenção, a implementação de diretrizes tem sido negativamente influenciada pela carapuça da supra assertiva na cabeça do paciente.

Diretriz harmoniza-se ao uso de apoio à tomada de decisão, mas não admite o abuso, por quem desejoso de resolver conflitos de consciência, faz consulta de modo sistemático, a cada tema com que se defronta e ignora.

Diretriz não é onisciente e não deve transparecer ordens por si própria, como se a ela pudéssemos transferir para uma mea culpa coletiva a responsabilidade ético-profissional da recomendação, que é pessoal no âmbito do vínculo médico-paciente.

Diretriz é trabalho sério e dentro dos limites da herança da Medicina; razão bastante para que, representando a seleção da parte boa, não deva ser vista como ancoradouro para quem pretende modelos de perfeccionismo, quaisquer que eles possam ser na relação custo-risco-benefício.

Diretriz é uma prestação de serviço de redescoberta, não de reescrita da literatura; ela é oficialmente uma revisão, não é mensagem original; contudo, os acabamentos que providencia a fazem origem para mensagem sobre expectativa de desempenho e segurança, exigente, como estado da arte, do saber e liderança do médico, da eficiente decodificação pela sabedoria do corpo do paciente e do enfoque social de saúde.

Diretriz organiza o "caos" da literatura e oferece língua única numa torre de Babel; faz a todos, médicos sem fronteiras. Pela ordenação da experiência passada coletivizada, ela contribui para o fortalecimento do hábito de antever conseqüências da prática; preenche a necessidade de antecipações num labirinto, exerce a função de oráculo para dúvidas e cumpre o papel de senha para inverter acontecimentos mórbidos; mas o mundo real da beira do leito não é exatamente unilíngüe e, por isso, a experiência de fato vivenciada, que é sempre "poliglota", é um filtro interposto nos canais de conexão entre a perspectiva informada no texto e a que se percebe na beira do leito, inclusive valores morais que os cardiologistas não podem deixar de notar: "... o coração tem razões que a própria razão desconhece..." Blaise Pascal (1623-1662); em conseqüência, fica favorecido o bem discernir sobre objetivos e o bem mentalizar "end-views", em três etapas: OBSERVAÇÃO da situação clínica atual do caso; CONHECIMENTO retrospectivo de similaridades ao observado no ambiente do ecossistema da Cardiologia; JULGAMENTO do significado prospectivo da junção da OBSERVAÇÃO com o CONHECIMENTO, para o caso.

Diretriz não é algo como um kantiano (Immanuel Kant 1724-1804) Imperativo Categórico, pois se ela poderia ser admitida como um dever moral (imperativo), ela não atinge a todos, sem exceção (categórico), muito embora deva ficar sempre presente o princípio universal "faça para os outros o que gostaria que todos fizessem para todos". Ainda na linha kantiana, uma explicação para o não categórico é que se a diretriz representa a razão teórica para uma recomendação, a vontade expressa no livre-arbítrio do paciente pode determinar uma razão prática para o desacolhimento da mesma.

Sem nenhuma intenção de filosofar, apenas de passagem, diretriz pode ser analisada pela capacidade de resposta à tríade de perguntas básicas do criticismo kantiano, se formuladas à beira do leito: a) que posso saber? Diretriz poderia intentar responder que o médico pode saber sobre probabilidades de utilidade e de eficácia diagnóstica, terapêutica e preventiva; b) que devo fazer? Mentalizando o que deveria ser uma conduta universal, partir da "melhor evidência" científica, que é difusa, e chegar à "evidência melhor" clínica, individualizada segundo preceitos de liberdade, esclarecimento e reorganização, no vínculo médico-paciente; c) que posso esperar? Maximização de sucessos pelo conhecimento das boas práticas e interpretação de fracassos pelo caráter biológico do ser humano.

Diretriz é uma ferramenta plural quando se percebe que ela pode satisfazer teorizações filosóficas como o realismo de um fato que serve como ponto de referência a uma recomendação-exemplo: nível de pressão de 180x120 mmHg, obtida ao esfigmomanômetro; o idealismo da necessidade de se tomar providências para redução dos níveis tensionais; o racionalismo da imprescindível qualificação humana e técnica para o desempenho da missão e o empirismo das recomendações baseadas em pesquisas.

Se houver permissão para se construir uma analogia com o conceito de mídia, diretriz seria meio de comunicação de grande alcance, alta probabilidade de bom retorno (clínico) de investimento (científico). Diretriz representa um poder emergente que precisa ser apreciado na inter-relação com a clássica concepção de a clínica é soberana e, mais recentemente, com a noção de a clínica é soberana e a imagem poderosa2.

A análise que se segue, procurei sustentar na concepção que os dados/ evidências, pela permanente construção/desconstrução, têm tanto a robustez do "eficiente plantão científico" quanto a fragilidade de "probabilidade, não exatamente certificação clínica", para atender às boas práticas da beira do leito. Recordemos que é da essência da Medicina, as muitas angústias pelas quais o médico passa, para transformar a recomendação deveria aplicar em constatação aplicado com dever.

Procurei manter um vigilante "olho externo" para que o texto fosse o mais possível baseado nas evidências de publicações reflexivas sobre diretriz; e contivesse um fruto do ensinamento de Osler "... quanto mais olhares para a vida fora do estreito círculo do vosso trabalho, mais equipados estareis para a luta na profissão...". Qualquer sentido de rarefação da cultura geral na atmosfera do ecossistema de Cardiologia prejudica a racionalidade tecnocientífica no contexto da especialidade.

Justifico certos trechos com estilo de linguagem de prosopopéia pela visão de diálogo que precisamos ter com o conteúdo da diretriz e que é "um diálogo com colegas" com poder de influir no diálogo do eu consigo mesmo, e pela habitualidade de personificações (antromorfismos) da beira do leito como: o coração acelerou, a pressão caiu, a hipertrofia puxou o vetor para trás, a aorta cavalga o septo interventricular e o ecocardiograma não falou sobre o escore da valva mitral.

Explico algumas repetições ao longo do artigo pela chance de "leitura rotativa" que ocorre com textos que correspondem a pontos de vista. Pois estes encadeiam pensamentos, dão origem a idéias num permanente carrossel, que ao contrário de um artigo original, não precisa -ou não deve- ter a virtuosidade da rigorosa concisão. E o carrossel, nesta matéria, chama-se DIRETRIZ É PRA SER RESPEITADA NA MEDIDA CERTA; e qual é a medida parece tão impossibilitada de consenso, quanto a chance de cada cavalinho representar uma suposição de resposta e todos saírem em disparada para que se obtenha um vencedor.

Presumo que o texto possa conter certos vieses de apreciação, autoconflitos de interesses entre um eu inconscientemente parcial e um eu desejoso de ser imparcial; mas eles não serão preconceitos. Creio que, pelo menos em parte, eventuais vieses seriam motivados pelos hábitos em clínica de valvopatia; pois, as bases conceituais das condutas, nesta pioneira sub-especialidade da Cardiologia, entrelaçada com a Cirurgia Cardiovascular, estão postas à prova há décadas; tantos anos na beira do leito, enésimas randomizações pela natureza humana em seu amplo sentido, deram-lhes alto "poder do estudo", forte significância e estreitamento do intervalo de confiança.

O tempo, este cruel depurante, porque ilibado guardião da verdade, é o melhor método de evidência. E, neste aspecto, vale homenagear o Framingham Heart Study, quase sexagenário e com netos-3900 "nascidos" em 2002-, um hors-concours sedimentador de evidências.

Cronos é pai de Quiron, que criou Asclepius, herói e deus da Medicina "... de noite Asclepius aparecia em sonho aos doentes e lhes dava conselhos... na manhã seguinte, os sacerdotes coligiam as receitas e as explicavam..." Coincidências significativas!

II - Platão de plantão

Transcrevo um trecho de Banquete, escrito por Platão (428-347 AC), que trata da "dialética ascendente", subir sem cessar, etapa por etapa após uma iniciação. O objetivo é atapetar alguns passos sobre o tema diretrizes. "... passar do amor por um belo corpo, ao amor "por todos os belos corpos", depois da beleza dos corpos, à "beleza das almas", daí à "beleza existente nas ações e nas leis", depois à das ciências, até que, enfim, seu espírito fortalecido e ampliado perceba uma ciência única...".

III - Parábola de Kafka

Reproduzo uma parábola de Franz Kafka (1883-1924)3, com o intuito de provocar alguns pensamentos sobre a conciliação de diretriz à beira do leito; sugiro que o termo adversário seja decodificado como interface entre o passado-a força de trabalho que conhecemos e que pode estar sintetizada numa diretriz - e o futuro -o próximo caso; enquanto que ele seja o médico no seu afã de lidar com a beneficência/não-maleficência.

"...ele tem dois adversários: o primeiro (o conhecimento da Medicina) acossa-o por trás, da origem. O segundo bloqueia-o o caminho à frente (o paciente necessitado da expertise). Ele luta com ambos. Na verdade, o primeiro ajuda-o na luta contra o segundo (uma diretriz fornecendo a recomendação), pois quer empurrá-lo para frente, e, do mesmo modo, o segundo o auxilia na luta contra o primeiro, uma vez que o empurra para trás (a especificidade de um caso). Mas isso é assim apenas teoricamente, pois não há ali apenas os dois adversários, mas também ele mesmo (o médico entre o passado e o futuro), e quem sabe, realmente as suas intenções? (dar um sentido ao atendimento). Seu sonho, porém, é saltar fora da linha de combate (preservar a sua autonomia diante da autonomia do paciente) e ser içado por conta de sua experiência de luta, à posição de juiz (beneficência/não-maleficência do que o passado ensinou para o futuro da situação clínica) sobre os adversários que lutam entre sim..."

IV - Produto Interno Bruto

A força gravitacional da atmosfera do ecossistema da Cardiologia atrai a evolução da especialidade e a estabiliza nas suas três camadas, a assistencial, a pedagógica e a de pesquisa.

Pelo significado da gravidade, tanto força de atração quanto seriedade, cardiologistas, assim, pés no chão ciosos, dos quais os brasileiros são herdeiros de 60 anos de patrimônio da especialidade no Brasil, têm tido compromissos com biossegurança tecnocientífica, preservação do meio ambiente da relação interpessoal, decisões com menor risco de ofender a natureza humana por imprudência ou negligência, enfim, com a proteção do ecossistema da Cardiologia.

Pela responsabilidade moral, da melhor maneira que cada cardiologista possa, envolvem-se com investimentos, consumos, custos, importações e exportações e, em conseqüência, promovem o acúmulo de bens científicos e serviços cardiológicos.

Compõe-se, em conseqüência, um verdadeiro produto interno bruto da Cardiologia, uma riqueza clínica, que, em nome de uma eqüidade tecnocientífica, tem distribuição per capita de várias formas.

Vale a pena repercutir uma delas, a entidade que desempenha o papel de vetor da idéia que a otimização da prática clínica é indissociável da capacidade de bem selecionar a literatura: a diretriz. O notório destaque na comunicação médica moderna, pela personificação da excelência científica, tem tudo a ver com a obviedade do truísmo "conhecimento é poder".

V - Calor humano, umidade ética e brisa bioética

No ecossistema da Cardiologia, as diretrizes dão à beira do leito um clima seco, sem grande oscilação térmica, com tendência a frio, menos nebuloso e com poucos ventos. Todavia, a monotonia parece que não preenche as diversas necessidades da natureza humana. Por isso, o equilíbrio do ecossistema da Cardiologia exige a participação de, pelo menos, três fatores de amenização à beira do leito: o calor humano, a umidade ética e a brisa bioética. Elas ajudam a tomar decisões segundo a própria consciência, quando esta está em desacordo com evidências- e sua pretensa validade universal- e vai-se à procura de um acordo por meio de um diálogo entre Medicina, médico e paciente, que pode ser simbolizada numa triangulação à beira do leito4.

Esta tríade dá a temperança do respeito aos limites, da moderação entre o intensivo e o extensivo, do domínio e reconhecimento de inadequações ante circunstâncias à margem do que foi idealizado alhures sob rígidos controles de método "as pesquisas habitualmente utilizam populações altamente selecionadas..." 5. Esta ressalva é reforçada, por um texto uníssono, na introdução de diretrizes atualizadas: "... portanto, desvios destas diretrizes podem ser apropriados em certas circunstâncias..." 6 ou "... há circunstâncias em que o desvio destas diretrizes é apropriado..." 7. O mesmo se observa no Projeto Diretrizes da AMB/CFM: "... a relação entre qualidade de estudo e grau de recomendação é insuficiente se utilizada de maneira isolada, cabendo ao médico julgar a forma, o momento e a pertinência da utilização conforme a diretriz..." 8.

Critérios de inclusão, critérios de exclusão, limitações do estudo, editoriais, cartas ao editor transfiguram-se na beira do leito ao sabor de necessidades individuais de beneficência/não-maleficência, no ecossistema da Cardiologia. O direito à autonomia do paciente-real influencia qual o peso do benefício e qual o peso do malefício a serem postos nos pratos da balança da humanização do vínculo médico-paciente; perspectivas de malefício costumam ser plumas ante as pesadas medidas de beneficência ditas heróicas, no iminente risco à vida, e ser chumbo quando do leve niilismo de certas altas a pedido. Diretrizes podem ficar em segundo plano.

O paciente-virtual das publicações representa um personagem a cujo conflito, após ter sido trabalhado, se agregou, ao final, a previsibilidade de um fato (A funcionaria bem, B, não tão bem). O paciente-real representa um conflito que detém um fator explicativo, a ser associado à previsibilidade do paciente-virtual. As nuances do conflito a nossa frente trazem argumentos adicionais para explicar os porquês de uma tomada de decisão. Ademais, os "endpoints" que estimulam uma pesquisa, não necessariamente, são idênticos aos do paciente-real, quer na necessidade, quer na prioridade.

O bumerangue da evidência lançado com a expectativa dada pela pesquisa, quando do seu retorno, à beira do leito, pode ver-se surpreendido por uma combinação de forças (dada pela assistência) que modifica a trajetória que estava prevista acontecer em função da concepção. A natureza ensina: um dado científico, denominemos hidrogênio, um fato clínico, denominemos oxigênio; o primeiro elemento provoca incêndio, o segundo o propaga; quando combinam-se em água, invertem os efeitos.

Mas é certo que a presença de diretrizes oxigena o clima organizacional da beira do leito; elas dão fôlego e suporte contra cotidianos fatores de anóxia clínica: os muitos sufocos para se chegar a um diagnóstico, as toxicidades de terapêuticas ambivalentes e aquelas imersões terríveis em terrenos pantanosos do prognóstico.

Também é certo, por outro lado, que "respirar" diretrizes expele dióxido de carbono, o que traz uma preocupação com excessos; exageros associam-se a riscos de hipercapnia e embotamento do senso clínico. Ademais, de modo até paradoxal, a demasia pode redundar em um efeito de estufa; em conseqüência, potencializam-se eventuais desequilíbrios de irradiação da humanização na atmosfera da beira do leito, especialmente, em tempos onde se notam furos na camada de ozônio da ética.

VI - Verdade, uma busca sem fim

A pesquisa encontra "verdades", o ensino as divulga e a assistência as aplica. As aspas justificam-se pelo sentido de revelações que soam verdades por serem úteis e eficazes, entretanto, passíveis de ilimitadas formas de discussão, em sua maioria, até porque, na Medicina, ao contrário de outros ambientes, a "auto-evidência" da verdade não é a regra. Sem as aspas, o significado oposto poderia ser mentira ou erro, o que, certamente, não condiz com o espírito de boa-fé em busca da verdade em Medicina; ou a persuasão que não usar diretriz é um erro porque é verdade o que se conhece por meio dela.

São nessas três atividades de doutor-etimologicamente, quem ensina, direta ou indiretamente, o colega ou o leigo- que circula a verdade imutável, "aposentada de competições" e as "verdades de plantão", o até onde conseguimos enxergar, e que, sendo perspectivas, representam aproximações da verdade pela força momentânea da conexão com a utilidade, no ecossistema da Cardiologia. É o que difere um atrito pericárdico -eterno no significado clínico- da dose de corticosteróide que ele provoca– um provisório condicionado a uma nova conclusão de utilidade. As verdades de plantão associam-se, habitualmente, a um caráter de contingência, há uma incerteza embutida e a dualidade do ocorrer ou não ocorrer é comburente que mantém sempre acesa a chama da procura pela "melhor evidência".

A história da Cardiologia registra alguns tipos curiosos de verdade imutável: a "adotada", como o efeito Doppler (Christian Johann Doppler,1803-1853); a que encontrou o médico durante uma guerra, como os ruídos de Korotkoff (Nicolai Sergeyvich Korotkoff, 1874-1920); a "leiga" do sinal de Musset (Louis Charles Alfred de Musset, 1810-1857); a "literária" (Charles Dickens-1812-1870) da síndrome de Pickwick (proposição de Charles Sidney Burwell-1893-1967); a "aprendida com o leigo" como a de Withering (William Withering, 1741-1799); a "predestinada" como a doença de Chagas (Carlos Ribeiro Justiniano das Chagas, 1879-1934) e a monomorfa de Ebstein (Wilhelm Ebstein 1836-1912)9. Uma histórica "verdade de plantão" é o aforismo de Peter, aliás, podemos considerá-lo um emblemático antepassado de diretriz; Michel Peter (1824-1893) "inaugurou" uma recomendação classe III, quando desaconselhava a gestação em portadores de cardiopatia porque "... põe em perigo a vida da mãe... associa-se a parto prematuro ou abortamento...agrava a cardiopatia..." 9. Há, também, a verdade idealizada e ainda não realizada, meio século após, conhecida como critérios de Harken para um ideal de prótese valvar10.

