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Reabilitação não supervisionada ou semi-supervisionada: uma alternativa prática

EDITORIAL

Reabilitação não supervisionada ou semi-supervisionada. Uma alternativa prática

Japy Angelini Oliveira Filho; Xiomara Miranda Salvetti

São Paulo, SP

Escola Paulista de Medicina - UNIFESP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Japy Angelini Oliveira Filho Rua Tapejara, 109 Cep 05594-050 - São Paulo - SP E-mail: japyaof@cardiol.br; japyoliveira@uol.com.br

Há séculos a medicina chinesa reconhece os benefícios do exercício para a saúde. Huang-Ti, o imperador Amarelo, viveu na China em 2600 a.C. e a ele é atribuída a autoria do Nei Ching, onde consta a citação: "O corpo precisa de exercício, só que não deve ser ao ponto de exaustão. O exercício expele o ar viciado do organismo, melhora a livre circulação do sangue e afasta a doença. Os degraus da porta sempre usados jamais apodrecem. É, por isso, que os antigos praticavam os movimentos... para evitarem a velhice".

Atualmente em países desenvolvidos, pouco menos de 25% dos pacientes elegíveis para reabilitação participam de programas de treinamento em centros especializados1. Após cirurgia de revascularização, esses valores atingem 25 a 50% dos casos2. Entre nós, a despeito da falta de estatísticas, as oportunidades são, reconhecidamente, muito menores. Entre os pacientes que participam de programas de reabilitação supervisionada, em países desenvolvidos, 25 a 50% desistem do treinamento em 6 meses e, cerca de mais de 90%, em um ano1,3. Entre nós, não existem dados estatísticos publicados sobre reabilitação supervisionada. Os protocolos pertinentes não se têm mostrado exeqüíveis, na prática diária, dadas as inúmeras dificuldades de ordem social e econômica: distância do centro de reabilitação, problemas de horário, custos, falta de cobertura por convênios4, além de ausência quase absoluta de apoio governamental. Assim, a reabilitação supervisionada não se torna uma solução prática e a reabilitação não supervisionada pode ser uma alternativa razoável para pacientes coronarianos considerados de baixo risco5. Após episódio de infarto do miocárdio, cerca de 55% dos sobreviventes apresentariam função ventricular preservada, ausência de isquemia miocárdica nos testes funcionais e mortalidade no 1º ano de 1 a 3%6, tornando-se candidatos em potencial para reabilitação não supervisionada.

A elegibilidade para reabilitação não supervisionada varia pouco de acordo com diferentes autores7-9. Segundo a Sociedade Brasileira de Cardiologia, não são elegíveis os pacientes com VO2 pico <18ml/kg/min (5MET), aparecimento de angina ou outra manifestação clínica de isquemia do miocárdio em carga <18ml/kg/min (5MET), infarto do miocárdio extenso com fração de ejeção <35% em repouso, teste ergométrico com redução de fração de ejeção de 10% ao esforço, queda da pressão arterial sistólica no teste ergométrico, arritmia ventricular complexa, intervalo QT corrigido >440 ms, antecedentes de parada cardíaca primária, inabilidade de automonitorização e aderência ao exercício, obesidade importante, hipertensão arterial refratária e diabetes mellitus descompensado. Na ausência de contra-indicações, são elegíveis os pacientes estáveis, após seis meses de treinamento, que apresentem conhecimento suficiente do treinamento aeróbio, temperamento e motivação capazes de total aderência ao treinamento8. A necessidade de treinamento prévio tem sido suprimida em inúmeros relatos, e substituída por consultas, demonstrações e palestras em grupos2,10-14. Nesses casos, a reabilitação não supervisionada se torna exeqüível apenas para pacientes com perfil psicológico e sociocultural adequado.

Em nossa Instituição, fomos orientados pela Comissão de Ética em Pesquisa a realizar a reabilitação não supervisionada mediante protocolo de pesquisa, tendo em vista aspectos médico-legais. Entretanto, tal exigência não se aplica a consultórios médicos, onde a relação adequada médico-paciente é sufuciente. Em se tratando de projeto inicial em nosso meio, temos sido mais rigorosos na seleção dos pacientes e considerado elegíveis para reabilitação não supervisionada os pacientes classe B (Sociedade Brasileira de Cardiologia)8 (quadro I), incluindo como condição de inegibilidade a existência de intervalo QT corrigido >440 ms.


