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Caso 01/2005 - Óbito em mulher de 59 anos com história de angina de peito e insuficiência cardíaca, após episódios repetitivos de dor precordial

CORRELAÇÃO ANATOMOCLÍNICA

Caso 01/2005 - Óbito em mulher de 59 anos com história de angina de peito e insuficiência cardíaca, após episódios repetitivos de dor precordial. Hospital Maternidade Celso Pierro - Grupo de Estudo em Correlação Anatomoclínica (GECAC) - Pontifícia Universidade Católica de Campinas / SP

Marcos Bianchini Cardoso; Roberto Chain Berber; Fernando Bianchini Cardoso; Carlos Osvaldo Teixeira; Maria Aparecida Barone Teixeira

São Paulo, SP

Mulher de 59 anos, branca, natural de Cabo Verde (MG) e residente em Campinas há 30 anos, procurou atendimento médico no nosso Serviço aos 56 anos de idade (2000), por dor precordial aos esforços, em aperto e queimação, acompanhada de dispnéia, sudorese, taquicardia e, esporadicamente, lipotímia que se iniciara aos 30 anos de idade. Havia também dispnéia aos esforços habituais, não acompanhada de dor precordial, lentamente progressiva, e edema vespertino.

A avaliação realizada 3 anos antes (1997), com uso de cineangiografia, revelou coronárias isentas de lesões obstrutivas, valvas cardíacas competentes, função sistólica de ventrículo esquerdo preservada e calcificação e amputação da ponta de ambos os ventrículos (fig. 1), quadro compatível com diagnóstico de endomiocardiofibrose com acometimento biventricular.


O ECG (2000) demonstrou ritmo sinusal, sobrecarga ventricular esquerda e alterações difusas da repolarização ventricular.

Um ano após início do acompanhamento médico houve surgimento de fibrilação atrial e o ecocardiograma revelou aumento biatrial, amputação de ponta de ventrículos e insuficiência mitral de grau leve. Os exames laboratoriais sempre estiveram dentro dos limites da normalidade e nunca foi demonstrada eosinofilia (tabela).

A investigação da dor anginosa incluiu a realização de cintilografia miocárdica de perfusão no repouso com uso de 99m Tc-SESTAMIBI (maio 2002) a qual evidenciou acentuada e extensa hipocaptação na parede anterior do ventrículo esquerdo.

Foi indicada nova cinecoronariografia, recusada pela paciente, que também recusou qualquer tratamento cirúrgico para sua doença.

Novamente procurou atendimento médico por dor precordial e necessitou internação hospitalar (agosto 2002). Ao exame físico encontrava-se em bom estado geral, cianótica, freqüência cardíaca de 90 bpm, pressão arterial era 110 x 70 mmHg; havia estertores crepitantes em bases pulmonares e tempo expiratório aumentado; a ausculta cardíaca revelou bulhas arrítmicas (fibrilação atrial) hipofonéticas, sem sopros. Não havia anormalidades no exame neurológico, de abdome e extremidades.

Durante a internação houve repetição e agravamento dos episódios dolorosos que se tornaram mais intensos e prolongados e no 5º dia apresentou subitamente parada cardiorrespiratória em fibrilação ventricular e faleceu.

Aspectos Clínicos

A endomiocardiofibrose (EMF), doença excepcionalmente encontrada fora dos trópicos, foi descrita pela primeira vez em 1948, contudo até hoje sua etiologia permanece desconhecida1. Caracteriza-se por fibrose do endocárdio e miocárdio de câmaras ventriculares, envolvendo sempre a ponta, estendendo-se, em grau variável, para a via de entrada e preservando a via de saída. A fibrose pode acometer os músculos papilares e levar a insuficiência das valvas atrioventriculares, sem acometimento das cúspides.

A alteração fisiopatológica principal da doença é a restrição ao enchimento diastólico dos ventrículos, com conseqüente aumento das pressões de enchimento, com congestão sistêmica e pulmonar. Dentre os sintomas, vale chamar a atenção para a dor precordial como manifestação freqüente nos casos de EMF com comprometimento ventricular esquerdo2-4. Outras manifestações descritas são ascite, derrame pericárdico e hepatomegalia sugerindo acometimento predominante no ventrículo direito e dispnéia e edema no acometimento biventricular.