O entusiasmo do momento costuma falar forte e fazer afirmações que caducam em pouco tempo: "... notável característica da terapêutica moderna..." foi escrito por William Bart Osler (1849-1919), sempre ele..., no início do século XX, algo na linha do hot-cold empathy gap11. É alerta para um sintoma da SÍNDROME DO ÚLTIMO ARTIGO PUBLICADO: um ardoroso "temos a verdade...", em lugar de um comedido " teríamos uma verdade...". As diretrizes, de alguma forma, contrapõem-se a este contexto de indiscutível superioridade da última informação, muito embora elas lidem com as mais recentes desde que preencham critérios, como "...um imperativo moral..."12; um novo dado na literatura tem contexto distinto de um novo dado clínico e, às vezes, raciocinamos em bloco, como que condicionado pelos hábitos de comunicação do dia-a-dia; uma coisa é a mobilidade de um provisório-certeza do momento clínico (glicemia várias vezes repetida para acompanhar o tratamento de uma descompensação diabética), condição sine qua non para uma conduta imediata; outra coisa é a mutabilidade de um provisório-certeza do momento-científico, por exemplo: "... estatina reduz significativamente a progressão hemodinâmica de estenose aórtica moderada e grave, um efeito que pode independer da redução do colesterol..."- Raphael Rosenhek- Circulation 7 setembro de 200413; passados nove meses, "...em vista dos estudos de Cowell e col, a prescrição de estatina não se justifica para a estenose aórtica, a não ser que por outras indicações..."- Raphael Rosenhek – NEJM 9 de junho de 200514.

As diretrizes são coletâneas das "verdades" que mais se aproximariam de excelências científicas, indícios de razão de uso e probabilidade de sucesso-classe I de recomendação- ou de razão para não uso e probabilidade de insucesso - classe III de recomendação.

As diretrizes testemunham que o progresso da Medicina se faz estabelecendo "verdades" com validade indeterminada, a infinita é minoria; cada novidade poderá "render o plantão", por admitida superioridade ou, até, poderá re-etiquetar a substituída como inverdade. Desta forma, há um ciclo de veracidade nas diretrizes. Parodiando Lewellys Barker, o chefe de clínica da Johns Hopkins Hospital que sucedeu Osler - mais uma vez ele -, em sua observação sobre o desenvolvimento tecnológico do início do século XX (esfigmomanômetro, eletrocardiograma, radiografia)9: o cardiologista que dormisse por um certo tempo acordaria assustado- e sentindo-se meio desorientado- pelas mudanças do ambiente.

A noção de sucessão de verdades no tempo, em Medicina, está intimamente ligada a um estado permanente de dúvida, atávico no médico - hipótese diagnóstica, risco cirúrgico, prognóstico reservado; graus de ceticismo são úteis propulsores de substituições vantajosas; é o estilo lápis e borracha da pesquisa, riscar e apagar, apagar e riscar, em busca da "melhor expressão". A intenção de perfeição, sabendo-se da inatingibilidade, está embutida na concepção de "melhor evidência" da diretriz. É promissor o compromisso com o tempo "... as diretrizes serão revistas anualmente..." 6.

Inclusões e exclusões em aceleradas recomposições do estado da arte reforçam que diretriz é assessoria para quem está razoavelmente atualizado no conhecimento sobre o tema e habilitado para a aplicação. O problema está no quanto completamos- ou não completamos - lacunas da diretriz com aquilo que sabemos - ou não sabemos; e, a seguir, o quanto prevalece da informação pesquisada e da complementação mentalizada. Dois exemplos ilustrativos, baseados no ACC/AHA 2006 Guidelines for the Management of Patients with Valvular Heart Disease 6. O primeiro: "... a troca da valva aórtica para portadores de estenose aórtica grave, sem sintomas, mas com resposta anormal ao exercício...", foi rebaixada de É RAZOÁVEL A APLICAÇÃO (classe IIa) para PODERIA SER CONSIDERADA (classe IIb), de 199815 para 20066; houve um impacto, embora, neste caso, pequeno, pois cada cardiologista pode, pelo conhecimento e habilitação, ter a sua própria convicção quanto à utilidade e à eficácia de avaliações funcionais. O segundo: "...a valvotomia aórtica por cateter-balão, como ponte para cirurgia em adulto com hemodinâmica instável e alto risco para troca valvar...", foi rebaixada de modo idêntico ao exemplo prévio; cada cardiologista, contudo, já deve ter mudado seu conceito sobre a beneficência/não-maleficência do método, há algum tempo, pelo acompanhamento da literatura e experiência. Em outras palavras, quem não vivencia casos complexos de estenose aórtica correu o risco de, até agosto de 2006, ao seguir uma diretriz válida por 8 anos, assessorar-se de recomendação imprópria de É RAZOÁVEL A APLICAÇÃO. Vale a ponderação: "... no contexto da rápida evolução da tecnologia, as diretrizes precisam ser dinâmicas e revistas/atualizadas com maior freqüência..." 16.

VII - Leitor de diretriz, autor na beira do leito

Diretriz é prática, substantivo e adjetivo. Três utilidades se destacam.

Utilidade 1- Guia para o que devo aplicar. Perante uma situação clínica, a diretriz funciona como uma bússola para nortear a informação a ser obtida da anamnese, o sinal capital do exame físico, a dinâmica de exames complementares, a conduta terapêutica para cuidar da manifestação e ao mesmo tempo beneficiar a sobrevida e a programação de prevenção. Do ponto de vista moral e ético, ela deve ser preferencialmente utilizada por quem tem expertise - passado, tradição - no tema "...não estão preparados para seguir as diretrizes, os médicos que não estão familiarizados com a evidência que sustenta a recomendação..."17 . Diretriz precisa ser internalizada, no sentido de nos ajudar a acrescentar um elo perdido da nossa cadeia de conhecimentos sobre o tema; diretriz não deve, em princípio, nos superproteger do desconhecimento sobre o tema.

Analogia 1A- Receita de bolo. A diretriz relaciona ingredientes e recomendações de manipulação18-20. Mas há necessidade de algo a mais para por a mão na massa. E quem aplica uma diretriz como bolo de caixinha, então, "... tende a desprezar a participação do paciente na decisão... 19; e desconsidera que "... recomendações uniformes podem ignorar necessidades especiais de um paciente..."20. Dir-se-ia que o grau de reconhecimento de uma diretriz como "monopólio da conduta" reduz-se à medida que aumenta o peso de outro tipo de bolo, a pilha de receitas assinadas e carimbadas com as mãos do comprometimento e envolvimento na beira do leito.

Analogia 1B- Trocar uma lâmpada. A diretriz oficializa certas obviedades, que são intuitivas. "... consultas pós-operatórias... para pacientes com prótese valvar, anamnese, exame físico e testes apropriados devem ser realizados na primeira avaliação ambulatorial pós-operatória..." 6. O nível de evidência é C (opinião de consenso de especialistas). Obviamente, não se justificaria um estudo randomizado que soaria como avaliar a utilidade e eficácia da seqüência: pegar uma escada, posicionar a escada debaixo da lâmpada, buscar uma lâmpada nova, subir na escada, retirar a lâmpada queimada e colocar a lâmpada nova. Não se sugere duplo cego..., nem há o receio que surja a opinião de segurar a escada e girar o mundo... É fato que "... um clínico altamente informado e treinado pode praticar o conteúdo equivalente de uma diretriz sem nunca ter, de fato, recorrido ou aderido a elas..." 20.

Analogia 1C- Arte do ventríloquo. A diretriz fala com a voz da literatura; médicos podem falar com a voz da diretriz. Ou seria, a diretriz abre a boca do médico e este fala o que (lhe) cabe? Em situação de mau resultado clínico, culpar a recomendação da diretriz é como culpar o boneco.

Analogia 1D- Efeito Peter Pan. A diretriz, caso tão somente uma etiqueta a ser colada, com envolvimento e comprometimento superficiais, inibe tanto a plena responsabilidade, quanto o crescimento da capacitação clínica "... médicos preocupam-se porque suas atuações com os pacientes, pioram cada vez mais por conta de um processo padronizado e automatizado..." 21. Bertrand Russell (1872-1970) legou: " a aceitação passiva da sabedoria do professor é racional porque o mestre sabe mais... todavia, o hábito da aceitação passiva é desastrosa num futuro, pois faz com que se procure e aceite um líder qualquer, apenas por estar nesta posição..." .

Analogia 1E- Comportamento Flauta Mágica. A diretriz pode ser o som que "elimina os ratos" ou o som que "faz desaparecer as crianças", dependendo de variáveis intrapessoais e interpessoais. A música da beira do leito pode não ser a mesma da beira da mesa do administrador de saúde.

Analogia 1F- Efeito Camaleão. A diretriz precisa se integrar a circunstâncias clínicas e a aspectos ambientais determinados pelo sistema de saúde "...há um vácuo entre aspectos científicos da Medicina e a prática clínica..." 17. A analogia vai além deste folclórico mimetismo pela troca da pele, ela inclui a flexibilidade de modo mais amplo, com aspectos de liberdade, quando se recorda que o camaleão tem movimentação independente dos olhos. Osler, novamente:"... educar os olhos para observar os fatos demora, mas começa com o paciente, continua com o paciente e termina com o paciente..."

Utilidade 2 - Guia para uma visão de conjunto sintética sobre o tema. A diretriz facilita apreciar a parte emersa do iceberg.

Utilidade 3 - Guia para o aprofundamento na literatura. A diretriz orienta a seleção dos artigos que revelam a parte submersa do iceberg.

VIII - Nomenclatura

• Dado científico - Resultado de pesquisa científica. Constitui componente maior do produto interno bruto no ecossistema da Cardiologia. Mais do que "um original", o dado científico precisa ser "um bem universal", pois, mais do que a novidade científica, o que vale é a reprodutibilidade e a segurança.

• Fato clínico - Ocorrência cuja existência pode ser constatada de modo indiscutível; muitos poderiam dispensar pesquisa. O que se segue foi publicado no British Medical Journal22, com o seguinte resumo: objetivo: determinar se pára-quedas são eficazes para prevenir grandes traumatismos relacionados à atração gravitacional; Estruturação: revisão sistemática de estudos randomizados controlados; Fonte de dados: Medline, Web of Science, Embase, Cochrane Library, sites da internet e listas de citações; Seleção de estudo: estudos sobre o uso de pára-quedas durante queda livre; Pontos de interesse: morte ou grande traumatismo, definido como lesão com escore de gravidade >15; resultados: Não identificamos nenhum estudo randomizado e controlado sobre intervenção com pára-quedas; Conclusão: assim como muitas intervenções que objetivam prevenir doenças, a eficácia de pára-quedas não foi submetida a uma rigorosa avaliação por estudos randomizados controlados. Adeptos da Medicina baseada em evidências têm criticado a adoção de intervenções que são avaliadas, tão somente, por dados observacionais. Pensamos que haveria benefício se os protagonistas mais radicais da Medicina baseada em evidências organizassem e participassem de um estudo com pára-quedas, duplo cego, randomizado, cruzado e controlado por placebo.

Cabe o alerta: "... a crença popular que somente estudos randomizados controlados produzem resultados confiáveis e que todos os estudos observacionais são ilusões, presta um desserviço à assistência ao paciente e à educação dos profissionais da saúde..." 23.

• Evidência - Interpretação e qualificação do dado científico, é um atributo. Ao juízo da constatação científica (dado) agrega-se um juízo de valor; os autores concluem e publicam passando pelo filtro da editoria; a partir dos dados, o poder da sociedade de especialidade, fundamentado por meio de um comitê, analisa o status de aproximação da verdade, por uma mescla de PROFETISMO (no sentido de um bem, um valor por vir a ser bom para o paciente) e DOGMATISMO (no sentido de a verdade a ser oferecida ao paciente), cuja reunião no âmbito da ciência perde os significados corriqueiros - e não bem vistos na área médica - de cada parcela. O filósofo humanista André Comte-Sponville (1952-....) define PROFETISMO+DOGMATISMO como UTOPIA, não no conceito como algo irrealizável, porque fundamentada numa concepção que julgamos fantasiosa, mas na de uma outra escola filosófica que enxerga como algo com potencialidade de se realizar, porque é plausível dar crédito à concepção.

Não existe "melhor" evidência objetiva, há uma escolha (embute um grau de subjetivismo) que se pretende a melhor, sob certas premissas, para "se reintegrar" à beira do leito, a cada novo caso; como, a qualquer momento, podemos não concordar com a qualificação certificada pelo comitê, não se trata de evidência-verdade absoluta. Uma definição perspicaz é: "... evidência é um status conferido a partir de um fato; ela reflete, pelo menos em parte, que este julgamento subjetivo e social do fato eleva a probabilidade de uma dada conclusão ser verdadeira... assim, evidência não é simplesmente um dado de pesquisa ou um fato, mas o resultante de algumas interpretações que servem a necessidades sociais e filosóficas..." 24.

• Diretriz - Recomendação estruturada que ascende de dados científicos, "re-produzidos" como evidências e transcende as limitações individuais na figura de um comitê, que aspira elaborar uma excelência, o melhor que se pode almejar com as melhores evidências. Constitui uma divulgação, colega para colega, estipulada e delegada a uma sociedade de especialidades - o mais comum-, uma identidade clínica, articulação de valores "assegurada" de forma apriorística, espécie de franquia de uma autoridade - digna de respeito por uma razão científica, mas sem o sentido de coerção- coletiva com licença de uso liberada; tendo nas mãos como que uma autorização para crer que é verdade, os membros da sociedade de especialidade, entretanto, por suas devidas responsabilidades, conservam o seu livre-arbítrio quanto ao dado científico, até porque a "obediência científica" não é estatutária. Mas há vigilância: "... uma vez a diretriz adotada pelo Serviço, espera-se que cada médico pratique a aderência..." 25 e maneiras de pensar, como "... sem as devidas razões, o desvio da aderência deveria determinar ação corretiva..." ou "... latitude para o exercício de um julgamento profissional..." ou "... substituindo uma vaga linguagem de "padrão de cuidados" por uma terminologia contratual explícita, tal como "expectativas de desempenho" e incorporando diretrizes selecionadas e ajustadas diretamente à rotina dos médicos, pode resultar num equilíbrio entre a preocupação pública com a qualidade do atendimento e o interesse do médico num justo processo de revisão sobre avaliação do desempenho de um médico por outros médicos, para assegurar a qualidade de atendimento na instituição (peer review)..." 25.

A força e o valor das diretrizes para um consensual clínico estão na melhor aproximação possível ao útil e eficaz, na crítica e hierarquia de opções, na atualização científica e clareza clínica, frente ao contraditório da literatura; a estratificação das recomendações em críticas e não críticas parece ser útil no âmbito da relação custo-risco-benefício26.

Aspecto relevante é a influência cultural, mais habitualmente da língua na decodificação da mensagem. Como bem captar e aplicar is reasonable, may be considered, might be considered? e "traduzir" na beira do leito para vou fazer & não vou fazer, é provável que eu faça & é provável que eu não faça.

A diretriz não faz o médico existir, o médico é quem dá existência à diretriz. E esta passa a participar da vida profissional de uma maneira que vira a galinha dos ovos de ouro, mas sem revelar quem nasceu primeiro. Diretriz não é exatamente uma exaltação à ciência, ela vincula-se ao estado da arte em Medicina e pelo algo a mais que assim decorre, requer uma leitura clínica; ou seja, diretriz não é guia para quem não tem visão clínica ou intérprete para quem é surdo-mudo com o paciente. Diretriz não é, exatamente, uma saída para se construir uma imagem profissional estereotipada. Os triângulos, pela interdependência dos vértices, ajudam a perceber as múltiplas faces do que se poderia admitir como uma atitude humana perante a doença4: há a resultante do "diálogo" entre a recomendação da Medicina (diretriz) e as preferências e percepções do paciente, há a resultante do "diálogo" entre a recomendação da Medicina (diretriz) e as responsabilidades éticas, morais e legais do médico e há a resultante do "diálogo" entre as preferências e percepções do paciente e as responsabilidades éticas, morais e legais do médico. Cada "diálogo" tem suas "evidências" sobre beneficência/não-maleficência/autonomia e assim "... lidar com pacientes deveria ser visto mais como a cooperação de um time de especialistas (médico, enfermeiro, pessoal de laboratório, paciente, família, etc...) do que o médico atirar uma bala mágica de competência autoritária... proteger a liberdade e igualdade desta cooperação tornar-se-ia o objetivo clínico principal em níveis tanto individual quanto institucional..." 27.

• Conflitos de interesse - Condições onde o julgamento sobre um interesse primário tem a potencialidade de ser influenciado de modo indevido por um interesse secundário, ligado a aspecto econômico, ou mesmo, pessoal, social e científico28.

• Publicação selecionada - Artigo de revista científica que passou pelo controle de qualidade do comitê de elaboração de uma diretriz e foi incluída nas referências. Representa um tombamento pelo valor científico, na nossa especialidade, para ficar sob a guarda do ecossistema da Cardiologia. "Fazer parte da turma" tão seleta bendiz e, ter sido depurado e selecionado é ponto alto do curriculum de uma publicação –sensação de um Oscar de melhor roteiro ou de um Nobel da literatura médica; a homenagem amplia a definição de "... primariamente, um meio de comunicação científica, informação para colegas, prova de competência acadêmica, critério para promoção acadêmica, argumento para financiamentos e fundamento de prestígio de Universidades..." 12. Sem esquecer o taxativo acadêmico publique ou morra.

Cada artigo é uma fonte primária enquanto nas mãos do(s) seu(s) autor(es), o que inclui a publicação dos dados e a interpretação feita por quem os obteve; a leitura pela comunidade é uma re-interpretação, interpretação sobre a interpretação, de fato acontecida no original ou sobre o não interpretado dos dados, que, após classificar e dar o mérito, pode se tornar uma fonte secundária numa revisão, numa atualização, num ponto de vista, numa discussão de artigo afim, ou numa diretriz. Como costuma acontecer num bom livro, é o primeiro parágrafo - a fonte primária - e o último parágrafo - a reprodutibilidade - que antecipam a qualidade do texto das diretrizes.