Os programas de reabilitação não supervisionada têm-se mostrado eficientes para aumentar a potência aeróbica, a capacidade funcional e modificar os fatores de risco coronariano4. Em recente revisão da literatura, registraram-se, até presentemente, 22 relatos, abrangendo 1.895 pacientes15. A elevação do pico de consumo de oxigênio atingiu, segundo a duração do programa, em média, 12% (duas a quatro semanas)16-18, 14% (dois meses)12,19, 18% (três meses)20, 24% (seis meses)1,2,13,21-23 e 30% (acima de um ano)14 (tab. I).

Descreveram-se aumentos significativos do limiar anaeróbio em 11% e 14%, respectivamente, em treinamento de um mês e de um ano18. Em estudo randomizado, Brubaker e cols. verificaram elevações semelhantes da potência aeróbia e do HDL-colesterol em pacientes randomizados submetidos a reabilitação supervisionada e reabilitação não supervisionada durante 9 meses4. Entre nós, após programa de 19 a 79 meses (mediana de 31 meses), registrou-se aumento significativo na relação VO2 pico / freqüência cardíaca, comparando-se o grupo treinado com grupo controle pareado4. Elevações significativas da fração de ejecão no pico do esforço após 8 meses de treinamento24, da sensibilidade ao baroreflexo e do RRSD (R-R interval standard deviation) em 15 dias de condicionamento físico também foram relatadas16.

Tem sido documentados benefícios da reabilitação não supervisionada em relação à qualidade de vida, sociabilidade e aspectos psicológicos. Kugler e cols. relataram redução significativa nos escores do Manifest Anxiety Scale, de 13%, 37% e 38%, em pacientes submetidos, respectivamente, a reabilitação supervisionada, reabilitação supervisionada associada a reabilitação não supervisionada e reabilitação não supervisionada19. Em estudo randomizado (reabilitação supervisionada vs reabilitação não supervisionada), Arthur e cols. constataram elevações significativas na qualidade de vida, avaliada pelo SF-36 (Medical outcomes study — 60 item short form survey), e no grau de sociabilidade, avaliado pelo ISEL (Interpersonal suport evaluation list), apenas no grupo de pacientes submetidos a reabilitação não supervisionada2.

Em nossa Instituição, antes do início do treinamento físico, avaliam-se as condições cardiovasculares de elegibilidade e pesquisam-se eventuais afecções associadas (diabetes mellitus, dislipemia, anemia, hiperuricemia, hipertensão arterial, osteoporose, osteoartrose, afecções ginecológicas e urológicas). A seguir, o paciente é entrevistado por fisioterapeuta e médico, quando é explicado o protocolo de treinamento. Com fisioterapeuta são realizadas duas sessões de treinamento e uma palestra educativa sobre os fatores de risco. Os pacientes recebem uma caderneta de orientação e controle da atividade física25 e efetuam retornos mensais com médico e fisioterapeuta, sendo encorajados a procurar o Setor em caso de intercorrências. A duração do programa é de três meses. Em outros protocolos, são realizadas chamadas telefônicas semanais ou quinzenais para controlar o treinamento e estimular a aderência. Deste modo, consideramos a denominação reabilitação não supervisionada, embora consagrada, imprópria, além de inadequada para algumas circunstâncias, considerando mais adequada a expressão reabilitação semi-supervisionada26.