O caso ora em discussão encaixa-se no perfil demográfico da casuística brasileira, ocorrida com maior freqüência em mulheres1, diferindo da África e Europa, em que há equivalência entre os sexos. Entretanto é observada maior freqüência em negros.

Os sintomas iniciaram-se na 3º década de vida da paciente, e desde o início havia a presença da dor precordial. Em casuística nacional a dor precordial foi relatada em 17,9% dos casos, porém foi mais freqüente naqueles com comprometimento do ventrículo esquerdo (41,1%)5. Apesar da alteração na cintilografia miocárdica perfusional, não foram encontradas alterações na coronariografia, nem alterações eletrocardiográficas e dos marcadores de lesão miocárdica nos episódios dolorosos.

Estudo realizado por Maehashi e col6 demonstrou que a presença de fibrose não uniforme de ventrículo esquerdo em portadores de cardiomiopatia dilatada foi mais freqüentemente associada a dor precordial, discinesias e acinesias da parede ventricular e morte súbita. A fibrose presente na endomiocardiofibrose é essencialmente não uniforme, com preenchimento do espaço intertrabecular e traves de fibrose invadindo o miocárdio, o que pode explicar a presença de dor. O tratamento de escolha nos casos sintomáticos é a cirurgia de ressecção da capa fibrosa endomiocárdica7. Outros autores8,9 advogam a ressecção mais precoce nas fases iniciais do quadro clínico, visando a preservação das valvas atrioventriculares. Foi oferecida tal opção terapêutica à paciente e foi recusada.

O evento final em pacientes com acometimento biventricular, como na paciente em questão, pode ser devido à insuficiência cardíaca ou à morte súbita por arritmias ventriculares ou tromboembolismo pulmonar.

Hipóteses diagnósticas: Insuficiência cardíaca restritiva; endomiocardiofibrose; distúrbio do ritmo cardíaco - fibrilação ventricular.

(Dr. Marcos Bianchini Cardodo)

Necropsia

O coração pesou 750g e a cardiomegalia era global. As coronárias estavam livres de aterosclerose significativa, comprovando a ausência de doença isquêmica do coração. O endocárdio de ambos os ventrículos era espessado e esbranquiçado, de consistência endurecida, mais proeminente à esquerda, onde alcançava a valva mitral (fig. 2). Havia comprometimento bilateral dos músculos papilares e da ponta dos ventrículos, com intensa calcificação, achados concordantes com as imagens vistas à ventriculografia e ao ecocardiograma. O exame anatomopatológico confirmou a presença de intensa fibrose e calcificação endocárdica (fig. 3). Os pulmões e fígado apresentavam sinais de congestão passiva crônica.



Diagnóstico anatomopatológico: endomiocardiofibrose biventricular com calcificação.

(Dr. Roberto Chain Berber, Ac. Fernando Bianchini Cardoso)

Comentários

Apesar da etiologia da EMF não estar completamente elucidada, existem evidências implicando a eosinofilia na sua gênese pois as fases tardias da EMF e da cardiopatia de Loeffler apresentam aspectos anatômicos e histopatológicos indistingüíveis. Além disso, a maioria dos portadores da síndrome hipereosinofílica idiopática desenvolve cardiopatia de Loeffler. Outra evidência a favor dessa teoria é que indivíduos com eosinofilia secundária a neoplasias, doenças de hipersensibilidade, auto-imunes e parasitárias freqüentemente apresentam espessamento endocárdico semelhante aos casos de EMF e de Loeffler10. Diversas proteínas dos grânulos dos eosinófilos têm capacidade tóxica para a membrana celular e mitocôndrias de cardiomiócitos, células endoteliais e hemácias11.

Ressalte-se que na EMF a eosinofilia não se mantém ao longo do curso da doença e nos casos em que o diagnóstico é feito na fase tardia da doença geralmente está ausente.

Entretanto, estudos mais recentes demonstraram ausência de episódios de eosinofilia na evolução de pacientes que desenvolveram fibrose endomiocárdica ventricular ou apresentaram recidiva da doença em ventrículo operado, o que caracteriza a EMF como doença progressiva e torna difícil relacioná-la à eosinofilia. Além disso, no nosso meio, a associação entre eosinofilia e EMF não tem sido demonstrada tanto na fase aguda quanto na fase crônica do doença1,2. Ademais, os achados histopatológicos geralmente incluem somente pequeno número de eosinófilos.