• Aspectos da linguagem coloquial - Caberia falar: não há dado científico disponível, mas não caberia falar: não há evidência disponível. A disponibilidade refere-se à pesquisa que gera dados e não à interpretação dos mesmos, porque qualquer dado, se disponível, pode ser qualificado como evidência- boa ou má, positiva ou negativa. Do mesmo modo, não caberia falar não há diretriz disponível, a não ser literalmente, ou seja não houve a elaboração por um comitê; não caberia expressar-se significando que não existe dado científico que poderia fundamentar e orientar. Um dado científico não nasce diretriz, primeiro, ele tem que se tornar fonte; segundo, ser analisado como evidência; terceiro, adquirir uma nova forma, a de aceitação ou de recusa ao status de recomendação.

IX - Diretriz e compromisso moral

Diretriz não é um décimo-primeiro mandamento; podemos vê-la como um ideal compactado de dados científicos e do valor (evidência) dos mesmos ou como uma guia sobre o que poderia nos faltar para realizar uma conduta. Se entendermos como um ideal, admitiríamos dever e sujeição, mas se for como guia, dispensar-nos-íamos da submissão.

O que poderia nos faltar pode ser a objetividade de um efeito farmacológico ou pode ser a subjetividade de percepções e preferências do paciente. Deduz-se que se diretriz pode não completar uma ordenação à beira do leito, quando, por exemplo, um paciente privilegia o passional em detrimento de uma fundamentação intelectual, ela, certamente, conscientiza sobre o que é mais para pensar e aponta possibilidades de estratégias; até porque, sem a concepção de uma assistência à beira do leito, para que haveria diretriz?

Mas o que pode completar a ordenação, propõe-se a ser o porta-voz de um consórcio científico que oferece um produto de educação continuada com matéria-prima planetária (somos médicos sem fronteiras), produzido, embalado e etiquetado em determinadas comunidades; o direito a uma cota por todos nós remonta a vinte e cinco séculos, adquirido e eternizado no racional do Juramento de Hipócrates: "... ensinar-lhes esta arte, se eles tiverem necessidade de aprendê-la... fazer participar dos preceitos, das lições e de todo o resto do ensino...". Deduz-se que diretriz tem raízes numa arquetípica fraternidade da Medicina.

Diretriz subentende consciência sobre legitimidade dos dados, raciocínios sobre a reprodutibilidade dos mesmos e honestidade de propósito sobre o que seria aconselhável e o que seria desaconselhável. Deduz-se que diretriz é um "sistema aberto", com eixo em renovada reflexão sobre probabilidades contraditórias e aristotélica ordenação de tendências agonistas e antagonistas coexistentes no campus da literatura médica.

Diretriz concentra forte compromisso moral; na elaboração, em função do processo de seleção dos dados; na aplicação, na medida que, a intenção de uso do que é um bem difuso da Medicina ("a melhor evidência" na literatura) não deve destoar do que seria, de fato, bom para o paciente, que é específico ("a evidência melhor" na beira do leito), de acordo com o intuído no binômio beneficência/não-maleficência.

Um conceito que, desde os primórdios da formação, vai batendo de porta em porta de cada acadêmico de Medicina, é que a disponibilidade técnica não é sinônima de indicação clínica- depois da formatura, também é útil ir batendo de médico em médico-; ter ao alcance uma prótese valvar ainda na embalagem, presunção de "melhor hemodinâmica", não é, isoladamente, argumento para substituir uma valva nativa anormal, sabidamente em "pior hemodinâmica"; e não ter algo disponível não é antônimo- a ausência de expertise para realizar valvoplastia mitral por cateter-balão não a retira do leque de opções a serem comentadas, pelo médico que pratica a autonomia, com o portador de estenose mitral. Acresce que a relevância dos aspectos morais de uma decisão é proporcional ao grau de risco de cada opção para alcançar o benefício e/ou evitar o malefício. Deduz-se que o empenho pela comunhão de interesses na relação médico-paciente é estímulo inconteste para que uma coletiva "melhor evidência" na literatura ajuste-se a uma individualizada "evidência melhor" na beira do leito.

Diretriz é um contrato de reciprocidade entre colegas; por meio de um acordo tácito de vontades, o médico fornece uma situação clínica e o comitê de elaboração oferece uma recomendação certificada como confiável. Enquadra-se em "...formulação de uma clara questão clínica a partir do paciente... busca na literatura por artigos relevantes... avaliação crítica da evidência ... seleção da melhor evidência para a decisão clínica... vinculação da evidência com experiência clínica, conhecimento e prática... implementação dos achados úteis na prática clínica... " 29. Seja uma convenção "...ecocardiografia é recomendada anualmente para portadores de estenose mitral assintomáticos e com área valvar mitral >1,5 cm²..." 6, seja um imperativo ""... valvotomia mitral por cateter-balão não está indicada para portadores de estenose mitral discreta..." 6, há um capital compromisso quanto ao hipocrático "...a ninguém darei um conselho que induza à perda...". Deduz-se que diretriz incorpora um simbolismo de prestação de serviço com zelo e prudência.

Acontece que por ser uma troca, impõe-se um endosso: averiguar se no lugar do comitê de elaboração, usufruindo liberdade, faríamos - qualquer cardiologista que conheça cardiopata, esteja ele na vida acadêmica ou não - o mesmo processo que deu o produto final que estamos aceitando. A resposta é complexa. Deduz-se que ela necessita ser decomposta.

Na fase de garimpagem dos dados científicos, poderíamos explorar os mesmos veios da mina literatura e fazer idênticas seleções e classificações de pepitas- restrições não costumam ser de natureza intelectual, elas atendem por dias de "apenas" 24 horas. Deduz-se que esta primeira metade da resposta tem grande chance de ser, conceitualmente: sim, faríamos um processo análogo.

A resposta na fase de habilitação de dados científicos como evidências, onde há escolha dos que mais se aproximariam da verdade (a intervenção útil e eficaz), tem muita chance de ser ambígua; as tarefas de ranquear as evidências e hegemonizar a "melhor evidência" estão sujeitas a um julgamento subjetivo e, portanto, estão longe de serem neutras. Deduz-se que dar um sim, nesta segunda parte, associa-se a um alto grau de transferência de confiança para o comitê padrinho (pater, padrão).

Havendo o duplo sim, dá-se a completude da anuência e nela projetamos a perspectiva do melhor resultado. Entrevemos que um eventual resultado distinto ao esperado independeria de má-prática. Um dos ângulos da concepção da diretriz é justamente ser blindagem, na medida do possível, tanto da imprudência, porque, a seguindo, não estaríamos fazendo algo que a maioria também não faz, quanto da negligência, porque não deixaríamos de estar fazendo algo que a maioria faz; logo, a diretriz representaria guardiã da "...atuação em benefício do paciente..." (art. 6º do Código de Ética Médica). Mas, há o outro lado da beira do leito: a aderência a uma diretriz pode se tornar uma imprudência, quando a sua beneficência não é passada pelo filtro da não-maleficência; um exemplo em clínica de válvula: suponhamos que tenha havido a aderência à recomendação "... uma bioprótese mitral está indicada para o paciente que não seguirá recomendação de anticoagulante, está incapacitado ou tem contra-indicação ao uso..." (classe I de recomendação em seleção de prótese mitral) 6; imediatamente após o implante da bioprótese selecionada porque o paciente não tem perfil para anticoagulação, precisa haver cuidado para não aderir a "... durante os primeiros três meses da troca mitral por bioprótese é razoável o uso de varfarina..." (classe IIa de recomendação em conduta antitrombótica perante prótese valvar)6. Deduz-se que a padronização por diretriz, como ideologia, precisa ter as interdependências legitimadas como real interesse da comunidade.

Para bem acomodar o resultado intuído, diretriz não deve ser encarada como uma "bula" da beira do leito, ou uma "cola" para o exame do paciente; para quem não leu um mínimo de artigos das referências, a diretriz não é muito mais do que uma caricatura da literatura; aliás, quando a diretriz não é lida como revelando segredos, ela contribui para o sucesso profissional na representação de uma segunda leitura, de acordo com a concepção que "...por mais estranho que pareça, ninguém pode ler um livro, só reler..." (Wladimir Nabokov, 1899-1977), que nos ensina que a primeira leitura deixa um sedimento, marca do esforço de compreender, e que, quando estivermos diante da necessidade, recuperamos a lembrança armazenada, um search-copy-paste na mente, que provoca a segunda leitura, mais imediatista -o rever a literatura para bem nos certificarmos.

É essencial, o médico que pegará carona na diretriz para desembarcar na beira do leito, não fazê-lo sem se certificar do itinerário no guichê da experiência; "agora duplamente informado" e esclarecido por sua própria sensibilidade clínica, ele pode satisfazer mais uma sabedoria de Osler - mais uma e ele vira co-autor...: "... a falta de treino pessoal sistemático leva à má-aplicação...". Para tudo o mais, existe a diretriz cartão de crédito, inclusive admitindo um esforço de desenvolver "... sistemas de diretriz interpretáveis por computador voltados para os não especialistas..." 30. Faz lembrar publicações pioneiras da ciência, séculos atrás, que eram anagramas que preservavam o crédito da autoria, mas só inteligíveis por quem compartilhasse a senha.

Não soa ético, pretendermo-nos poli-especializados, simplesmente, por dispor de acesso a uma coleção de diretrizes. Deduz-se que diretriz não é para ser usada como EPI (Equipamento de Proteção Individual) por quem não tem intimidade com o assunto, ao contrário do que muitos acham. Uma diretriz pode até nos dar a sensação de estarmos livres e sob proteção; mas usar "luvas e óculos", sem um adequado ritual de passagem, compromete o tato fino e a acuidade visual, e, em decorrência, corre-se o risco de ser uma liberdade protegida dentro de um labirinto. E nele enredado, enfrentar acareações com uma sucessão de realidades que não conhecemos, e, por isso, entrar em contradições. É algo como "não sustentar amanhã a inverdade que se disse hoje", pois quem não tem como fazer narrativas com suas próprias experiências, tanto mais "teoria pela prática" quanto mais elas forem caleidoscópicas, provavelmente, não se sente à vontade para interpretar, com a autenticidade do conhecimento de causa, o personagem que "proclama diretriz", à beira do leito. Em situações distantes das inter-relações clínicas do nosso dia-a-dia, aplicar uma diretriz qual receita de bolo, salvo em "extrema solidão de colegas" onde se torna uma tábua de salvação, beira, eticamente, a uma síndrome de Munchausen. Hipócrates diria a Osler: - Esqueceram que juraram "...aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento..." e Osler retrucaria: "...a falta de treino sistemático pode nos colocar aos olhos do público no mesmo nível que os charlatões...".

Se há a interpretação de um dado como o mais, haverá, por complementaridade, aquele o menos, não necessariamente inaplicável; se há a melhor evidência, haverá, por pressuposto, a pior, esta não necessariamente ruim; as comparações são feitas em relação a referências não absolutas, elas não são como quando se usa placebo; por isso, evidência não deve admitir nenhuma apreciação fora da representação de significar a probabilidade - e não a veracidade -, que recomenda (classe I) ou desaconselha (classe III). Ou seja, o dicionário da bioestatística respeita a ordem alfabética: probabilidade (evidência mais próxima do sucesso) sempre antecede veracidade (sucesso evidenciado).

Os ingleses Lockey, Crewdson e Davies do London Helicopter Emergency Medical Service31 analisaram uma situação de alta complexidade biopsicossocial, a parada cardíaca; eles observaram que 13(19%) dos 68 sobreviventes de parada cardíaca pós-traumatismo, situação de péssimo prognóstico, e onde muitos consideram a ressuscitação como ato fútil, contradisseram diretrizes recentemente publicadas; a conclusão foi: "... a aderência às diretrizes pode deixar de lado um número de pacientes com chance de sobrevida...".

E como ficam as "piores que a melhor evidência"? O que representam aqueles dados que, compondo o produto interno bruto da Cardiologia, e longe de serem entulho científico, adquiriram o status de evidência em grau inferior na escala da valorização científica, segundo os critérios convencionados? Elas formam uma espécie de vice-evidência da "melhor" evidência. Assim sendo, não se pode desconsiderar a legitimidade deles para assumir primazia, em impedimentos da evidência-titular; um forte argumento a favor da visão que "piores que a melhor evidência" não são antíteses de beneficência, é que sabemos o quanto é improvável que todos os pacientes com mesma moléstia requeiram sempre a mesma prescrição32. Deduz-se que recomendações classes tanto I, quanto II podem determinar resultados semelhantes na beira do leito, independente do grau de probabilidade intuído da fonte científica.

Levanta-se, então, a questão: "Melhor" evidência para quem? Se for para o comitê de elaboração da diretriz, não é o suficiente; se for para a satisfação acadêmica de um conceito fisiopatológico, não é o suficiente; se for para a visão administrativa de recomposição da relação custo-benefício, não é o suficiente; se for para o médico que irá aplicar, não é o suficiente; se for para a beneficência/não-maleficência pós-consentimento livre e esclarecido do paciente, é o suficiente. Deduz-se que o feedback avalista "evidência da diretriz"- resultado da beira do leito" depende da multiplicidade de série de casos, pois, "... dados de observação podem cooperar com os estudos randomizados no objetivo de confirmar ou não se a mesma eficiência obtida perante condições controladas ocorre na prática terapêutica rotineira..." 33, curiosamente, um método científico inferior na concepção das evidências. "Verdades de plantão" sobre prevenção têm notórias diferenças em relação ao timing para apreciação da utilidade e da eficácia do que as sobre terapêutica. Esta tem a proposição- abertura da valva mitral por uma intervenção face a um edema agudo de pulmão-, a execução- obtenção de área valvar mitral de 2,1 cm² por valvoplastia por cateter-balão- e o resultado- classe funcional I- em curto prazos; já em relação à epidemiologia clínica e à bioestatística e seus desdobramentos na Medicina Baseada em Evidências, os efeitos benéficos conceituais de uma redução (qualitativa e quantitativa) à exposição da hipercolesterolemia são menos explícitos na história da vida real de um "quase doente". Esta constatação, vinte anos após a frase de efeito "... um dimmer reduz a luz quando saímos do compartimento plasmático e entramos na parede arterial..." 34, relembra o ensinamento do epidemiologista Geoffrey Rose, famoso por formular que a concepção doentes x não doentes (medicar ou observar) é uma lógica clínica dicotômica que não se aplica no âmbito populacional, onde há um continuum subclínico: "... numa política de massa populacional, um pequeno benefício para cada um pode tornar-se inesperadamente grande..." 35; e alerta que o caráter de beneficência da mudança de hábitos não pode ser visto desmembrado de "... a doença é um freio no cotidiano... a Medicina precisa inserir-se no contexto e nos valores dos freios de cada vida..." 36.

Parece que se concretiza um paradoxo com implicações éticas: "... não há evidência aceitável segundo a medicina baseada em evidência que a medicina baseada em evidência é um caminho para a verdade... que randomização, quando tem discrepância com outro método, seja superior, é uma crença, não uma evidência; afinal a divergência entre trabalhos é a regra, não é a exceção, se não, porque haveria necessidade de revisão sistemática, se tudo fosse idêntico?..."5. Recorde-se que uma das expressões mais comuns em artigos da literatura cardiológica é "conflicting results", justificativa para novas pesquisas. Deduz-se que é válido examinar o contexto das diretrizes sob o ângulo da cultura médica atual, recorrendo a uma metonímia ligada a Caius Mecenas, que foi um cidadão romano da época imperial que ajudou a autocracia a satisfazer os interesses da aristocracia: a diretriz, pela determinação de colecionar um acervo valioso, corresponde a mecenas do estado da arte, no ecossistema da Cardiologia?

X - Diretricentrismo: fenômeno cultural da época

Há cerca de 15 anos, diretrizes imigraram para o ecossistema da Cardiologia; na chegada ao Brasil, mostravam competência internacional para um vini, vidi, vince quanto a selecionar & interpretar & organizar.

Elas não olvidavam as dificuldades representadas pela noção que o desencaixar do dado do "receptor científico" não era garantia do subseqüente encaixe, da agora evidência, de modo aveludado, no "receptor paciente" em função de: a) uma visão não muito realista - não habilidosa - da beira do leito "... a proclamada superioridade hemodinâmica da bioprótese stentless não necessariamente traduz-se em melhor evolução clínica..." 37; b) ambigüidade da recomendação; c) ausência de dicas de aplicação; d) falta de estímulo à educação do paciente.

No formulário de imigração ficou anotada a identidade da diretriz: recomendação de comitê especializado, baseada em dados científicos qualificados, para o zelo e prudência na condução de circunstâncias clínicas específicas. O parecer de admissão foi: deverá contribuir para um aperfeiçoamento cultural, afastar do julgamento médico a confiança não conferida e aproximar um suporte estruturado e responsável.

A aderência às diretrizes defrontou-se com o efeito teflon, enquanto "... alguns clínicos acharam as diretrizes úteis, outros as descreveram como anti-inteligentes..." 20. Um clima de ambivalência de postura determinou algo como atestado de bons antecedentes da conduta expedida pela experiência x atestado de bons antecedentes da conduta expedido por um comitê.

Por que? Porque sempre hábitos clínicos foram fortes, retroalimentados por se estar seguro com o que faz, e protegidos por um sentimento de veneração da antiguidade, como nos lembra mestre Décourt 38, porque lidar com mudanças depende do ritmo de cada um; porque sempre há clima para uma versão fantasista; porque sempre temem-se imposições- realidades trabalhadas com alto grau de liberdade poderiam ditar normas e depois, sob um clima de restrição do grau de liberdade, cada norma ditaria a realidade. As preocupações com atitudes éticas são óbvias: "... a ética deve valorizar o uso do melhor disponível na pesquisa médica, mas a ética de uma atitude não pode restringir-se à melhor evidência médica..." 39.

Receios? Que um movimento de higienização das impurezas da literatura, servisse de pretexto para uma interferência autoritária das classes de evidência nas tradições hipocráticas e oslerianas de lidar com os conflitos; que, assim, provocasse um controle centralizado nas relações de força do ecossistema da Cardiologia e, pela deformação de raízes históricas, ou deturpação de realidades, trouxesse uma conseqüente ameaça de ostracismo para a medicina convencional; que o congelamento do conhecimento numa diretriz desvalorizasse certas habilidades classicamente consideradas imprescindíveis ao ser médico, como o ceticismo com sua dúvida permanente e a autocrítica com sua pedagogia; que exaltar a superioridade da diretriz seria depreciar a própria experiência, ela a verdade e esta um sonho, algo como desapareceriam os médicos, substituídos por profissionais que medicam.