Não há relatos de intercorrências relacionadas ao treinamento na reabilitação não supervisionada. Segundo dados fornecidos por Hartley (não publicados), há referência de risco de parada cardíaca de 1/98.717 pacientes/hora em reabilitação supervisionada e de 1/70.000 pacientes/hora em reabilitação não supervisionada9. Esta taxa corresponderia a uma parada cardiorrespiratória a cada 5 anos, em 100 pacientes exercitados três vezes por semana, com aderência de 100%14. Em estudo randomizado, 3 a 26 semanas pós-infarto do miocárdio, Miller e cols. não relataram diferenças significativas na incidência de eventos cardíacos. Os pacientes foram distribuidos em quatro grupos: reabilitação supervisionada, reabilitação não supervisionada, grupo não treinado e grupo controle, tendo sido a incidência de eventos coronarianos de, respectivamente, 11%, 15%, 12% e 19%22. No EAMI Trial (Exercise in Anterior Myocardial Infarction), Giannuzzi e cols. não encontraram alterações significativas na dimensão e remodelação ventriculares em pacientes treinados e não treinados, com fração de ejeção > 40%21. Nos casos com fração de ejeção < 40%, nos grupos treinado e controle, ocorreram variações significativas no volume diastólico final (grupo treinado 74 ±11 a 77±15 ml/m2; grupo controle 77±1 a 85± 17 ml/m2) e no percentual de dilatação regional (grupo treinado 42±18 a 44±26 %; grupo controle 46±18 a 57±21 %)21.

Reabilitação não supervisionada tem mostrado altos índices de aderência ao treinamento4. Em três estudos randomizados as taxas de aderência foram bastante elevadas (tab. II).

Os custos da reabilitação não supervisionada são evidentemente inferiores quando comparados às despesas durante a reabilitação supervisionada. Em 42 pacientes submetidos a reabilitação supervisionada (seis meses), Carlson e cols. relataram custo de US $ 2,349.00 por paciente, reduzido a US $ 1,519.00 por paciente em 38 pacientes em programa de reabilitação supervisionada (1 mês) seguido de reabilitação não supervisionada (5 meses)1.

Desta forma, conclui-se que a reabilitação não supervisionada, mais apropriadamente denominada reabilitação semi-supervisionada, é uma alternativa prática, eficaz e segura diante da reabilitação supervisionada, considerando-se os pacientes coronarianos de baixo risco (classe B, SBC), podendo ser aplicada a determinados pacientes classe C (SBC), que, após período de treinamento, adquiram grau de segurança suficiente.

Soluções simples poderiam viabilizar a reabilitação não supervisionada em vários locais: A) instalação de postos de atendimento cardiológico de emergência, em parques, praias (anexos aos postos de salva-vidas), logradouros públicos, B) criar "clubes coronarianos", viabilizando a prática de exercícios nessa população 27. Áreas físicas, livres e anexas a hospitais, postos de saúde, prontos-socorros poderiam, também servir de local de treinamento. Dadas as dificuldades logísticas, a assistência de fisioterapeutas, enfermeiras, psicólogos, nutricionistas e assistentes sociais poderia ser realizada em centros comunitários regionais, gerando-se empregos nessas áreas, permanecendo o atendimento médico em consultórios e ambulatórios. Programas de palestras sobre condicionamento físico, fatores de risco, receitas culinárias saudáveis, práticas de controle do estresse, poderiam ser divulgados em cursos extensivos aos pacientes/familiares, nesses centros de referência, em horários adequados ao público alvo (horários noturnos, fins de semana). Folders e cartilhas, em linguagem acessível, poderiam ser distribuídas nessas ocasiões. Programas "Agita São Paulo", e agora, "Agita Europa", deveriam ser implementados nesse público alvo, bem como em toda a população em geral.

Segundo o parecer do Conselho Federal de Medicina (nº 4141/2004), "compete exclusivamente ao médico, após o diagnóstico da doença, prescrever a terapêutica adequada ao paciente e, inclusive, a prescrição da atividade física". Desta forma, os cardiologistas deveriam ser treinados e estimulados a orientar a prática de exercícios no próprio consultório28, incluindo no receituário a modalidade, intensidade, duração e frequência do exercício. A execução do treinamento caberia aos fisioterapeutas e professores de educação física, todos interagindo para a melhoria da saúde entre os pacientes cardiopatas.

Referências

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Enviado para Publicação em 25/06/2003

Aceito em 16/06/2004

  • Endereço para correspondência
    Japy Angelini Oliveira Filho
    Rua Tapejara, 109
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    • Publicação nesta coleção
      11 Nov 2004
    • Data do Fascículo
      Nov 2004
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