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Fístulas Coronárias em um Paciente com uma Nova Mutação na Síndrome do QT Longo

Keywords:
Síndrome do QT Longo; Canalopatias; Torsades de Pointes; Anomalias dos Vasos Coronarianos; Fistula Arteriovenosa; Taquicardia Ventricular

Introdução

A síndrome do QT longo congênito (SQTL) é uma canalopatia cardíaca genética com penetrância variável caracterizada pelo prolongamento do intervalo QT corrigido (QTc) e predisposição à taquicardia ventricular polimórfica (TVP), que normalmente se apresenta com síncope ou morte súbita. Ela pode ser causada por mutações em diferentes canais de íons, resultando no prolongamento da repolarização do miocárdio1Morita H, Wu J, Zipes DP. The QT syndromes: long and short. Lancet. 2008;372(9640):750-63.. O curso clínico da SQTL durante a vida de um paciente é significativamente influenciado pelo genótipo e os fatores que adicionalmente comprometem a repolarização do miocárdio, incluindo o uso de drogas, alterações eletrolíticas séricas, doenças autoimunes, bradicardia grave, descompensação aguda de insuficiência cardíaca e isquemia do miocárdio2Emori T, Antzelevitch C. Cellular basis for complex T waves and arrhythmic activity following combined I(Kr) and I(Ks) block. J Cardiovasc Electrophysiol. 2001;12(12):1369-78..

Este relato apresenta a primeira descrição da TVP precipitada por isquemia miocárdica secundária a múltiplas fístulas coronárias em uma paciente com uma nova mutação causadora de SQTL.

Relato do Caso

Uma mulher de 47 anos apresentou-se ao serviço de emergência devido à síncope recorrente nos dois dias anteriores. Os episódios ocorreram durante esforços moderados a fortes e foram precedidos por dor no peito de curta duração. Ela era uma fumante crônica, mas não foram identificados outros fatores de risco cardiovasculares. Durante a adolescência, ela havia sido tratada com fenitoína por dois anos presumivelmente devido a uma desordem convulsiva. Desde então não houve novos episódios de perda de consciência e ela não estava recebendo nenhuma medicação. Não havia histórico familiar de morte súbita. O exame físico, radiografia de tórax e tomografia computadorizada de crânio foram normais. Um ECG inicial de 12 derivações durante o ritmo sinusal mostrou um prolongamento acentuado do intervalo QTc (640 ms), com inversão de onda T nas derivações precordiais, lateral e inferior (Figura 1, painel A). Além disso, episódios frequentes de TVP não sustentada foram documentados (Figura 1 - Painel B). O ecocardiograma revelou hipocinesia ântero-apical com fração de ejeção global preservada. Os resultados do hemograma completo, eletrólitos séricos, parâmetros da função renal, glicemia e hormônios da tireoide estavam normais. A troponina I estava ligeiramente elevada (0,59 ng/mL; intervalo de referência, < 0,07 ng/mL). O diagnóstico de SQTL foi presumido e a paciente foi tratada com sulfato de magnésio e betabloqueador, tornando-se assintomática e livre de eventos. A cineangiocoronariografia não mostrou estenose coronária significativa, mas foram encontradas fístulas nas artérias diagonais para a cavidade do ventrículo esquerdo (Figura 2). Para avaliar o significado funcional dessas anomalias coronárias, a paciente foi submetida à cintilografia de perfusão miocárdica com tetrofosmin-99mTc, que mostrou, em repouso e sob estresse, menor atividade apical e uma pequena área de baixa captação do radiofármaco no segmento apical da parede anterior, reversível em repouso. O sequenciamento direto dos genes KCNH2, KCNQ1 e SCN5A e revelou uma nova mutação frameshift heterozigótica no sexto exon do gene KCNH2, produzindo um stop códon prematuro: c.1232_1234delinsTTTGAA (p.Asp411Valfs*2). Nenhuma alteração patogênica foi encontrada nos outros dois genes. A paciente recebeu alta com 100 mg/dia de propranolol, com acompanhamento ambulatorial meticuloso e plano para aconselhamento genético.