Benefícios? Anti-imprudência & anti-negligência que convêm na decisão clínica, uma ligação menos abstrata com princípios seculares, educação individual ou de grupos e guia para custeio, ou seja, uma equação favorável de custo-risco-benefício.

Malefícios? Semear uma postura conformista e complacente, postar-se na contra-mão da conscientização sobre o indutivo/dedutivo no exercício da Medicina, servir de instrumento a intenções "subclínicas" de restrição do exercício profissional e representar mais uma espada do que um escudo40 perante tribunais.

Perspectivas? Que seleção, análise, construção e incorporação ganhassem receptividade crescente e que houvesse uma apreciação como tecelã de estratégias clínicas; que o convívio provocasse gradual amenização da imagem de "ordens a cumprir", pois esta carrega a pressuposição que um estado de doença somente deveria -ou poderia- ser controlado, parcial ou totalmente, segundo a razão de suas recomendações; e assim, tudo o mais poderia ser uma iatrogenia. E não devemos supor que diretriz "... que não resolve todas as incertezas da prática médica habitual e deveria ser vista como apenas uma estratégia em prol da qualidade do atendimento à saúde..." 41, seja imunização ativa contra iatrogenia, pois uma coisa é ela formar os anticorpos contra má-prática pelo conhecimento que proporciona, e outra coisa é o quanto a atitude indevida frente ao paciente possa multiplicar antígenos.

Fundamentadas na ideologia da Medicina Baseada em Evidências, as diretrizes:

1. Progressivamente, romperam "fronteiras mentais"; aqui e ali, superaram um clima de indiferença e de produto de segunda mão- enquanto revisão- e expandiram-se num caminho ascendente: dado científico-evidência-resultado clínico; conquistaram simpatizantes da concepção de que é um bem que, aprovar e aplicar, é uma efervescente obrigação; incrustaram-se na consciência clínica e passaram a influenciar a geração dos médicos com números mais altos de CRM, desde o internato, aquela que não conheceu alfaiate e, acostumada ao prêt-à-porter, precisa ser alertada sobre o "prêt-à-penser" das diretrizes.

Não obstante, provocaram adversários desta postura moral de dever, que lhes atribuíram um caráter místico, mais "...fé num dogma que confunde evidência com verdade..."12 do que razão por meio de comprovações; mesmo considerando aqueles que costumam manifestar uma compulsiva postura de independência da opinião prevalente, parece que rejeições decorrem de uma pretensiosa exaltação da auto-avaliação de superioridade da adjetivação Baseada em Evidências em relação à convencional, na, talvez não adjetivável, Medicina, pois sabedoria é apenas sabedoria.

No decorrer destes 3 lustros, a literatura colecionou inúmeros lamentos da sub-utilização das diretrizes "... elas são mais apregoadas do que seguidas..." 20; pelo tom de muitos artigos, apenas um modesto efeito foi obtido com sugestões para a elevação do grau de aderência42-44; pelos resultados de muitos malabarismos pró-adesão, a necessidade da rede sob o trapézio persiste, e bem estendida.

Um certo caráter de "Diário Oficial" da literatura científica do ecossistema da Cardiologia suscita controvérsias. O governo da Noruega32, por exemplo, considerou insuficiente a postagem das diretrizes para mudar hábitos de prescrição e reduzir custos; uma atitude proativa por meio de visitas organizadas aos médicos foi frustrante: 83% dos pacientes dos médicos visitados não receberam tiazídico para hipertensão arterial, conforme as diretrizes promovidas pessoalmente, embora tivesse sido um índice melhor do que os 89% do grupo controle com apenas postagem das diretrizes e que se associou a um "trashing the envelope unopened".

2. Realçadas pelo louvor aos avanços da ciência e da tecnologia e pelo temor às vulnerabilidades deles decorrentes, elas passaram a ser vistas como um valor de vanguarda-um futuro cada vez mais seguro-e salvaguarda de um presente mais científico do que o passado;

3. Incorporadas à imagem de modernidade e referenciadas ao progresso, elas se otimizaram como tutores, os que sabem o que é melhor, destacando do protocolo de intenções: inquestionável idoneidade na elaboração, judiciosa interpretação do conteúdo das referências e objetiva contribuição para a saúde das pessoas.

4. Legitimaram-se em parceiras, conselheiras e pedagogas, com altruísmo e confiança. Bancos de dados facilitaram a comunicação: " Guidelines Finder da inglesa The National Library for Health provê um índice com mais de 1.500 diretrizes, atualizados semanalmente, com facilidade para download ..." 45.

5. Foram adotadas pela intelligentsia com a espontaneidade da pós-reflexão crítica; mas também sob outras formas, que, ao contrário, suscitam reflexões críticas, por conta de conflitos de interesses; conseguiram patrocinadores e propagadores recomendando a coleção de "uma enciclopédia prática";

6. Assimilaram-se ao conceito de boa árvore, bons frutos e articularam-se com decisões tanto da beira do leito - árvore por árvore - quanto da beira da mesa do administrador da saúde - a floresta;

7. Preocuparam-se em se apresentar clinicamente amigáveis, para facilitar o encontro clínico, e cientificamente concisas, para prover o reencontro em meio aos labirintos da literatura;

8. Promoveram uma remodelação curricular com realce para as evidências (dados interpretados);

9. Preencheram lacunas do espaço da formação universitária e do tempo para atualização profissional, estimularam capacidades para um próximo passo consciente e catalisaram a interdisciplinaridade; como ponto de honra, esforçaram-se para deixar bem claro o que é evidência e o que é opinião como fundamento para dar respostas na beira do leito.

10. Sofreram duras críticas, por tabela, por uma vigilância crítica sobre vieses na base de sustentação, a respeito de: modificações em pesquisas durante a execução, arbitrariedade de "endpoints"; discrepâncias entre significado estatístico e clínico "... não se deve confundir significância estatística e importância clínica... pertinência biológica, o teste do poder da consideração teórica e a força de evidências correlatas são mais importantes do que o valor de p... a idéia equivocada que um único número pode capturar tanto os efeitos tardios de um experimento quanto o significado de um único resultado.." 46; não-publicação de resultados desfavoráveis; efeitos da polifarmácia e conflitos de interesses 47. Elas não puderam eliminar a impressão reducionista de certo "realismo mágico" - classe I x classe II I-, de ocultismo bem imposto - classe IIa x classe IIb -, e, até mesmo, de uma literatura médica "em compotas".

XI - Segunda opinião de bolso

As diretrizes desenvolveram um processo de inclusão (trial-guideline-education process, como batizado por Fye, há cerca de 3 anos)47, com alicerces na verdade de plantão (renovada de tempos em tempos) e na confiança retroalimentada na rotina. Assim, elas contribuem para a taxa de crescimento do produto interno bruto no ecossistema da Cardiologia e distribuição per capita, índice que no Brasil ocupa um lugar destacado no cenário mundial.

A inclusão traz a dimensão moral que acompanha uma ação de convencimento. Por isso, é preocupante saber que diretrizes não são imunes, nem a modalidades de conflitos de interesses, lobbies, lógicas comerciais – passíveis de estarem mascaradas em exaltações de diretricentrismo -, nem a falhas do sistema de saúde. E também, indiretamente, elas não estão isentas de deficiências de controle de qualidade com a matéria-prima; neste particular, Garcia-Berthou & Alcaraz48 fazem soar um forte alerta: "... 25% e 38% de cada artigo de uma amostragem do Nature e do British Medical Journal, respectivamente, apresentam pelo menos um erro estatístico, o que leva à conclusão que pesquisadores numa ponta e revisores de revistas científicas, mesmo das renomadas, noutra, mostram insuficiência de competência nesta área...". Shahar49 reforça: "... médicos devem estar muito bem habilitados para compreender não somente o que a ciência pode e não pode oferecer à medicina, como também porque a ciência biomédica e a prática médica nunca irão estar tão intensamente vinculadas quanto se possa teorizar o vínculo..."

O nexo de eficiência à inclusão das diretrizes no ecossistema da Cardiologia levanta a possibilidade de eventuais conotações "transgênicas"; o consumo de modificações em fundamentos do exercício da Medicina poderia provocar impactos potencialmente nocivos sobre a natureza humana da relação médico-paciente.

No contraponto, a aderência à diretriz poderia modificar positivamente óbices à objetividade; eles poderiam ser figurados como aquela triste memória do último caso, uma referência preestabelecida que catalisa um desvio de percepção do caso futuro-temor de causar iatrogenia, pressões emocionais vindas de distintas direções; e, ainda, como excesso de imaginação acerca do binômio risco-benefício, quer seja por uma "microscopia clínica" que amplia os mínimos riscos, quer seja por uma "hipocondria clínica" que faz pretender benefícios a mais. Sem o filtro do bom-senso, uma diretriz pode representar, tão somente, um amortecedor da medicina defensiva. A bioética inquieta-se.

É essencial, também, ponderar sobre o contexto da inclusão das diretrizes na nossa própria natureza humana, a de cada cardiologista, coletivizada, no ecossistema da Cardiologia. Precisamos refletir sobre o quanto a ideologia fomentadora de diretrizes oferece-nos Esfinges onde projetamos as culpas e as responsabilidades advindas da prática da especialidade; podemos nos valer delas como uma terceirização sobre decisões quanto ao bem e ao mal para o paciente, pretendendo que sentimentos do processo decisório fiquem transferidos para "fora dos nossos muros"; mas não devemos deixar de lado a auto-confiança determinada pela segurança profissional, adquirida caso-a-caso, para emitir nosso próprio juízo, qual Édipo, que além de ter decifrado o enigma da Esfinge, se obrigava a tudo ver, para decifrar os enigmas da vida. Não se despersonaliza quem mantém o poder da vontade, responsável, ética e legal. Vence a ambigüidade quem ajusta uma certa perda da autonomia pela utilização da diretriz científica com uma judiciosa transferência de competência da mesma.

As duas frases seguintes foram ouvidas de cardiologistas e dão o contraponto da inclusão das diretrizes na prática da chamada medicina defensiva -mas também ofensiva, em seu duplo sentido, em não poucas ocasiões: a) entrincheirado, evitando o fogo cruzado de propostas concorrentes, mas arriscando-se a tomar uma pseudo-decisão: "... eu utilizo diretrizes para dormir tranqüilo e não acordar com um processo nas costas..."; b) na linha de fogo e bem armado, com o domínio da recomendação: "... uma diretriz é o meu supervisor de papel, uma segunda opinião sempre perto de mim, mas não abro mão de dar a primeira opinião...". Cada um expressou de uma forma o conforto que sente pelo aconchego da diretriz; ambas declarações suscitam reflexões segundo extensão dos espíritos dos artigos 34 e 42 do nosso Código de Ética Médica: "...é vedado ao médico atribuir seus insucessos a terceiros..., exceto nos casos em que isso possa ser devidamente comprovado..." e " ...é vedado ao médico praticar atos médicos desnecessários...". Ademais, traz à mente o artigo 29: "... é vedado ao médico praticar atos danosos ao paciente que possam ser caracterizados como imperícia, imprudência ou negligência...".

Ainda no processo de inclusão das diretrizes, cabe examinar o quanto "os doentes acontecem às doenças", e não o contrário, é epidemiologicamente válido no ecossistema da Cardiologia; por exemplo, o "encontro" do paciente com o infarto do miocárdio, pelo "mesmo determinismo aterosclerótico" imposto aos seus familiares próximos.

Isto considerado, o auxílio dos algoritmos -um método de racionalização, partir da mesma informação e chegar à mesma conclusão- que acompanham diretrizes resulta diretamente proporcional à capacidade de permitir percursos por um número abrangente de quadradinhos, tendo, desde o mais superior, capacidade para absorver os reais dados do paciente-alvo, como senha para as distinções. Para a tarefa, até pelo alerta "... não há nenhum algoritmo básico que transporte do geral para o particular..." 50 não se pode abrir mão de uma combinação de objetividade e de sensibilidade sobre o valor de certas informações: "...uma evidência pode ser interpretada de diferentes maneiras..." 51; portanto, os algoritmos, ao mesmo tempo que, no comedimento, reforçam a confiança, no excesso podem provocar prepotência; neste mister, atente-se para o duplo sentido do valor, o numérico, com suas linhas de corte sobre normalidade e grau de anormalidade e o interpretativo, com seu recorte alinhado na experiência. Algoritmo não é uma árvore genealógica, onde as inclusões são inequívocas. Classe funcional II, mas em momento pós-classe I ou em momento pré-classe III ? O diâmetro ventricular esquerdo é, tão somente, expressão da remodelação ou é marcador de prognóstico ? Ainda normofunção ventricular esquerda no limite ou já disfunção ? são exemplos de dilemas que fazem hesitar a colocação da pontinha do dedo indicador na seqüência dos quadradinhos. Uma trilha fora do padrão é desvio que promove dispersão e a conseqüência pode ser uma aplicação falsa positiva ou falsa negativa da diretriz. Uma variação da condição inicial no portador de valvopatia, por exemplo, pode representar uma dispersão no sentido de uma preservação da história natural ou no sentido de um desencadeamento cirúrgico; o futuro da vida do paciente fica sujeito a estes comportamentos, com a possibilidade de haver numa próxima ocasião - ainda valva natural ou já com uma prótese valvar -, o retorno ao quadradinho inicial e a tomada de novo caminho. Parece que o tal efeito borboleta admite outros vôos.

XII - Semáforo ético-científico

O duplo sentido do obrigado

Iceberg é água doce que se faz presente em água salgada; diretriz é pesquisa que se faz presente na assistência. Ambos têm 90% da solidez submersos; os demais 10% são o visível ponto de impacto - os quadros de recomendações no que se refere à diretriz -, imaginado flutuante, fragmentável e mutável.

Pode até ser um paradoxo, diretriz baseada em evidência comparada com iceberg baseado em inaparência. Mas, há em ambos a lógica da auto-sustentação forte, não "definitivamente aterrada" e, portanto, razoavelmente livre, que só irá perceber quem estiver disposto a mergulhar fundo. E é preciso treinamento e equipamento para circular pelas profundezas. Recorde-se que "diretriz ancorada na literatura" representa o valor do peso científico e não imobilidade clínica.

Revisão e proposição, facilitação para decidir e ordenar, uma diretriz tem duas partes na sua composição.

PRIMEIRA PARTE DE DIRETRIZ - A primeira parte, a reflexiva, contém a base de dados científicos, a documentação registrada ano & volume & páginas como publicação, que, âncora, nunca pode ser superficial; uma diretriz que "...mais do que necessária, se faz desejável..." 52 incorpora uma discussão pormenorizada das fontes, de tal modo que permite uma excelente revisão crítica e indicação de assuntos a serem melhor explorados. As páginas com as referências ocupam 15-25% das diretrizes recentes, com tendência a uma coleção de 1.000 delas "...uma diretriz ideal precisa estar documentada por referências apropriadas..." 47.. Os dígitos dão a dimensão de um conhecimento verdadeiro do universo de dados científicos sobre o tema, mas "... uma lista completa está fora dos objetivos..." 6.

A primeira parte inclui-se no efetivo engajamento na "comunidade" do ecossistema da Cardiologia, que ética e moralmente precisa preceder ações de correção dos problemas individuais do paciente; mais do que o livre consentimento do paciente, ela habilita para merecer a sua postura participativa.

O up-to-date do cardiologista atualizado comporta-se de modo equivalente; vivemos profissionalmente "firmemente fincados" em racionalidades científicas dinâmicas; o mesmo impacto de informação, revisão, atualização e reflexão de um artigo na individualidade da sua apreciação tem chance de se reproduzir na coletividade que dá peso à diretriz.

Muito embora, os dados científicos disponíveis não sejam hieróglifos para decifradores predestinados, diferenças ocorrem, obviamente; o comitê de alto nível intelectual e baixo dissenso tem a obrigação de fazer por todos, e, sua missão é "...procurar e classificar evidências atualizadas, contando com as facilidades tecnológicas da informação..." 24; enquanto que cada cardiologista obriga-se à "lição de casa", ao seu modo e suas pastas eletrônicas ou de papelão dão a dimensão dos seus interesses profissionais. Em condições normais de pressão acadêmica e de temperatura da beira do leito, a densidade sobre um assunto tende a se moldar à distribuição do tempo no cotidiano pessoal e profissional; aliás, o efeito tempo é um grande indutor de conflito entre interesses no ecossistema da Cardiologia - a escassez de diálogo é etiopatogenia prevalente nas manifestações de insatisfação de paciente/familiar. O que é bom evitar, é que o hábito ao ganho de tempo "científico", informando-se numa diretriz, não represente uma perda da sensibilidade ao timing clínico- risco de efeito Peter Pan.

Podemos nos contentar com uma biopsia do conteúdo de um estudo, em geral, o fragmento é a conclusão no resumo - uma espécie de biopsia de congelação para ditar se há vantagem em prosseguir; ou, então, podemos nos interessar pelo exame completo e detalhado, que pode ou não confirmar uma impressão inicial - os comitês consomem muitas horas – e quantias - US$50 a US$500,000 53 -, analisando desta forma; o grau de abrangência e o rigor na qualidade são definidos por cada um -disponibilidade de tempo, à parte. Um exemplo circunstancial de interesse do cardiologista: Um estudo do NIH 54 concluiu que "... ressonância magnética cardíaca realizada com 1.5T é segura na primeira semana pós-implante de stent coronário, não causando efeitos adversos cardíacos evolutivos; os dados apontam para uma revisão das recomendações dos fabricantes de stents..." Se um artigo como este não corresponder à primazia de aproveitamento do tempo disponível, a varredura da literatura torna-se uma biopsia que se basta pelo resumo - afinal para que é que ele serve? -, não determina ulterior dissecação do artigo e fica na memória do "acho que um dia eu li algo sobre"; a mais provável motivação para o aprofundamento será a responsabilidade perante um caso específico. E nesta ocasião, o cardiologista será "comitê de uma nota só", aquela que ele confere à evidência para produzir uma classe de recomendação de utilidade e eficácia. Em outras palavras, a base de informação da literatura, comum a qualquer retrospectiva, gera, pelo estímulo da aplicação no dia-a-dia, evidências para auto-diretrizes - um neologismo para que entremos no clima vigente de dado científico & evidência, no ecossistema da Cardiologia -, antecipações de ainda inexistentes diretrizes ou mesmo de próxima atualização de pré-existentes.

