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I Diretriz Latino-Americana para o Diagnóstico e Tratamento da Cardiopatia Chagásica

I Diretriz Latino-Americana para o Diagnóstico e Tratamento da Cardiopatia Chagásica

Correspondência Correspondência: Sociedade Brasileira de Cardiologia Av. Marechal Câmara, 160/330 - Centro Rio de Janeiro - CEP 20020-907 E-mail: sbc@cardiol.br

REALIZAÇÃO

Sociedade Brasileira de Cardiologia

COORDENADOR DE NORMATIZAÇÕES E DIRETRIZES DA SBC

Iran Castro

COORDENADOR GERAL

Jadelson Pinheiro de Andrade

COMISSÃO DE REDAÇÃO E SÍNTESE

Angelo Amato Vincenzo de Paola, Fábio Vilas-Boas, Gláucia Maria Moraes Oliveira, Jadelson Pinheiro de Andrade e José Antônio Marin Neto

COMISSÃO ORGANIZADORA NACIONAL

Antônio Carlos Palandri Chagas, Fábio Vilas-Boas, Eduardo Augusto Victor Rocha, Gláucia Maria Moraes Oliveira, Jadelson Pinheiro de Andrade, Leandro Ioschpe Zimerman, Luiz Antonio de Almeida Campos, Marcelo Westerlund Montera, Márcia de Melo Barbosa e Jorge Ilha Guimarães

COMISSÃO ORGANIZADORA INTERNACIONAL

Carlos Morillo (Canadá), Harry Acquatella (Venezuela), Jorge Mitelman (Argentina), Juan Bautista Gonzalez Moreno (Uruguai), Luisa Gimenez (Argentina) e Wistremundo Dones (Porto Rico)

EDITORES

Abílio Augusto Fragata Filho, Angelo Amato Vincenzo de Paola, Dirceu Rodrigues Almeida, Edimar Alcides Bocchi, Fábio Vilas-Boas, Fernando Bacal, João Carlos Pinto Dias, José Antônio Marin Neto, Maria da Consolação Vieira Moreira, Sérgio Salles Xavier, Wilson Alves de Oliveira Junior

GRUPOS DE TRABALHO

Grupo 1 - Introdução e Epidemiologia

Coordenador: Fernando Bacal

Participantes: Armênio Costa Guimarães, Felix Jose Alvarez Ramires e João Manoel Rossi Neto

Grupo 2 - Patogenia e Fisiopatologia da Cardiopatia Chagásica Crônica

Coordenador: José Antônio Marin Neto

Participantes: Andréa Silvestre de Sousa, Antônio Luiz P. Ribeiro, Edécio Cunha Neto, Roberto Coury Pedrosa e

Zilton A. Andrade

Grupo 3 - Apresentação Clínica e Classificação

Coordenador: Fábio Vilas-Boas

Participantes: Antonio Carlos Pereira Barretto, Barbara Maria Ianni, Salvador Rassi e Sergio Perrrone (Argentina)

Grupo 4 - Diagnóstico Clínico, Diagnóstico Diferencial e Prognóstico da Cardiopatia Chagásica Crônica

Coordenador: Dirceu Rodrigues Almeida

Participantes: Alejandro Luquetti Ostermayer, Antonio Carlos Pereira Barretto, Carlos Eduardo Rochitte, Renato Barroso Pereira de Castro

Grupo 5 - Tratamento Etiológico da Doença de Chagas

Coordenador: Abílio Augusto Fragata Filho

Participantes: Alejandro Luquetti Ostermayer, Maria de Lourdes Higuchi e Salvador Rassi

Grupo 6 - Tratamento da Insuficiência Cardíaca na Cardiopatia Chagásica

Coordenador: Maria da Consolação Vieira Moreira

Participantes: Bárbara Maria Ianni, Carlos Morillo (Canadá), Faustino Torrico (Bolívia), Felix José Alvarez Ramires, Luciana Armaganijan (Canadá) e Reinaldo Bulgarelli Bestetti

Grupo 7 - Tratamento das Arritmias e Distúrbios de Condução na Cardiopatia Chagásica

Coordenador: Angelo Amato Vincenzo de Paola

Participantes: Adalberto Menezes Lorga Filho, Diego Vanegas (Colômbia), Eduardo Argentino Sosa, Guilherme Drummond Fenelon Costa, Luiz Roberto Leite da Silva, Martino Martinelli Filho e Silas dos Santos Galvão Filho

Grupo 8 - Transplante Cardíaco e Celular e Outras Terapias Cirúrgicas na Cardiopatia Chagásica Crônica

Coordenador: Edimar Alcides Bocchi

Participantes: João David de Souza Neto, José Henrique Andrade Vila, Maria de Lourdes Higuhi, Mirta Diez (Argentina), Reinaldo Bulgarelli Bestetti, Ricardo Ribeiro dos Santos e Victor Sarli Issa