Figura 1
Eletrocardiograma de admissão mostrando prolongamento do intervalo QT (painel A) e múltiplos episódios de taquicardia ventricular polimórfica não sustentada (painel B).
Figura 2
Coronariografia caudal direita mostrando pequenas fístulas que envolvem as artérias diagonais (setas).

Discussão

Vários fatores que aumentam a variabilidade e prolongam a repolarização do miocárdio, predispondo a arritmias ventriculares têm sido demonstrados. Na SQTL é possível descrever um espectro contínuo de risco de eventos cardíacos, baseados em uma combinação de causas que prolongam a duração do potencial de ação e intervalo QT, reduzindo a reserva de repolarização3Roden DM, Abraham RL. Refining repolarization reserve. Heart Rhythm. 2011;8(11):1756-7.. As respostas a fatores de prolongamento do QT diferem entre os indivíduos. Essa variabilidade em resposta a fatores adquiridos é acompanhada pela variabilidade à medida que uma determinada mutação na SQTL congênita prolonga o intervalo QT e causa arritmias.

No presente caso, relatamos uma associação incomum entre duas condições cardíacas raras: a manifestação fenotípica da SQTL congênita foi precipitada pela isquemia miocárdica secundária a fístulas coronárias, com base em critérios clínicos e fisiopatológicos.

Sabe-se que tanto a isquemia do miocárdio quanto a SQTL contribuem para taquiarritmias ventriculares que podem causar morte súbita cardíaca. Embora a arritmogenicidade da isquemia do miocárdio e da SQTL tenham sido bem documentadas, os efeitos da isquemia do miocárdio na presença da SQTL não são claros. Vários estudos têm sugerido que tanto o intervalo QT quanto a dispersão do QT, um índice da inhomogeneidade espacial dos tempos de recuperação ventriculares, são prolongados pela isquemia4Chauhan VS, Tang AS. Dynamic changes of QT interval and QT dispersion in non-Q-wave and Q-wave myocardial infarction. J Electrocardiol. 2001;34(2):109-17.. Além disso, a SQTL é frequentemente associada com o aumento da dispersão do QT. Um aumento da dispersão do QT teoricamente fornece um substrato para a reentrada funcional e tem sido associado a um aumento na incidência de arritmias ventriculares malignas e morte súbita5Barr CS, Naas A, Freeman M, Lang CC, Struthers AD. QT dispersion and sudden unexpected death in chronic heart failure. Lancet. 1994;343(8893):327-9.,6Zareba W, Moss AJ, Le Cessie S. Dispersion of ventricular repolarization and arrhythmic cardiac death in coronary artery disease. Am J Cardiol. 1994;174(6):550-3..

Em nossa paciente, as múltiplas fístulas da artéria coronária causaram isquemia miocárdica como documentado pela cintilografia miocárdica. A presença de fístulas coronárias é rara, com uma incidência de 0,1% a 0,2% em pacientes submetidos à angiografia coronariana. Elas podem ocorrer a partir de qualquer uma das três principais artérias coronárias, mas a maioria surge das artérias coronárias direita ou descendente anterior esquerda. Mais de 90% das fístulas drenam para dentro da circulação venosa. As complicações incluem insuficiência cardíaca congestiva, devido a um shunt cardíaco da esquerda para a direita, isquemia do miocárdio, ruptura de fístulas aneurismáticas e endocardite. As arritmias associadas com fístulas da artéria coronária são extremamente raras e incluem taquicardia ventricular, disfunção do nó sinusal e fibrilação atrial. Os mecanismos não são completamente compreendidos e, provavelmente, estão relacionados à isquemia7Gowda RM, Vasavada BC, Khan IA. Coronary artery fistulas: clinical and therapeutic considerations. Int J Cardiol. 2006;107(1):7-10.. O manejo de fístulas coronárias ainda é controverso e as recomendações são baseadas em pequenas séries retrospectivas. As principais indicações para o fechamento cirúrgico ou percutâneo com molas são os sintomas clínicos, principalmente de insuficiência cardíaca e isquemia miocárdica. No nosso caso, a correção das fístulas foi desencorajada devido ao seu elevado número e pequeno diâmetro. Além disso, a terapia com betabloqueador foi eficaz no controle dos sintomas isquêmicos e manifestações arrítmicas.