O senso crítico do cardiologista sobre as bases da literatura geradoras de uma diretriz mostra-se tanto mais aguçado quanto mais ele tem intimidade com o assunto - que num grau superior pode ser a habilitação para compor um comitê. Nas palavras de Rosoff da Duke University 51: "... o conhecimento traz limitações, ou, pelo menos, as bases para as limitações a serem impostas..." O que pode ser complementado pela frase de Isaac Asimov (1920-1992): " se o conhecimento pode gerar problema, não é a ignorância que irá solucioná-lo...".

Se a diretriz científica representa o mapa das evidências sobre o caminho das pedras, virtualidade de precisão, é a habitualidade que determina o "pulo do gato" adaptativo às realidades de cada pedra do percurso. Percebe-se que as entrelinhas das diretrizes mais recentes já embutem traços desta metáfora felina- "...há circunstâncias em que desvios destas diretrizes são apropriados.." 6.

Harmonizar o in vitro ao in vivo subtende conscientizar-se por todos os neurônios que "...os pacientes são diferentes entre si, as doenças comportam-se diferentemente e que, raramente, os casos preenchem todos os critérios..." 55. Porque "... a beira do leito ajusta retalhos multiformes de capítulos de livro... acasos do livro da beira do leito..." 56, idéias para hipóteses de pesquisas são infinitas; sempre haverá uma situação variante a ser estudada: "...há necessidade de pesquisas no campo da reoperação valvular... elas permitirão novas diretrizes, mais organizadas que necessitarão ser implementadas e verificadas por novas apreciações a fim de aperfeiçoar o cuidado com o paciente..." 57.

O corolário, a pertinência da famosa comparação de diretriz com "receita de bolo", diretamente proporcional à falta de familiaridade com a prática, é reforçada por uma visão sob um ângulo a 180° da mesma: " ... os adeptos da Prática Baseada em Evidência têm um longo caminho a percorrer antes de confiarem nas evidência das pesquisas publicadas em revistas qualificadas..." 58.

Em outras palavras, a eficiência de uma diretriz está calcada na autenticidade de contribuição da sua primeira parte, a base de documentação, o valor do produto interno bruto no ecossistema da Cardiologia; os resultados são influenciados por um planejamento com livre-arbítrio, enquanto nos limites da ética (a verdade do bom e do mau), esclarecido, enquanto convencimento para si e para o paciente (a verdade revelada), renovável e revogável, enquanto habilidade para reagir "em espelho"(a verdade do mundo real). Livre & esclarecido & renovável & revogável resume, pois, o compromisso biopsicossocial que o nosso carimbo com o número do CRM simboliza.

Considerando que uma verdade tem sempre duas metades, mas é muitas vezes complexo conhecer as duas juntas, mencione-se que, nem sempre, fica-se sabendo da pretensão de evidência que não deu certo. Estima-se que "... autores com conflitos de interesse associem-se a probabilidade 10-20 vezes menor de apresentação de resultados negativos em relação aos autores sem associação a patrocínios de alguma companhia..." 59. Supõe-se, então, que dados sem chance de ser a melhor evidência não são "contribuição" e tendem a virar ficção científica; como tal, são direcionados por jeitosos discos voadores para a face oculta da lua.

Em prol da transparência do desempenho de "projetos de pesquisa que prospectivamente designem pessoas para intervenção e/ ou grupos para comparar relações de causa e efeito entre intervenção médica e resultado sobre a saúde", e sob o lema altruísmo e confiança, os editores do JAMA, New England Journal of Medicine, The Lancet e outros membros do International Committee of Medical Journal Editors criaram um sistema de registro público a ser efetivado quando da recrutamento dos voluntários a partir de 1 de julho de 2005, e a ser utilizado como condição para a subseqüente publicação 60. Pretende-se, pois, que uma resposta positiva a "Is this clinical trial fully registered?" 61 torne-se um pré-requisito para a publicação do artigo original.

Conflitos de interesse são uma das etiologias da síndrome "não sabemos o que não sabemos, mas deveríamos ter sido informados". Tais vieses de publicação estreitam o caminho da análise crítica do contraditório e faz "... expor aos clínicos uma falsa sugestão de superioridade de novas intervenções..." 62. Nada livre, nem esclarecido, além de não renovado, porque revogado na origem.

Vem a pergunta pragmática: qual é o valor de se conhecer o que não seria mesmo útil? Cabe a resposta acadêmica: a revelação fundamentaria uma apreciação crítica sobre eventual conclusão favorável de outro estudo- evitar a falsa superioridade acima mencionada. Esse tipo de sigilo não parece nada hipocrático e guarda analogia com uma reprovável ocultação de limitações do estudo em muitos artigos originais e/ou uma contida e tendenciosa contextualização da discussão em publicações.

SEGUNDA PARTE DE DIRETRIZ - A segunda parte da diretriz, a executiva, contém a recomendação estruturada, pragmática e utilitarista "... que melhora a eficiência dos cuidados, otimiza a evolução clínica e favorece a relação custo-benefício..." 6; ademais paternalista: "...equívocos e incoerências presentes na publicação original foram identificadas e corrigidas na medida do possível..." 6. Por um lado, esta interferência sobre o original poderia estar relacionada à acima comentada quantidade de erros estatísticos de artigos em revistas conceituadas, mas por outro, suscita uma apreciação moral sobre legitimidade e critérios para praticar correções.

Comentários à parte, a segunda parte funciona como uma especificação, algo na linha de "...especificação é um processo de redução da indeterminação de normas gerais para elevar a capacidade de orientação, enquanto preservando o compromisso moral das normas originais...." 63. Após um julgamento abrangente da literatura em busca de um equilíbrio de "melhores evidências", em prol do bem-feito gerador da confiança, os quadros de recomendações "especificam" fazendo redução das indeterminações sobre o que, quando, onde, por quem, para quem fazer ou evitar.

Convencionou-se classificar a segunda parte em porte do efeito pretendido (classes I, II e III de risco-benefício) e precisão da presunção (níveis A, B e C de fundamentação científica). A sigla IA designa a tropa de elite, utilidade na decisão e eficácia na arma reconhecidas, defensora da soberania da ciência e da dignidade da relação médico-paciente.

As decodificações abrangem, em grau decrescente de aconselhamento: DEVERIA SER APLICADA (benefício bem maior do que risco), É RAZOÁVEL PARA APLICAÇÃO (benefício maior do que risco, mas há necessidade de esclarecimentos adicionais sobre pontos específicos), PODERIA SER CONSIDERADA (benefício igual ou maior do que risco, mas há necessidade de esclarecimentos adicionais mais abrangentes) e NÃO RECOMENDADA (risco igual ou maior do que o benefício).

As indicações e condutas costumam ser estruturadas com todas as classes, pois, " o que se publica se rubrica" é uma expressão minoritária. A classificação funciona como um semáforo ético-científico: a luz verde (Classe I) – cor que é simbolicamente alvissareira num ecossistema- dá a preferência; a amarela (Classe II) dá a opção de ainda avançar ou já se deter; a vermelha (classe III) faz frear em respeito ao momento. Aliás, os adeptos entendem que é um triplo vermelho, o do tráfego mencionado, o do cartão que expulsa como opção tática e o do semblante envergonhado após um má-aplicação, quando não é um quádruplo, pelo negativo bancário da perda de clientela e/ou dos honorários advocatícios. O daltonismo clínico parece reduzido no ecossistema da Cardiologia brasileira; as insatisfações com o desempenho do cardiologista que chegam aos conselhos de Medicina referem-se a fatores não-clínicos, na maioria: carência de vagas hospitalares, demora no atendimento ligada ao sistema de saúde, falta de infra-estrutura; erro de diagnóstico e omissão de socorro são os mais diretamente ligados à atitude do médico.

Como curiosidade, as recomendações de profilaxia da endocardite infecciosa e da atividade reumática não contém a classe II; na ausência do amarelo, tudo se passa como se houvesse desnecessidade de esclarecimentos adicionais, ou é útil ou é inútil, ou é eficaz ou é ineficaz. Fatores de natureza ética devem ser considerados nesta questão, pesquisas com placebo, por exemplo.

É oportuno destacar que a expressão DEVERIA SER APLICADA - pelo médico - está longe de significar É O EXIGIDO - para o médico ou pelo paciente; assim, não se justifica efetuar decodificações ético-legais do risco-benefício da recomendação como única maneira de prover benéfico, muito menos como isenta de risco.

Esta segunda parte das diretrizes pode ser entendida como paternalismo da sociedade de especialidade-obediência estrita do médico. Mas, é essencial diferenciar um passivo aquiescer ao uso de um ativo consentir no uso, eles não têm o mesmo grau de liberdade. Parece-nos mais adequado ao ser médico, que a segunda parte seja apreciada com menor impressão de burocracia, impessoalidade e censura ao contraditório; o caminho é uma postura de autonomia do médico, o livre-arbítrio para decidir se dá ou não o seu consentimento pós-recomendação, com a responsabilidade de justificar contraposições; a insistência cabe pelo respeito à responsabilidade com liberdade no exercício de nossa profissão: decisão livre e esclarecida, pois, de fato, comprometida com os próprios valores, e, ainda, renovável e revogável, pois, de fato, envolvida com a imprevisibilidade da sucessão de circunstâncias.

Pela história natural do ser médico, desejamos estar bem informados, compreender o conflituoso como suporte para propor escolhas, ter preferências sem macular a ética, possuir juízo clínico para usar ou não usar uma determinada informação científica, tanto melhor, quando a interpretamos com análogo sentido de evidência em relação ao comitê da diretriz. Neste ponto, a questão epistemológica (epistemologia-ramo da filosofia que aprecia a natureza do conhecimento) "como sabemos o que sabemos?" é crucial para a satisfação da tríade honestidade & sigilo & eficácia de qualificação da beira do leito; que o contexto de diretriz não é uma certeza está ressalvado no condicional das expressões das classes de recomendação; como exemplo, deveria ser aplicada embute um sim ou um não à recomendação, após uma ação de se medir se cabe no paciente-alvo; mas o quanto sabemos do tema baseado na leitura de uma diretriz, o quanto estamos seguros da fidedignidade das suas nuances, o quanto nossos pressupostos influenciam na aceitação, mais ou menos conscientemente, e como faríamos para obter uma confirmação em outras fontes, estão sujeitos a apreciações conflitantes; e no caso de informação conflitante, qual seria o melhor caminho? Vide abaixo o referido para o artigo de Tarasoutchi e cols. 64, uma experiência pessoal que permitiu uma "visita" - não guiada - a um comitê. O fator tempo, mais uma vez ele, afigura-se crucial, razão porque o proveito do ajuste da conduta a uma diretriz é proporcional ao tempo que se despende debruçado no tema, de preferência junto ao paciente na beira do leito. As 87.600 horas preparatórias dos 6 anos de graduação e dos 4 de residência médica, em tempo "integral" de aprendizado, precisam manter uma analogia de proporção no "after-day".

Para o prognóstico do ser médico, significa muito o quanto diretrizes dualizam um obrigado: o obrigado por, que vem do agradecimento por disponibilizar sínteses qualificadas, gratidão do encontro - e esperança de continuidade -, e que soa profissionalmente mais eufônico; e o obrigado a, que emana da imposição, uma mensagem, então, inaceitável, que, aliás, pode estar mais na interpretação do leitor do que na intenção do comitê. Há outra dualidade de obrigado derivada da primeira: a do paciente agradecido porque nos obrigamos a fazer ou não-fazer, de acordo com a sua preferência, muitas vezes ilusões, mas "protegidas" pelo direito à autonomia-razão do cliente -, ou seja o desejo do paciente falando mais alto do que a razão da Medicina, salvo em iminente risco à vida.

XIII - Usos e costumes

As diretrizes consolidaram-se estruturadas por forças-tarefa em consenso; suas estratégias mudaram usos e costumes: códigos de conduta, algoritmos facilitadores e padronizações vingaram com o lema "a melhor evidência"-caso não houvesse, poder-se-ia emprestar o lema dos escoteiros "sempre alerta", o do Rotary Internacional "mostremos o caminho" ou o do Brasil "ordem e progresso"; mas, "congênitas" tendências a maniqueísmo fizeram-nas alvos de ambivalências: ora as diretrizes são presença, por estar em convergência com o nosso padrão de conduta, ora, são ausência, por as entendermos em divergência com a visão de otimização de determinado ambiente. É como se a beira do leito fosse "... freqüentada por heterônimos, cada qual surgindo como uma reação do ortônimo às convergências e às divergências..." 56 .

No ecossistema da Cardiologia, dentre suas polêmicas interfaces com os cardiologistas destacam-se:

1. No ritmo da condução dos casos, uns entendem que aderência à diretriz propaga-se como um seguro da "medicina defensiva"; outros receiam que a não-utilização possa determinar reentrada em vias de acusação de má-prática. Observa-se que quanto mais estreitada torna-se a polarização médico-paciente, mais se fica à vontade para fluir o atendimento segundo preferências do paciente, mesmo que signifique desvio de diretriz. Especialmente, porque a boa comunicação facilita a postura do médico como navegador e a do paciente como piloto no processo de decisão 65,66.

Porque é essencial acatar os Princípios Fundamentais do nosso Código de Ética Médica, cada um deve ter o seu entendimento sobre o quanto expressões como zelo, dignidade, aprimoramento, respeito, liberdade profissional estão afinadas com as atuais convenções da especialidade. Algumas perguntas provocam reflexões e as respostas parecem não se enquadrar num gabarito predefinido. O seguinte diálogo foi anotado durante uma reunião científica:

"- porque devo seguir ao pé da letra o que recomenda a American Heart Association, se o meu paciente não fala inglês?"

"- porque ela tem credibilidade e suas diretrizes preenchem os critérios de excelência, além de o inglês ser a língua oficial da ciência"

"- e como ficam as boas experiências dos Serviços de Cardiologia brasileiros e as posições dos Departamentos da Sociedade Brasileira de Cardiologia?; além disso, não é verdade que o que é bom para uma população pode não ser para outra?"

" – este último aspecto está previsto na apresentação de diretrizes, mas você tem razão, a discussão sobre diretrizes precisa ser estimulada entre os cardiologistas".

Diretriz não é uma vacina antiimperícia porque não se pode desprezar a hipocrática curva de aprendizado ou a aristotélica construção da virtude: "...as coisas que é preciso ter aprendido para fazê-las, é fazendo que aprendemos..." (Aristóteles, 384ac-322ac). Um mau resultado não está isento de advir de assinergias em alguma etapa da execução de uma diretriz "... a mortalidade cirúrgica pode ser maior ....especialmente nas mãos de cirurgiões não experientes...um fator a ter em mente quando se faz recomendações genéricas..." 37; uma garantia de sincronismo operacional por distribuição envolvente, a mais "hissiana" possível, de diretriz, pode ver-se diante de bloqueios determinados "...por uma relação inversa entre volume de procedimento e mortalidade de um Serviço, bem como por restrições em disponibilidade de pessoal especializado..." 16. Em clínica de valvopatia, "...dentre 684 hospitais analisados a mortalidade hospitalar associada a implante de prótese aórtica variou de 6.0% em hospitais com alto volume cirúrgico a 13% nos com baixo volume cirúrgico..." 67.

Por outro lado, a inobservância de uma diretriz não é, isoladamente, indício de fibrilação da boa prática. O marca-passo da conduta necessita ser o mais natural e autonomicamente ajustável.

Os aspectos ligados à negligência com a aplicação da diretriz são os mais comentados. Há, também, a imprudência da utilização da diretriz, ou porque se desapercebe de uma circunstancial contra-indicação, ou porque um extra-sistólico juízo clínico conduziu mal a indicação.

2. Cardiologistas podem contribuir, por meio da aplicação de diretrizes, para a redução de custos sem prejuízo dos benefícios; é o caso da recomendação classe I, nível B sobre freqüência de repetição da ecocardiografia torácica para estenose aórtica; está indicada de modo inversamente proporcional à gravidade da lesão -até 5 anos para a discreta.

Mas, por outro lado, a sujeição à recomendação que não faria, espontaneamente, num determinado caso-alvo pode associar-se a efeito oposto; é o caso da repetição semestral da ecocardiografia torácica para insuficiência aórtica crônica com diâmetros "em aproximação dos críticos determinantes de indicação cirúrgica", quando já se tenha decidido que este critério não será aplicado.

3. Cardiologistas podem aplicar diretrizes "de olho fechado", por estrita confiança na editoria e por aceitarem que elas são uma convenção moderna do exercício profissional, uma espécie de vigilância e disciplina; mas, quanto mais lê-las com "os olhos abertos" pela experiência – exoftalmia mesmo-, mais ajustes e contraposições farão quando da aplicação. Ademais, miopias podem ser observadas no caminho do produtor ao consumidor, ligadas ao intermediário, representado pelos membros dos comitês de elaboração de diretrizes.

Participamos da elaboração de um artigo sobre uma fase avançada da história natural de portadores de insuficiência aórtica, conduzido no InCor (tese de docência de Tarasoutchi 68, citado por 6 vezes no ACC/AHA 2006 Guidelines for the Management of Patients with Valvular Heart Disease 6; nesta diretriz, há incorreções, não somente de transcrição de dados (número de casos e de óbitos) na construção da tabela 15, como também de análise dos resultados, inclusive com algumas divergências da interpretação do editorial que acompanhou a publicação do artigo original, escrito por um dos componentes do comitê da recém-publicada diretriz. Portanto, cabe refletir sobre em que grau, eventuais infidelidades aos dados originais de uma experiência de 10 anos, podem macular uma irrestrita confiança numa diretriz, como expressão da "melhor evidência". Na elaboração de diretrizes, a fundamentação, desde a produção até o consumo, necessita ser vista e revista, a proposta de conduta prevista e a evolução bem-vista, mas, fica claro que há a influência da retina em que se dá o impacto. Reforça-se o conceito de Gupta 24: "...evidência não é sinônimo de dados/achados de pesquisa;somente quando alguém emite apreciação é que eles se tornam potenciais evidências...". A avaliação, por mais qualificada que seja, não pressupõe unanimidade.