Todos os exames complementares realizados foram compatíveis com EMF, exceto a cintilografia miocárdica de perfusão que revelou defeito fixo de captação. Tal hipocaptação em parede anterior pode ser devida à intensa fibrose endomiocárdica ou à atenuação da emissão radioativa pela presença de tecido mamário, sendo mais provável a presença da fibrose como causa desse achado.

Finalmente, chama-nos a atenção neste caso, a calcificação biventricular maciça, evento raro nesta doença12, além do longo período de sobrevivência da paciente, já que apresentava acometimento biventricular, insuficiência cardíaca classe funcional III, e insuficiência mitral, todos fatores de mau prognóstico, relacionados com sobrevida máxima de 7 anos1,2,12.

Comparando o resultado pós-cirúrgico descrito no relato de Morrone e cols.12, com a longa sobrevida apresentada neste caso, fica a dúvida se a calcificação maciça endocárdica representa um marcador de pior prognóstico e se a cirurgia seria a melhor conduta para os casos de calcificação biventricular maciça, pela possibilidade da extensa calcificação endocárdica representar uma maior gravidade da doença com menor possibilidade de recuperação miocárdica frente à lesão cirúrgica, além de determinar uma dificuldade técnica para clivagem dos planos, prolongando o tempo cirúrgico e aumento a possibilidade de sangramento do miocárdio. Assim, persiste a necessidade de estudos sobre a etiologia e evolução dos portadores de endomiocardiofibrose.

(Dra. Maria Aparecida Barone Teixeira e Dr. Carlos Osvaldo Teixeira)

Referências

1. Lira VMC. Endomiocardiofibrose: Patologia. Arq Bras Cardiol 1996; 67: 273-7.

2. Barretto ACP, Pileggi F. Endomiocardiofibrose: cem casos, dez anos de experiência. Arq Bras Cardiol 1988; 51/1: 117-20.

3. Barretto ACP, Luz PL, Oliveira AS, et al. Determinants of survival in endomyocardial fibrosis. Circulation 1989; 80: I-177-82.

4. Gupta PN, Valiathan MS, Balakrishnan KG, Kartha CC, Ghosh MK. Clinical course of endomyocardial fibrosis. Br Heart J 1989; 62: 450-4.

5. Barreto ACP, Mady C, Fernandez EA, et al. Quadro clínico da endomiocardiofibrose. Correlação com a intensidade da fibrose. Arq Bras Cardiol 1988, 50: 401-5.

6. Maehashi N, Yokota Y, Takarada A, et al. Relationship between segmental left ventricular wall motion abnormalities and pathological findings in patients with dilated cardiomyopathy. J Cardiol 1987; 17: 273-84.

7. Child JS, Perloff JK. The restrictive cardiomyopathies. Cardiol Clin1988;6:289.

8. Oliveira AS, Barretto ACP, Mady C, et al. Surgical treatment of endomyocardial fibrosis: a new approach. J Am Coll Cardiol 1990; 16: 1246-51.

9. Oliveira AS, Dallan LAO, Barretto ACP, Mady C, Jatene AD. Cirurgia da endomiocardiofibrose com preservação das valvas atrioventriculares. Arq Bras Cardiol 1996; 67: 289-95.

10. Vianna CB, Barretto ACP, Bellotti G. Correlação entre eosinofilia e endomiocardiofibrose. Situação atual. Ar Bras Cardiol 1990; 54: 247-50.

11. Brockington IF, Olsen EGF. Loffler endocarditis and Davies' endomyocardial fibrosis. Am Heart J 1973; 85: 308-22.

12. Marrone LFR, Moreira AELC, Lopez MH, Kajita LJ, Potério DI, Arie S. Endomiocardiofibrose com calcificação endocárdica maciça biventricular. Arq Bras Cardiol 1996; 67: 103-5.

Editor da Seção: Alfredo José Mansur - E-mail: ajmansur@incor.usp.br

Editores Associados: Desidério Favarato; Vera Demarchi Aiello - E-mail: dclfavarato@incor.usp.br; anpvera@incor.usp.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Mar 2005
  • Data do Fascículo
    Fev 2005
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