Este caso tem outra particularidade, uma vez que descreve uma SQTL tipo 2 devido a uma nova mutação (p.Asp411Valfs*2) no gene KCNH2(HERG). Embora essa mutação seja nova, a patogenicidade é altamente provável: a mutação leva a um frameshift e um stop códon prematuro dois aminoácidos após o ácido aspártico afetado. Analisamos essa nova mutação em relação à sua patogenicidade com o Mutation Taster (www.mutationtaster.org), um programa in-silico que prediz o potencial de alterações genéticas da doença. Essa análise classificou a mutação p.Asp411Valfs*2 como causadora de doenças. A posição p.Asp411, que está localizada no primeiro domínio transmembrana (S1) do HERG, tem um papel especial na proteína, uma vez que é uma das seis cargas negativas no domínio sensitivo de voltagem8Liu J, Zhang M, Jiang M, Tseng GN. Negative charges in the transmembrane domains of the HERG K channel are involved in the activation- and deactivation-gating processes. J Gen Physiol. 2003;121(6):599-614.. Além disso, a p.Asp411 cria um acoplamento funcional com a p.Lys538, na extremidade interior do domínio transmembrana S4. Estudos prévios de Liu et al.11 sobre a função desse códon mostrou que a mutagênese in vitro (p.Asp411Cys) resultando na protonação desse aspartato contribui para a via de sinalização pela qual o [H+] externo influencia alterações conformacionais nos domínios citoplasmáticos dos canais. A mudança de Asp para Val, como pode ser visto em nossa paciente, também está leva à protonação desse ácido aspártico, apoiando ainda mais a patogenicidade da nova alteração p.Asp411Valfs*2.

SQT2 é o segundo genótipo mais comum da SQTL, e ocorre em 35-45% dos pacientes genotipados com SQTL9Splawski I, Shen J, Timothy KW, Lehmann MH, Priori S, Robinson JL, et al. Spectrum of mutations in long-QT syndrome genes. KVLQT1, HERG, SCN5A, KCNE1, and KCNE2. Circulation. 2000;102(10):1178-85.. Tem sido demonstrado que o curso clínico da SQTL no decorrer da vida de um paciente afetado é influenciado pelo genótipo, e testes genéticos para os subtipos comuns da SQTL podem identificar uma mutação em 50 a 75% de probandos nos quais o diagnóstico parece ser correto com base nos aspectos clínicos. A estratificação de risco com base na genética é incentivada em alguns casos, provavelmente com implicações terapêuticas. Por exemplo, observações anteriores de Moss e cols.1010 Moss AJ, Zareba W, Hall JH, Schwartz PJ, Crampton RS, Benhorin J, et al. Effectiveness and limitations of beta-blocker therapy in congenital long QT syndrome. Circulation. 2000;101:616-23.constataram que pacientes com SQTL tipo 1 e SQT2 se beneficiaram significativamente da terapia com betabloqueador. Além disso, em uma família com um probando afetado e um defeito genético conhecido, a genotipagem dos membros da família pode ajudar a excluir o diagnóstico.

Em conclusão, que seja de nosso conhecimento, essa é a primeira descrição da associação entre a SQTL e as múltiplas fístulas coronárias, duas condições cardíacas raras, tanto quanto sabemos sem relação causal em sua origem primária. Episódios recorrentes de isquemia secundária às múltiplas fístulas coronárias podem ter desempenhado um papel importante como fatores precipitantes na gênese da TVP nessa paciente com uma nova mutação causadora de SQTL.

  • Fontes de financiamento
    O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.
  • Vinculação acadêmica
    Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

References

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov 2015

Histórico

  • Recebido
    12 Jan 2015
  • Revisado
    26 Fev 2015
  • Aceito
    26 Fev 2015
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