A classe oficial de uma recomendação pode ser distinta da adotada em tantos ambientes heterogêneos e a oficiosa tende a se apequenar. Mas, deve haver liberdade para o cardiologista, que corretamente vai à fonte, considerar "melhor evidência" ou "evidência melhor" pelo seu juízo e as diretrizes não devem ter o poder absoluto de retirar a etiqueta. Insistimos, considerar a sua base de fundamentação não é a mesma coisa que usar diretriz.

Na diretriz acima mencionada, a identificação de diâmetros sistólico e/ou diastólico com valores acima de uma linha de corte ecocardiográfico é referida como classe IIa de indicação de tratamento cirúrgico da insuficiência aórtica crônica, em ausência de sintomas; ou seja para "...pacientes assintomáticos com insuficiência aórtica grave e função sistólica normal – fração de ejeção>0,50 - apresentando dilatação ventricular esquerda grave-diâmetro diastólico final>75mm, e diâmetro sistólico final > 55 mm..." prevê-se benefício maior do que risco, mas com necessidade de esclarecimentos sobre pontos específicos; entretanto, o referido artigo68, produzido no ecossistema da Cardiologia brasileira com cerca de 80% dos pacientes estudados tendo etiopatogenia reumática- a nossa realidade -, qualificado e selecionado pelo comitê como base de dados/evidências, evidenciou que 26% dos pacientes com diâmetros críticos não desenvolveram nem sintomas, nem disfunção ventricular esquerda, nem foram a óbito; e, ainda, que cerca de 90% dos pacientes com diâmetro sistólico ventricular esquerdo > 55 mm e/ou diâmetro diastólico ventricular esquerdo > 75mm exibiram expressiva remodelação inversa pós-operatória; em suma, os nossos resultados apontaram que as linhas de corte valorizadas pela diretriz não subsidiariam é razoável a aplicação; apesar de constituírem forte documentação que tais diâmetros não fazem diferença prática no paciente assintomático, eles não adquiriram status de evidência esclarecedora e assim não provocaram modificação da diretriz de 1998, quanto ao uso de medidas de diâmetros ventriculares esquerdos na conduta para insuficiência aórtica crônica. Prevaleceram os dados publicados, em 1991, pelo próprio Bonow 69, o líder do comitê: "...os poucos pacientes, em que a função sistólica é mantida normal, a despeito de grande dilatação ventricular esquerda estão sob risco de eventos (chance de 19% ao ano de morte, sintomas ou disfunção ventricular esquerda), pela incapacidade de compensar ainda mais, pelas dilatações adicionais...". Note-se que risco de eventos pela incapacidade de compensar ainda mais, que é uma opinião emitida há 15 anos, falou mais alto do que os dados recém-obtidos em pesquisa. Após as indicações, o Oscar vai para...

O trecho a seguir, acerca do acima exposto, permite alguma incursão nos "bastidores" da elaboração da diretriz; "... pacientes tratados de modo conservador com diâmetro diastólico final>70 mm, outrossim, manifestaram uma evolução clínica favorável (ref276-a do nosso trabalho)...estes dados não sustentam fortemente o uso de crescimentos extremos do ventrículo esquerdo como indicação para troca da valva aórtica, a não ser que haja sintomas ou disfunção sistólica (ref 337, o comentário editorial que acompanhou a publicação do artigo no JACC)...todavia, o comitê recomenda operação antes que o ventrículo esquerdo alcance um grau de dilatação extrema e recomenda troca da valva aórtica para pacientes com diâmetro diastólico final>75 mm... "6. Concordamos com Tan20: "... recomendações equivocadas em diretrizes podem também resultar de vieses de opinião, experiência clínica inadequada e distorções na composição do comitê..." De qualquer forma, a informação foi coletivizada (primeira parte da diretriz) e o valor da mesma como sugerido pelo comitê pode ser reconstruído em cada Serviço. Reforça-se que o hábito de consultar diretrizes pode ser uma arma de dois gumes, pois as "verdades de plantão", se por um lado têm a utilidade que se precisa para desempenharmos nossas missões, por outro, não têm o dom de se apresentarem como evidências estáticas no mundo real da beira do leito. Especificamente, em relação a medidas ecocardiográficas, parece ser mais útil raciocinar em termos de tendência num continuum de observação da história natural, do que pontos de corte arbitrários, 70 ou 75 mm, 50 ou 55 mm, considerando que não se conhece um limiar exato abaixo do qual não haveria porque se preocupar com a manifestação de sintomas na evolução natural. Acresce que, por mais que se almeje, o desejo de exatidão do método ecocardiográfico é insatisfazível.

Nós próprios não devemos desqualificar a matéria-prima de nossos produtos de exportação em relação à de importados. Não nos sentimos obrigados a mudar o protocolo institucional multiplamente aprovado, assistencial, acadêmica e editorialmente, só porque ela foi exposta na diretriz como condição com conflitos de evidências (classe II) e nível de evidência B (ausência de múltiplas randomizações). Entendemos que possuímos evidência para a dissensão e continuamos a aguardar os sintomas nos portadores de insuficiência aórtica crônica com diâmetros ventriculares esquerdos elevados. Na nossa verdade (dogmatismo) e no valor das sucessivas previsões comprovadas (profetismo) estão o reforço à fidelidade à uma concepção de estratégia que foi, um dia, considerada plausível (utopia). As implicações práticas ficam evidentes (sem trocadilho): quem não vivencia casos de insuficiência aórtica crônica sentir-se-á negligente se não se mantiver "algemado" aos diâmetros elevados.

4. Cardiologistas mais jovens podem se impressionar negativamente com heterogeneidades de conduta no estilo "escova de dente": cada um tem a sua e a usa ao seu modo; é prudente, todavia, atentar que os esforços de racionalização para eliminar o desnecessário ou corrigir o equivocado, por meio de diretrizes, correm o risco de servirem a interesses comerciais 70, especialmente, considerando que "... ciência em geral e ciência médica em particular, nunca são um produto acabado..." 17. Recentemente, medidas foram tomadas para uma mudança urgente da cultura do FDA em prol de uma maior interação entre a revisão pré- entrada do mercado e a segurança após a comercialização do fármaco, pelo período de tempo que esta ocorrer71.

5. Cardiologistas podem se valer do direito à autonomia para aplicar diretrizes conforme a flexibilidade indicada por uma visão biopsicossocial; o rígido privilégio do bio das diretrizes pode propiciar a conduta tornar-se órfã do psico e/ou social. Sob o aspecto antropológico, realidades regionais dos distintos brasis motivam diversidades anti-imprudência de aplicação das diretrizes; é o caso de anticoagulação oral e controle laboratorial, de certas medidas de prevenção primária e da intervenção por cateter-balão em portador de estenose mitral. A valvoplastia por cateter-balão é recomendação classe I, nível A6 – a única, aliás em valvopatia -, mas não acontece disseminada no nosso ecossistema da Cardiologia, como se poderia pretender num país continental que convive com a etiopatogenia reumática.

6. Cardiologistas podem diferir quanto ao ego no sentido de se obrigar ou se desobrigar a consultar um "livro de receitas de bolo", porque sabem como "por a mão na massa". Williams e cols.72 revelam que somente 167 (22%) de 774 dos hospitais analisados aplicavam recomendações de diretrizes para infarto do miocárdio e insuficiência cardíaca, em mais de 90% do tempo.

A literatura que fundamenta diretrizes, no ecossistema da Cardiologia, é razoavelmente accessível; mas não há uma exata superposição entre as referências utilizadas por diretrizes americanas e européias; apesar das semelhanças básicas, diferenças de recomendação existem; portanto, os comitês, quando interpretam as bases -transformando dados em evidências- e opinam sobre a aplicação, embutem filtros; entre eles, há os interpostos pelos acertos e erros vivenciados por seus próprios membros e com poros determinados em consonância com peculiaridades regionais; é útil considerar que a globalização fica sujeita a refiltragens locais. Neste aspecto, a pertinência da coprodução internacional de diretrizes, já considerada de modo modesto anteriormente, ficou reforçada como tendência com a publicação do 2006 Guidelines for Management of Patients with Ventricular Arrhythmias and the Prevention of Sudden Cardiac Death, uma coprodução da American College of Cardiology, American Heart Association Task Force e European Society of Cardiology Committee for Practice Guidelines7.

7. Cardiologistas podem julgar que é positivo as diretrizes apresentarem complexidade suficiente para salvaguardar do uso de informações da internet pelo paciente. É um ponto de vista, mas, por outro lado, parece haver necessidade de maior atenção com a qualidade e os limites éticos da informação para o leigo na língua portuguesa, até para não conflitar com o que foi, eventualmente, ouvido do seu cardiologista. Vale um exemplo; quem acessar perguntas mais freqüentes do site da Sociedade Brasileira de Cardiologia, Público em geral, Coração on line, e se interessar por prolapso da valva mitral encontrará: prolapso da valva mitral (PVM) é uma condição muito comum, especialmente em pessoas jovens. Não é exatamente uma doença. Na maioria absoluta dos casos não há sintomas, nenhum tratamento é necessário. O portador de PVM pode, e deve, levar vida normal, incluindo trabalho e prática de esportes.

Não se pode deixar de mencionar que há o "paciente aculturado", um termo bioeticamente correto, pois se refere àquele que absorve a cultura do ambiente que passa a vivenciar; em clínica de valvopatia, por exemplo, a cronicidade favorece o aculturamento em próteses e anticoagulação.

8. Cardiologistas podem se sentir orgulhosos da erudição acerca da "evidência-ouro" da literatura, que, como não poderia deixar de ser, é difusa; e eles podem sentir desinteresse pela busca da "evidência-diamante" da beira do leito, esta necessariamente específica, com conseqüente queda tanto da expertise clínica, quanto do estímulo à criatividade que a atenção a cada caso provoca, na linha de uma das leituras para há doentes, não doenças, o aforismo quase centenário de Miguel Couto (1865-1934). Para quem comunga com este ponto de vista, soará no mínimo amoral a afirmação "...uma técnica para elevar a aderência do médico a diretrizes é focar na doença e desfocar do doente..." 73. Esclareça-se que criar é da essência do ser médico; pela criação, dá-se o tom da intensidade do encontro com o paciente; ela aproxima, por um lado, um interior, o conhecido/habilitado, que pode até advir de diretrizes, que vêem um mundo ideal de expansões, e por outro, um exterior, a atitude frente ao "mundo real" com limitações além daquelas já cuidadas pelas pesquisas científicas. Em conseqüência, cardiologistas criam decomposições em diretrizes estimuladas pelo momento e subseqüentes recomposições, com a finalidade de favorecer a eficácia.

Há entre os diretrófilos quem entenda que um antônimo para a Medicina Baseada em Evidências é Achismo, uma espécie de anti-certificação ISO de evidência e beneficência; todavia, a conotação subjetiva do "eu acho que"- muitas vezes uma forma lingüística de expressar comprometimento- não é sinônimo de falta de responsabilidade, até porque é preciso que o processo de tomada de decisão contemple tanto revelação de beneficência, quanto inspiração de não-maleficência. Ademais, a "verdade de plantão" em sua conotação de útil e eficaz, quando chega à beira do leito, é percebida pelo paciente como opinião, "o que o médico acha", ou pensa ou acredita; e, nesta humanização promovida pelo verbo achar e afins, o paciente, comumente, passa a ficar achando, pensando ou acreditando-informado e esclarecido.

Se a expertise para o desempenho da profissão for admitida como comum a todos os médicos, a diferença entre um sucesso absoluto (cura) e um fracasso (morte) ou entre um bem relativo (ortotanásia) ou um mal (mistanásia), resultaria influenciada pelo valor achar bom ou pelo valor achar mau que se desejou atribuir a cada opção admissível - como cuidado principal ou como coadjuvante -, uma contraposição que costuma existir quando é motivada pelo caráter humano de um real vínculo médico-paciente. Nesta concepção de qual arma escolher no arsenal das evidências, não invalida que o papel científico do personagem (no sentido de intérprete de diferentes papéis) médico não admite fantasias, o fato de o lado humano do personagem paciente ter a permissão para as usar, muitas vezes pelo preenchimento, ao seu modo, das lacunas de comunicação, como esperança, como bandeira para seguir a conduta científica, mesmo apesar dos desconfortos, mesmo apesar do que cruelmente possa ignorar dos temores do médico; o desespero dá as asas para ir buscar, num futuro otimista, o reconforto de uma imagem positiva, que se mostra negativa no presente.

Se é uma verdade da bioética que o progresso científico carrega o potencial de comprometer a humanização, não parece justo ver a Medicina Baseada em Evidências como a fada boa que luta contra a madrasta da Medicina convencional; parece-nos perigoso para as boas práticas, certos excessos visando a projetar sentimentos negativos numa madrasta Medicina convencional, a fim de preservar a evidência, a " imagem da boa mãe".

Recorde-se que procurar uma segunda opinião é prática crescente, sendo uma freqüente motivação do paciente "achar o que deseja" e "saber o que outro médico acha"- reforço que achar é um estilo na comunicação, muito humano- em meio a mesmas evidências. Assim, evidência como opinião da literatura e opinião do médico sobre evidência podem conviver como elos do processo primeira opinião-segunda opinião-volta à primeira opinião; é a nossa opinião e a evidência de Moumjid e cols.74: "... concluímos que a implementação de diretrizes não eliminará a necessidade da segunda opinião, pelo contrário, o uso pode até mesmo estimular a procura mais ampla...".

A bioética nos ensina o quão frequentemente mesmas premissas podem representar ora o adequado ora o inadequado em função de circunstâncias. A recomendação: " paciente com rinosssinusite aguda bacteriana deveria receber antibioticoterapia apenas após 10 dias sem melhoras...", baseada numa revisão de diretrizes 75, pode ser distintamente aplicada se o hipotético paciente for um verdadeiro portador de cardiopatia sob alto risco de endocardite infecciosa.

Portadores de valvopatia em capacidade funcional classe III/IV usam os fármacos habituais para insuficiência cardíaca que objetivam um estado de compensação até a correção hemodinâmica cirúrgica, presumivelmente em breve; as doses eficazes costumam ser menores do que as "padronizadas" para ICC de outras etiopatogenias; a cautela tem fundamentação fisiopatológica e acontece em prol da não-maleficência. Neste particular, é interessante assinalar que o ACC/AHA 2006 Guidelines for the Management of Patients with Valvular Heart Disease6 faz menção à terapêutica vasodilatadora de curta duração -pré-operatória-, tão somente, em situação de insuficiência aórtica crônica com insuficiência cardíaca grave e disfunção ventricular esquerda grave; pelas convenções de classificação, esta recomendação é classe IIa, nível de evidência C. Assim, a omissão sobre terapêutica vasodilatadora no período entre o momento da indicação cirúrgica e a efetiva realização em portadores tanto de valvopatia com sobrecarga de volume com função ventricular normal, quanto de estenose mitral, não deve ser decodificada como desnecessidade ou "não autorização" e, desta forma, inibir o bom-senso rotineiro.

A anamnese do paciente, de carne e osso, nome e sobrenome, aquela que alerta para uma mudança de classe funcional nível II para nível III- de máxima importância em valvopatia-, por exemplo, não pode ser substituída pela anamnese da literatura, carne afastada do osso, nome do autor –crédito que afama- e sobrenome da revista-fama que dá crédito. Ambas representam uma comunicação triangular indispensável, cada vértice representando uma prioridade de visão segundo preceitos da bioética: médico (que aplica) Medicina (ao) paciente, Medicina (que é aplicada) (ao) paciente (pelo) médico e paciente (que recebe) Medicina (pelo) médico4.

9. Cardiologistas conseguem ótimos resultados por meio da aplicação de diretrizes; mas, apesar deste efeito-qualidade, eles não devem temer insucessos só porque se valem das condutas "de livro de texto", "de livre contexto na literatura" ou com liberdade observacional; afinal, não é por esta forma "autodidata" de garimpagem na literatura e de prospecção na beira do leito que procedemos nas circunstâncias não ajustadas a diretrizes?- e que são maioria. É sabido que "... somente um reduzido subgrupo do que se realiza em Medicina é testado em estudos experimentais apropriados... somente uma pequena proporção de recomendações é baseada em evidência científica... a maioria é derivada de experiência clínica e observações..." 20. Vide adiante como apenas 1 em cada 4 recomendações em valvopatia correspondem a níveis A e B de evidência.

A pergunta parece oportuna: a concepção de diretriz, com uma bem feita primeira parte, deve aposentar capítulos de livro sobre terapêutica clínica?

Ser precedido por batedores de comitês de diretrizes pode facilitar transitar pelos caminhos da beira do leito, nem sempre bem sinalizados; em contrapartida, tem o inconveniente de acostumar a ser passageiro de uma condução com baixo grau de interação. Certos reflexos do ser médico que já foram chamados de "olho clínico", "olhar de relance" ou "intuição de médico" correm o risco de ficarem embotados; nenhuma alta tecnologia superou a utilidade desta baixa tecnologia.

10. Cardiologistas podem julgar que as diretrizes lhe colocam na mão uma chave-mestra; todavia, não é por isso que devem presumir que tudo se comportará como fechaduras interligadas. Aliás, segredos a sete chaves é o que não falta na beira de leito; e no caso o vértice de referência do triângulo costuma ser o paciente em seu amplo contexto biopsicossocial.

Parece oportuno frisar que, nem sempre, abrir, com autoridade, certas portas exige um estudo clínico randomizado. Grunkemeier e cols.76 informam que o FDA admite o método Critério de Desempenho Objetivo(OPC) como um desenho correto para avaliar o desempenho de prótese valvular. As facilidades de documentação do abrir-e-fechar e das complicações de naturezas mecânica, tromboembólica e infecciosa permitem a análise dos eventos e fazem desnecessárias as pesquisas clínicas randomizadas para a aprovação ou desaprovação de uma nova prótese valvular. Os autores reforçam que o estudo AVERT (Artificial Valve Endocarditis Reduction Trial) previsto para acompanhar 4400 pacientes por 48 meses "...foi interrompido prematuramente ..." pelo alto percentual de complicação mecânica com uma das próteses sob comparação; presumiu-se que "... um estudo OPC muito menor, com 800 pacientes-ano fosse suficiente para revelar o mesmo potencial de complicação.." 76.

Acresce que não há certeza se estudo clínico randomizado é, de fato, invariavelmente superior a outros métodos, pois "... não há uma sistemática diferença em conclusões derivadas de estudos RCT e não RCT..." 5.

XIV - Mais uma vez sempre como uma primeira vez

Diretrizes podem representar um "resumo de alta" do grande prontuário que contém o dia-a-dia da internação das pesquisas na literatura. Elas reduzem a ampla memória, após análises e metas-análises, a uma memória seletiva fortalecida na atenção aos métodos e interesse nos resultados.

Os mesmos atributos da boa memória aplicados à beira do leito maximizam a probabilidade de elaborarmos um resumo de alta de um paciente tão favorável quanto as conclusões das pesquisas.

A memória do prontuário da literatura, que representa o "para trás", pretendemos o "para frente" no prontuário do nosso paciente "...certidão de vida que registra uma conduta-momento que pretende adiar a certidão de óbito..." 77. Esta continuidade costuma requerer, por um lado, alguns esquecimentos estratégicos e, por outro, determinadas lembranças, reaparecidas sabe lá onde estavam, o mais provável, no "locus praticus".

Em prol do equilíbrio do nosso habitat, segundo a "expertise conciliada", é útil levar em conta um decálogo de alertas sobre comportamentos de diretrizes, no ecossistema da Cardiologia. Levamos em conta, especialmente, a acima mencionada SEGUNDA PARTE DE DIRETRIZ, ou seja, o conjunto de recomendações organizadas por classes e níveis de evidência.

1. Diretrizes complementam o juízo clínico, não se transformam em seu substituto; elas são bússolas de nortes estruturados para o exercício de decisões com profissionalismo, mediante o raciocínio, o mais lógico, para um amplo panorama da circunstância; elas não são mandados com poder para colocar algemas que possam tolher "as mãos da arte".

Todavia, é preciso conhecer e se posicionar sobre argumentações como a seguinte25: "... uma vez as diretrizes adotadas por um grupo, espera-se que cada médico as cumpra, exceto quando julgue inapropriado; nesta circunstância... um sistema de vigilância pode analisar os desvios das diretrizes e tomar providências antes que ocorra malefício para o paciente... freqüentar seminários educativos é menos terrível do que um processo formal e, inclusive é mais convincente para que o médico aceite o enquadramento..." Frieza de arrepiar ou calores de uma menopausa da medicina convencional?

A flexibilidade é compromisso de elaboração das diretrizes, desde os seus primórdios, por estrita exigência das humanas diversidades da beira do leito "...uma diretriz ideal precisa ser suficientemente flexível ao conceito que cada paciente é único..." 47. Da formatura à aposentadoria, a beira do leito promove o acúmulo do passado, que ao contrário da expressão "não volta mais", nela "volta sempre"; e, nesta linha do tempo, cursa uma educação continuada em serviço, sensível a novas composições sobre percepções e preferências individuais, como as provocadas por aspectos culturais de uma etnia ou de uma região; elas podem bloquear a racionalidade de uma recomendação, o que não deve surpreender o mais diretrófilo, pois, sem a atenção a elas, talvez não se esteja praticando uma boa relação médico-paciente. O desejo do paciente dá a conotação de verdade ao valor que ele aspira e, esta expressão adquire força moral para confiscar a prerrogativa médica de aplicar a "melhor evidência", salvo no iminente risco à vida; a determinação "humana" do paciente poderá, então, ser a negação da razão "científica" do médico e, desafiadoramente, do nosso narciso projetado na diretriz.

2. Diretrizes transformaram-se na "melhor metabolização da literatura" e, por seus anabolismos e catabolismos, ganham um mandato com período de validade indefinido, porque é obra sempre em aberto. "Fabricações" de distintas sociedades de especialidade podem apresentar maior afinidade com o consumidor –imagem da marca- e, a seleção que faz "colocar no carrinho" é influenciada por fatores que vêm de fora (interpessoais como o efeito equipe ou ambientais como pressões reguladoras) e por fatores que vêm de dentro (intra-pessoais como a convicção reforçada por um feedback positivo de aplicações).

Segmentos da indústria farmacêutica denunciam que os seus esforços de alto custo para implementar as diretrizes contrastam com a lentidão de outras estratégias, governamentais ou não; em conseqüência, reduz-se a credibilidade e forma-se uma lacuna entre a pesquisa e a prática, por exemplo, no tocante a fatores de risco cardiovascular75,78.

Diferenças étnicas entre pacientes e de gênero entre médicos constituem variáveis não-clínicas de influência em tomadas de decisão. Barnhart e cols.79 identificaram que "... médicos de família mais do que cardiologistas e médicas mais do que médicos percebem a participação de fatores socioeconômicos e de estilo de vida ante divergências sobre aceitação de métodos de revascularização do miocárdio..."

Vale a lembrança histórica. Os critérios de Jones (Thomas Duckett Jones, 1899-1954) foram provocados por uma filosofia semelhante à das diretrizes; devido ao efeito "crowding" em quartéis, durante a segunda guerra mundial, precisava-se conhecer a "melhor" informação propedêutica e organizá-la em critérios de uso para o diagnóstico de atividade reumática; na ocasião, o ano de 1944, representou o "consenso de única pessoa", com a base de evidência essencialmente construída em anos de beira do leito. As três alterações - post-mortem de Jones- de 1956, 1965 e 1992 foram já organizadas pela American Heart Association. Esta modalidade de adoção ocorreu também em relação aos critérios da Duke University, publicados em 1994, para endocardite infecciosa; a tabela 22 de ACC/AHA 2006 Guidelines for the Management of Patients with Valvular Heart Disease é a transcrição da modificação realizada em 2000 por Li e cols.80, o que fecha o círculo. A distribuição em critérios maiores e menores é uma analogia essencialmente prática das classes e dos níveis de evidência; ela é algo como um dialeto, pois junta vários elementos de formação com analogia à classe IIb e torna o conjunto, assim resultante, afim de IIa ou, até mesmo de classe I.

3. Diretrizes hospedam suas classes I e IIa de evidências no princípio da beneficência; delas se pretende utilidade e eficácia com superioridade em relação a outros métodos, para a maioria dos casos-alvo. O acaso na composição de grupos a comparar, por uma estratégia da randomização, é um pré-requisito forte da legitimidade dos resultados da pesquisa, embora não seja um fiel da verdade; é clássica a força persuasiva da quantificação em ciência, o que de certa maneira, dá lenha para a concepção que qualquer medida da experiência pessoal, por maior que seja, seria, no mínimo temerária para as boas práticas; contudo, paradoxalmente, os acasos da beira do leito, distribuições não controladas de morbidades num mesmo paciente56, podem comprometer o grau de reprodutibilidade da "melhor evidência" obtida em ensaio controlado.

Duas conclusões de artigos da literatura recente chamam a atenção, uma para o problema e outra para a solução a respeito de inconformidades em relação a diretrizes.

Boyd e cols.81:" a aplicação de diretrizes disponíveis para idosos com várias comorbidades pode resultar em efeitos indesejáveis, em função de juízos inadequados " ; os autores argumentam que idosos, que são mais suscetíveis a efeitos adversos e interações de fármacos, podem se encontrar incapacitados ou não desejosos de se comprometerem, não somente, com um grande número de medicamentos, simultaneamente, quanto com mudanças de estilo de vida por períodos prolongados; implicações sobre custos poderiam também desestimular médicos a assumirem o cuidado de idosos com várias comorbidades. Recorde-se que "... no idoso, a maior chance do risco de cada tratamento tornar-se evento adverso da combinação terapêutica conspira para reduzir os benefícios presumíveis, do que se conclui que ao idoso deve-se oferecer apenas a associação do que for claramente eficiente..."82, sendo que cerca de 90% dos idosos fazem uso de pelo menos um medicamento ao dia; drogas de efeito cardiovascular e anti-hipertensivos lideram o consumo na terceira idade, onde se manifestam mais fortemente as heterogeneidades de absorção, distribuição e eliminação.

Já Gaede e cols.83 avaliaram pacientes diabéticos, média etária de 55 anos, por meio de um estudo randomizado, com média de acompanhamento de cerca de 8 anos; a atuação simultânea sobre glicemia, hipertensão arterial, lípides séricos, e o uso de droga inibidora da enzima de conversão da angiotensina e aspirina permitiram concluir que: "... uma intervenção focada num objetivo com múltiplos fatores de risco em portadores de diabete tipo 2 e microalbuminúria reduz, em cerca de 50%, o risco de eventos cardiovasculares e microvasculares...". Ainda em relação ao diabetes, doenças crônicas requerem um apoio multidisciplinar ao comitê de elaboração; a diretriz da Associação de Diabete de Israel, por exemplo, houve por bem obter a colaboração das sociedades de hipertensão arterial, prática familiar, obesidade, nefrologia, aterosclerose e medicina interna84.

4. Diretrizes amadurecem quando especialistas transformam, em ferramenta confiável, pré-requisitos de qualidade na elaboração19,20,85. Eles incluem: flexibilidade como atributo "... para satisfazer percepções e preferências advindas da relação médico-paciente..."20, clareza para evitar ambigüidades e facilitar a fluidez de acompanhamento "...recomendações vagas e inespecíficas foram seguidas em in 36% das decisões e as recomendações claras em 67% das decisões..." 85, grau de transparência sobre a interpretação dos dados transformada em peso de evidência, limitações na aplicação prática, pluralidade nas representatividades acadêmicas dos autores e reprodutibilidade face a peculiaridades regionais "... quando e riscos e benefícios individuais não podem ser avaliados, a proporção risco/benefício deve ser determinada na população local..."19. Elas não podem transparecer um estatuto de "sociedade secreta", descomprometidas com os costumes locais, porque a beira do leito exige o máximo de revelações.

O neurologista Glauser e cols.86 nos relembram a distinção entre uma informação de valor científico e uma evidência de valor na clínica. Após analisarem 50 RCT (Randomized Clinical Trials) e sete metas-análises, os autores verificaram que a maioria (88%) era classe III/IV, uma gradação para estudos insuficientes por não preencherem RCT duplo-cego & pelo menos 24-48 semanas de tratamento sem interrupção & ausência de sintomas por 24 semanas & apropriado valor estatístico; a conclusão foi: "... a ausência de rigor de dados quanto a efeitos adversos torna impossível desenvolver uma diretriz sobre a otimização da monoterapia inicial na epilepsia...torna-se alarmante, a maioria dos RCT relevantes existentes sobre convulsão generalizada em epilepsia apresenta deficiências expressivas de método que limitam a aplicação em projeto de diretriz..." A partir deste alerta, diríamos que o zelo com o princípio da não-maleficência é capital na aplicação de diretrizes; ele tem, pelo menos, igualdade de valor com o zelo pela beneficência.

5. Diretrizes sofrem transformações na aplicabilidade em função dos muitos acasos da beira do leito, que podem comprometer uma distribuição eqüitativa de certos fatores, como ocorrida na pesquisa; no ecossistema da Cardiologia, o paciente-real costuma apresentar-se com alguns componentes que os voluntários da pesquisa, justamente por não tê-los - critérios de exclusão -, foram aceitos para o estudo; e que, após terem dado sua contribuição individual, ao final, fundiram-se num modelo de paciente-virtual, pronto para ser protagonista de uma diretriz; os ajustes de inclusão/exclusão realizados habitualmente, para deixar um desenho de pesquisa melhor estruturado para conclusões, costumam obstar que o paciente-real da exigência assistencial seja "gemelar" ao paciente-virtual da evidência do estudo; daí, a demanda de providenciar a destilação da recomendação pelo princípio da não-maleficiência ou pela confirmação de pertinência de extrapolação de beneficência; a finalidade do endosso é assegurar-se que a pretendida utilidade da melhor evidência não esteja sobrepujada por uma condição de maior evidência, como contra-indicação momentânea ou duradoura-anticoagulação é um modelo desta cautela; ou se é válida a extrapolação frente a uma exclusão original que está agora presente –acidente vascular cerebral prévio excluído para possibilitar uma randomização entre anticoagulante e aspirina; freqüentemente, o paciente-real da beira do leito difere do paciente-virtual, referência das diretrizes, em aspectos demográficos, etiopatogênicos e de associação medicamentosa (polifarmácia- como acima referido para idosos).

6. Diretrizes são alvo da erosão provocada pela carência de recursos financeiros e humanos; a insuficiência de infra-estrutura técnica, em seu amplo sentido, restringe a eficiência presumida. O alerta "... a disponibilidade distinta de recursos em regiões geográficas reforça a posição deste comitê que recomendações são "guias" e não "necessidades rígidas..." consta nas páginas iniciais do ACC/AHA 2006 Guidelines for the Management of Patients with Valvular Heart Disease6.

7. Diretrizes transformam a relação de poder entre médicos, na medida em que tendem a uniformizar condutas de modo independente da experiência própria adquirida; ou seja, elas tendem a minimizar a curva de aprendizado da beira do leito, que funciona como um intervalo de confiança, na medida que baliza o valor da capacitação dentro dos limites mínimo e máximo de aceitação; o poder da sociedade de especialidade pela vinculação dos sócios ao diretricentrismo embute a tendência de reduzir a capacidade individual de perceber diferenças entre pacientes com manifestações semelhantes; pode resultar um aprendizado com distanciamento do significado de um a um (conhecer sobre casos assistenciais) e com proximidade da significância do p<0,001 (conhecer sobre acasos na pesquisa). Esta "sindicalização" manifesta na formulação e coletivização de diretrizes precisa estar conscientemente avaliada por todos que contribuem para o desenvolvimento do produto interno bruto no ecossistema da Cardiologia.

8. Diretrizes pressupõem heteronomia, ou seja, receber de um elemento exterior a regra a que se deve submeter; desta forma, elas concorrem para transformar em grau pré-determinado de abertura, o leque de opções de uso de métodos; poder-se-ia argumentar que não deveria haver diferença em ler na diretriz e ler num livro, mas depende da hierarquia do compromisso com que se dá a leitura; a glamorização da diretriz embute uma restrição da autonomia do médico para aplicar o que ele bem conhece e uma certa imposição para "plagiar" o que ele, eventualmente, mal conhece. O grau de resposta à glamorização "...pode ser avaliado por um modelo psicossociológico que inclui a influência de comportamentos passados, percepção de controle e barreiras e intenção na aderência..." 87.

Porque uma saudável tensão entre o livre-arbítrio do médico e a recomendação "segunda-opinião de bolso" beneficia as boas práticas da beira do leito, cabe uma reflexão, no ecossistema da Cardiologia: a tese a que nos referimos acima68 sobre uma determinada conduta clínica do dia-a-dia, experiência de anos, aprovada perante uma banca de professores de uma conceituada Faculdade de Medicina, em plena rotina de execução, é o que "se bem conhece" numa experimentada Unidade Clínica de Valvopatia; entretanto, um diretricentrismo poderia determinar o seguinte exagero de sentença "sindicalista": a prática só receberia o "selo de aprovação" se, após a publicação em revista conceituada, houvesse a superposição às classes favoráveis de recomendação da diretriz. Se entendermos que temos uma matéria-prima boa, porque deveríamos nos sujeitar a um produto importado, porque "de marca"? Esta perplexidade parece válida, especialmente, em temas onde possuímos número de casos para dar poder de observação e expertise de baixa, média e alta tecnologias para o correto diagnóstico e terapêutica. É brasileiro88 o artigo que motivou "The art of Medicine lives on", como sub-título do comentário editorial64"... o julgamento do clínico foi útil em corretamente identificar a modalidade terapêutica adequada, particularmente para aqueles pacientes que não deveriam se submeter à intervenção percutânea...". Mais um componente de exportação do nosso produto interno bruto do ecossistema da Cardiologia, quando nos aproximamos do centenário de Nova Triponozomíase humana89, o emblemático artigo de exportação de Carlos Chagas, 60 páginas em duas colunas, a da esquerda em português e a da direita em alemão.

9. Diretrizes não são nem instrumentos exatos de conversão de probabilidades em certezas, nem argumentos para transformar preferências pessoais -à margem das diretrizes- em equívocos clínicos; o jargão "padrão de conduta" não pode motivar a denominação de cuidado sub-padronizado e menos qualificado para uma conduta alternativa, ao gosto de suspeições sobre erro profissional e motivo de mérito para penações. Elas não são instrumentos cartoriais e não respondem solidariamente.

10. Diretrizes são passíveis de servirem a vieses de interesses, além dos estritamente de âmbito científico, como o privilégio da eficiência do primeiro componente e não do vínculo da relação custo-benefício "...é importante compreender a filosofia por detrás do desenvolvimento de diretrizes por administradores da saúde e agências comerciais... as principais motivações são conveniência administrativa e incentivo a negócios, mais do que garantia de qualidade e consideração sobre a eficiência do cuidado com o paciente..."17. Há o risco de comportamento Flauta mágica quando se compromete a conciliação de redução de custo e preservação da qualidade.

Por outro lado, a observação que "...conflitos de interesse no âmbito do financiamento têm o potencial de prejudicar a ciência médica...", a exigência para "... autores revelaram os últimos cinco anos quanto a interesses ou conflitos financeiros..." e as sugestões como "...condução por comitês desvinculados do financiador e análises por estatísticos independentes..." 91 indicam que as revistas científicas desejam analisar além da tradicional casuística e métodos, alguns casuísmos e métodos não ortodoxos da pesquisa científica.

No aspecto da eventual propagação do conflito de interesses com a indústria farmacêutica para o receituário, cabe ressaltar os números seguintes91: Dentre 685 diretrizes contendo prescrição, 35% dos autores declararam algum tipo de conflito de interesses, afetando 70% dos comitês; cerca de 10% dos comitês tinham um membro que era acionista de produto considerado; metade das diretrizes não incluía informações sobre eventuais conflitos de interesses dos componentes. A grandeza dos números, talvez explique cepticismos como "... clínicos podem estar menos inclinados a confiar em dados patrocinados pela indústria do que por fundos públicos..." 24. Mecanismos de controle existem e a utilização dos mesmos parece crescente. Resta saber o quanto medidas fiscalizadoras conseguem afastar conceitos como "... não é verdade que os componentes mantenham total objetividade..." ou "... conflitos de interesse advindos de relações de financiamento da indústria farmacêutica a pesquisadores e instituições acadêmicas podem influenciar de várias maneiras a pesquisa biomédica..." 92, ou "... a indústria que patrocina não tem obrigação em servir à saúde pública; ela tem um dever de obrigação com seus acionistas e um direito, circunscrito somente pelo aspecto ético de estudos em humanos, a financiar estudos de sua escolha; em conseqüência, a concepção de grandes pesquisas, com comparações a longo prazo, pode, em certas circunstâncias, funcionar mais como um discurso comercial do que ciência obrigatória..."93.

Por outro lado, não se pode desprezar que "... pesquisa custeada pela indústria farmacêutica produziu muito mais medicamentos de utilidade do que a pesquisa patrocinada pelos impostos do cidadão..." 49 e que cresce a revelação dos conflitos de interesses "...uma diretriz ideal precisa estar acompanhada da manifestação de conflitos de interesse..." 47. Por exemplo, os apêndices 1 e 2 do ACC/AHA 2006 Guidelines for the Management of Patients with Valvular Heart Disease exibem as relações dos autores e revisores com a indústria farmacêutica. Já o recente V Brazilian Guidelines for Arterial Hypertension 2006 não menciona conflitos de interesses94.

Partindo do pressuposto que compartilhamos mesmos objetivos -manter os pacientes sob controle clínico por meio de medicamentos-precisamos estimular discussões sobre a forma harmônica de convivência entre a lógica comercial e a ética médica.

No Brasil, alguns fóruns de debate surgem pela preocupação moral e pela atenção a artigos do Código de Ética Médica. A pauta poderia começar pela listagem contida num ponto de vista sob o título Resisting Cookbook medicine: "... a indústria influencia as questões a serem pesquisadas, os métodos, avaliação dos dados obtidos, conveniência da publicação e divulgação dos resultados... já se verificou que algumas diretrizes da prática clínica e conceitos de "consensus conferences" são indiretamente financiados por meio de pagamentos a indivíduos e fundações específicas..."95. O não envolvimento do médico com o planejamento da pesquisa e a sua divulgação soa mais como prestador de serviço a terceiros do que propriamente como pesquisador.

XV - Números em evidência

No ACC/AHA 2006 Guidelines for the Management of Patients with Valvular Heart Disease6 há 54 quadros com classes de recomendação e níveis de evidência. A diretriz disponibiliza 324 situações diversas, distribuídas conforme a tabela abaixo.

Observa-se que há único nível A, que se conjuga à classe I em: "...valvotomia mitral percutânea por cateter-balão é efetiva para pacientes sintomáticos (classe funcional II, III ou IV da NYHA), com estenose mitral moderada ou grave e morfologia valvar favorável para o procedimento, em ausência de trombo atrial esquerdo ou insuficiência mitral moderada ou grave..."

Portanto, 99,7% das recomendações no âmbito da cardiopatia valvar não preenchem a condição de "... evidência ou concordância em geral que o procedimento ou tratamento é benéfico, útil e eficaz, por meio de dados derivados de múltiplos ensaios clínicos randomizados..." .

DESTA MANEIRA, DEVERIA SER APLICADA, por um máximo peso de evidência, é exceção, pois como "... não há disponibilidade de pesquisas randomizadas em muitos setores do tratamento da cardiopatia valvar, estudos observacionais e, em algumas áreas, opiniões de especialistas, formam a base de recomendação oferecida..." 6.

As 236 recomendações "positivas" (classes I e IIa- - junção análoga ao se pratica com classe funciona lII/IV) fundamentam-se em dados derivados de único ensaio randomizado ou de não randomizado (nível B), em 30,1% delas e em dados obtidos de opiniões consensuais, estudos de casos ou padrão de cuidados (nível C), em 69,5%. Assim, a maioria das condutas "...com benefício presumivelmente bem maior do que risco..." não deriva de randomizações planejadas, considerando-se a cardiopatia valvar.

As 88 recomendações "negativas" (classes IIb e III- junção análoga ao que se pratica com classe funciona lII/IV) associam-se a 83% de ausência de randomização fundamentadora (nível C), o que, em parte, pode ser creditado à competência de vigilância ética sobre a não-maleficência da Medicina convencional. Não é incomum, o cotidiano da beira do leito em clínica de valvopatia fazer optar pela inutilidade ou mesmo o malefício de se cogitar de certas pesquisas com desenho semelhante às efetuadas com outras modalidades de cardiopatia. Note-se que, a escassez de eventos observada na experiência clínica acumulada com casos de estenose aórtica assintomática cotejada com as potencialidades de intercorrência projetadas do acompanhamento assistencial per e pós-operatório de substituição da valva aórtica, direciona para a inconveniência da indicação cirúrgica, em ausência de síncope, angina do peito e sinais de insuficiência cardíaca e função ventricular esquerda preservada.

Na diretriz 1998 ACC/AHA guidelines for the management of patients with valvular heart disease havia a recomendação de indicação cirúrgica para "... paciente assintomático com estenose aórtica grave e taquicardia ventricular..." 15, o que, de certa maneira estava contrário à concepção que " ... mesmo se a mortalidade cirúrgica fosse minimizada, o risco combinado da operação e complicações tardias da prótese excederia a possibilidade de prevenção de morte súbita em todos os pacientes assintomáticos..." 15.

No ACC/AHA 2006 Guidelines for the Management of Patients with Valvular Heart Disease, prevaleceu a visão clínica: " o comitê entendeu que não havia evidência para sustentar a recomendação, que não foi confirmada no presente documento..." 6.

XVI - Reproduzo, logo existo

A reboque da forte imigração, as diretrizes costumam passar pelo processo de naturalização do tipo "dupla cidadania". A "cidadania brasileira" é concedida, habitualmente, em função da ascendência da sociedade que elaborou e da revista onde se publicou. O ecossistema da Cardiologia brasileira costuma ser hospitaleiro, neste sentido, cônscio da utilidade e da eficácia avalizadas pela credibilidade natal.

Nascimentos no Brasil também ocorrem, sendo que a primeira geração nasceu com forte semelhança fenotípica, como aconteceu em outros países, como Espanha: "... pouco antes de começarmos a elaboração desta guia sobre valvopatias, apareceu a diretriz da American College of Cardiology/ American Heart Association... impossível subtrair a poderosa influência...apesar de haver, no campo da cardiologia, as melhores contribuições originais espanholas..." 96.

A taxa de crescimento dessa natalidade é indicador da fecundidade da expertise patrícia. Neste início do século XXI, a Sociedade Brasileira de Cardiologia registra meia centena de diretrizes e normatizações, uma produção alvissareira. Contudo, uma diretriz é mais do que parecer útil por conter "todos" os itens; ela precisa ser verdadeiramente proveitosa, pois, os dados/evidências são "verdades pela utilidade".

A recente II Diretriz Brasileira de Cardiopatia Grave97 alerta-nos que "...considera-se um servidor portador de cardiopatia grave quando existir uma doença cardíaca que acarrete o total e definitivo impedimento das condições laborativas, existindo, implicitamente, uma expectativa de vida reduzida ou diminuída, baseando-se o avaliador na documentação e no diagnóstico da cardiopatia...".

Suponhamos uma avaliação de perícia num portador de valvopatia e o perito deseja recorrer, patrioticamente, a essa diretriz; ele encontrará o direcionamento "... nas seções a seguir serão definidos os tópicos importantes a serem valorizados na definição de gravidade de diferentes cardiopatias..."; ele dirigir-se-á à seção 4-Valvopatias. O primeiro impacto é que as únicas três referências formam uma base de documentação já interpretativa, algo como copy-paste sem search. A seguir, ao percorrer os vários itens sobre doenças valvares, a fim de nortes para a decisão, o perito deparar-se-á com informações como: ".. pressão arterial diferencial reduzida em estenose aórtica, segunda bulha hiperfonética na estenose mitral, história familiar de morte súbita no prolapso da valva mitral, dadas as condições hemodinâmicas que uma troca proporciona, é de consenso que a obstrução permanece, embora com gradiente menor, mantendo portanto, a condição fisiopatológica, a permanência da definição de cardiopatia grave dependerá do gesto profissional, na situação pós-cirúrgica de estenose aórtica..." Aparentemente, todas as informações "a serem valorizadas" estão listadas com o mesmo grau hierárquico; a agulha da diretriz-bússola aponta para vários pontos cardinais e, pela ausência de discriminação, faz, por exemplo, classe funcional III/IV equiparar-se a ictus hipercinético, deslocado externamente, na insuficiência aórtica. A diretriz não contribuirá para o rumo de saída do labirinto.

Há várias barreiras para a implementação de diretrizes, cada região tem a sua. É importante frisar que "...o fator paciente é citado como a razão mais comum para que os médicos não sigam as diretrizes... no âmbito da baixa expectativa de benefício..." 98.

Pesquisa recente conduzida pela European Society of Cardiology99 em seis países europeus concluiu que "... aderência do paciente e política de saúde, incluindo aspectos financeiros, são fatores críticos para a não implementação de diretrizes sobre redução de risco cardiovascular...". A verificação da autoria do artigo acima alerta para um aspecto interessante: um co-autor é identificado tão somente como membro de uma determinada indústria farmacêutica, aliás, uma das várias que patrocinaram o estudo; o mesmo comportamento é observado em outras referências sobre implementação de diretrizes, o que assinala o interesse das empresas em conhecer os fatores intervenientes. Uma das mais freqüentes sugestões pró-aderência às diretrizes, obtidas dos médicos contatados, é a simplificação. Esta, contudo, é a que mais aproximaria a diretriz de uma "receita de bolo".

Por mais tácita que possa ser, num determinado ambiente, a aceitação e a integração, é essencial não se dispensar um ritual de implementação de diretrizes no ecossistema da Cardiologia, que idealmente, inclui:

1. Aprovação da relevância da aderência a respeito das realidades do cotidiano do cardiologista, ou do Serviço, para um determinado tema "... o médico precisa crer que o uso da diretriz não prejudica a relação médico-paciente e que os benefícios sustentam-se por longo prazo..." 20.

2. Aprovação da idoneidade da propositura, abrangência das referências, qualidade da elaboração do texto científico e da pertinência de objetivos econômicos, como salvaguarda da beneficência para o paciente e da não-maleficência para a equipe de saúde. Otten e cols.100 aplicaram um Instrumento de Avaliação de Diretriz e verificaram que os escores mais altos foram das que incluíam instruções para implementação; nenhuma das diretrizes preencheu todos os critérios de excelência; concluíram que o melhor parece ser a junção das partes de cada uma que os satisfazem. Neste campo, De Maria52 descortina bastidores e revela a produção de diretrizes "populistas", criadas e/ou avalizadas por nomes com credibilidade; elas são independentes de notórias sociedades e apontam para uma estruturação de diretrizes "... menos certa de se assemelhar a diretrizes preparadas por organizações de fato representativas , o que confere credibilidade e abrangência na aceitação...". O ponto nevrálgico é17: "... desenvolveu-se uma indústria com numerosas organizações comerciais aderindo a este mercado...".

3. Nomeação de líderes dentre os mais especializados no tema, em prol da legitimidade da condução do processo de implementação; "...a implementação gradual parece beneficiar a aderência..." 87.

4. Agregação de um corpo de multiprofissionais afins, para uma visão integrada das evidências sobre etiopatogenia, diagnóstico, terapêutica, prognóstico, prevenção e custo-risco-benefício.

5. Definição de um fluxo de exposições pedagógicas para discussão e disseminação do conteúdo.

6. Avaliação do impacto das recomendações em relação à rotina praticada: disponibilidade de pessoal e aparelhos, exigências de treinamento adaptativo; em hospital universitário, as maiores barreiras para a utilização de diretriz foram "... para o médico-assistente, o tempo necessário para receber resultados de exames e para o residente, a restrição à autonomia de decisão..." 87.

7. Avaliação do impacto econômico e sobre a ocupação de espaço;

8. Seleção eventual de certas recomendações, análise de sugestões para adaptações a peculiaridades nosológicas de populações, estilo local de conduta, expectativas coletivas da equipe, experiência dos profissionais e valores dos pacientes; deste modo a adoção poderá ser com ou sem modificações; ademais, a definição de um cronograma de implementação progressiva de itens não rejeitados, mas, por alguma razão, "congelados".

Morimoto e cols.101 nos alertam sobre ações de cautela para dar o devido endosso a uma recomendação de diretriz com fundamentos em etnia distinta: "... os limiares de terapêutica antiplaquetária para populações asiáticas deveriam ser duas a cinco vezes mais elevados do que os para a população estadunidense, em função de maior risco de complicações hemorrágicas... endosso à diretriz dos EUA deve considerar implicações em outros países...".

Análise feita pelo Estudo Chinês de Múltiplas Províncias concluiu que "... as funções do estudo Framingham superestimaram o risco de doença arterial coronária em chineses... modificações adaptativas tornaram o modelo útil..." 102.

Na Nova Zelândia, o Evidence-Based Best Practice Guideline recomenda que a população assintomática seja submetida à avaliação do risco cardiovascular, visando a eventual redução, a partir dos 45 (homens) ou 55 anos (mulheres); caso haja fator de risco, as idades reduzem-se 10 anos: 35 e 45 anos. Os Maoris-o povo indígena da Nova Zelândia- têm os piores índices de saúde e apresentam a maior incidência e prevalência de cardiopatias e fatores e risco, ligados à etnia e a aspectos socioeconômicos e, desta forma, demandam prioridades. Em função do maior risco, a avaliação é recomendada também 10 anos antes;

9. Estruturação da disponibilidade e reabastecimento de fármacos e demais instrumentos para aplicação, bem como das providências para a atualização de conhecimentos e reciclagem de capacitações para o uso adequado;

10. Planejamento de ações de envolvimento/comprometimento do paciente/familiar cuidador, com atenção à informação e ao esclarecimento visando à aderência do já recomendado e à expectativa de passos futuros, bem como à identificação e comunicação de eventos adversos.

XVII - Epílogo

Três frases famosas sobre verdade:

1."... o oposto de uma verdade profunda pode bem ser outra verdade profunda..." Niels Henrik David Bohr (1885-1962), dinamarquês, Prêmio Nobel em Física.

Se todos concordarem com você, alguma coisa está errada, pois a unanimidade é burra é frase antológica de quem, pela obra, abalou convicções apontando verdades cruas do espírito humano: Nelson Falcão Rodrigues (1912-1980). Aceitá-la, todavia, contribui para uma unanimidade que desdiz a inteligência da concepção. Sempre há mais um ângulo.

2."... os homens, ocasionalmente, tropeçam numa verdade, mas a maioria deles levanta-se e prossegue como se nada houvesse acontecido..." Sir Winston Churchill (1874-1965), inglês, Prêmio Nobel em Literatura.

Paul Dudley White (1886-1973) escreveu sobre a longa "hibernação" do conceito de angina de peito proposto no século XVIII por William Heberden (1710-1801): "... era considerada rara por Austin Flint, em seu livro de Medicina em 1866 e por William Osler (de novo!), em seu renomado livro em 1892, quando surgiu o automóvel na década de 20 e as pessoas se tornaram mais prósperas e hipernutridas, a angina de Heberden tornou-se epidemia..." 9. O progresso da Medicina comporta uma sucessão de déjà vu.

3."... acredite nos que buscaram a verdade, duvide dos que a encontraram..." André Gide (1869-1924), francês, Prêmio Nobel em Literatura.

David Sackett (1934-....) um dos magos da Medicina Baseada em Evidências renunciou, no pico da glória, a "... escrever, ministrar cursos e atuar como árbitro em temas relacionados a Medicina Baseada em Evidências, em 2000103... a única redenção do pecado da competência profissional que conheço é a aposentadoria no seu campo e derivar a sua capacidade intelectual para novas áreas, onde, tendo se desprendido da maior parte do prestígio e sem afirmações pessoais para defender, aproveite da liberdade de debater novas evidências e idéias sobre os seus méritos passados... porque muitos especialistas são sugados para buracos negros, como funções administrativas, nas quais há menos chance de influenciar o progresso da ciência... a ligação do meu nome a um vínculo artificial de uma publicação ao movimento da Medicina Baseada em Evidências com a finalidade de promover vendas- sackettisation- feriu meus sentimentos e ganhou minha desaprovação... pareceristas parecem não resistir à tentação de aceitar ou rejeitar novas evidências ou idéias não pelo mérito científico das mesmas, mas pelo quanto concordam ou discordam de posições públicas dos especialistas nas matérias.. .assim novas idéias e novas investigações são obstadas por especialistas e lentifica-se o progresso em direção à verdade..."(DN). Dignidade não é para ser defendida, é para nos defender (Ralph Waldo Emerson, 1803-1882).

Esta postura representa um veemente apelo para a modéstia dos intelectuais (cientistas) e um puxão de orelha nos especialistas (saber técnico). Numa espécie de " indústria do conhecimento numa comunidade da verdade", floresceu a sacketização; uma vez as regras constituídas, houve uma "expansão para o mercado" com uma visão moral própria da concepção que diz respeito à "melhor evidência"; ela precisa do maior número de especialistas para "consumir" e, nem tantos cientistas para produzir e disseminar o conhecimento104.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação Acadêmica

Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

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Artigo recebido em 25/04/07; revisado recebido em 10/05/07; aceito em 30/05/07.

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    Max Grinberg
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Dez 2007
    • Data do Fascículo
      Nov 2007
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