Grupo 9 - Subgrupos Especiais na Doença de Chagas: Coinfecção (HIV); Terapia Imunossupressora e transplante não-cardíaco; Grávidas; Recém-nascidos; Crianças e adolescentes; Soropositivos e Bancos de Sangue

Coordenador: Sergio Salles Xavier

Participantes: Alejandro Marcel Hasslocher Moreno, Ana Marli C. Sartori, Andréa Silvestre de Sousa, Christina Gallafrio Novaes, Jaime Altcheh, Maria A. Shikanai Yasuda e Pedro Emmanuel Alvarenga Americano do Brasil

Grupo 10 - Recomendações para Constituição de Serviços Estruturados de Acompanhamento a Pacientes com Cardiopatia Chagásica Crônica

Coordenador: Wilson Alves de Oliveira Junior

Participantes: Alejandro Marcel Hasslocher Moreno, Dayse Elizabeth Campos, Divina Seila de Oliveira Marques, Jorge Mitelman (Argentina), Luisa Gimenez (Argentina), Maria da Glória Aureliano de Melo Cavalcanti e Silvia Marinho Martins

Grupo 11 - Recomendações de Estratégias de Saúde Pública, Controle da Transmissão e Erradicação da Doença de Chagas; Identificação de Soro Positivos; Controle do Vetor e Aspectos Médicos Legais

Coordenador: João Carlos Pinto Dias

Participantes: Alejandro Luquetti Ostermayer, Antônio Carlos Silveira, Hélio de Souza, e Roberto Salvatella (Uruguai)

Foram utilizadas as seguintes definições para grau de recomendação e nível de evidência

Classe de recomendação

Classe I: Condições para as quais há evidências conclusivas, ou, na sua falta, consenso geral de que o procedimento é seguro e útil/eficaz.

Classe II: Condições para as quais há evidências conflitantes e/ou divergência de opinião sobre segurança e utilidade/eficácia do procedimento.

Classe IIa: Peso ou evidência/opinião a favor do procedimento. Aprovado pela maioria dos profissionais.

Classe IIb: Segurança e utilidade/eficácia menos bem estabelecidas, não havendo predomínio de opiniões a favor do procedimento.

Classe III: Condições para as quais há evidências e/ou consenso de que o procedimento não é útil/eficaz e, em alguns casos, pode ser prejudicial.

Nível de evidência

Nível A: Dados obtidos a partir de múltiplos estudos randomizados de bom porte, concordantes e/ou de metanálise robusta de estudos clínicos randomizados.

Nível B: Dados obtidos a partir de metanálise menos robusta, a partir de um único estudo randomizado ou de estudos não randomizados (observacionais).

Nível C: Dados obtidos de opiniões consensuais de especialistas.

Vale salientar que níveis de evidência classificados como B ou C não podem ser interpretados como recomendações fracas. Existem muitas recomendações consensuais, portanto com classe de recomendação I, com nível de evidência C (opiniões de expertos). Por outro lado, algumas indicações consideradas controversas (grau de recomendação II) poderão estar alicerçadas em ensaios clínicos randomizados (nível de evidência A).

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Apresentação

A descrição do ciclo evolutivo da Doença de Chagas pelo cientista brasileiro Carlos Chagas, publicado nas "Memórias do Instituto Osvaldo Cruz" com o título "Nova tripanozomiaze humana: estudos sobre a morfolojia e o ciclo evolutivo do Schizotrypanum cruzi n. gen. , n. sp. , ajente etiolojico de nova entidade morbida do homem" completou o seu centenário em 2009.

A diretoria da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), no ensejo da relevância e do significado deste fato para a medicina brasileira e internacional, propôs celebrar essa data elaborando uma diretriz acerca do diagnóstico e tratamento da cardiopatia chagásica.

Observando o aspecto global que hoje tem a Doença de Chagas, problema epidemiológico relevante em diversos países da América do Sul e do Norte, com extensão a países da Europa e de outros continentes, a SBC optou por convidar as Sociedades Sul-Americana e Interamericana de Cardiologia para compartilhar a responsabilidade de elaboração deste documento, delineando-se então a I Diretriz Latino-Americana para o Diagnóstico e Tratamento da Cardiopatia Chagásica.

A elaboração da diretriz foi produzida a partir de um corpo editorial formado por cardiologistas brasileiros e da América Latina. Os cardiologistas participantes apresentam reconhecida experiência e qualificação no tema, traduzido pelos numerosos trabalhos publicados em revistas científicas de referência nacional e internacional e foram apoiados por um expressivo grupo de cardiologistas colaboradores com igual qualificação, que integram e formam os grupos de trabalho.

A SBC espera que o universo deste objetivo seja ampliado conjuntamente com as Sociedades de Cardiologia da América Latina para que reflita o conhecimento científico internacional e, dessa forma, obtenha aceitação, reconhecimento e aplicação pelos médicos cardiologistas dos países envolvidos.

A Sociedade Brasileira de Cardiologia, Sul-Americana e Interamericana de Cardiologia, os editores e todo o grupo de colaboradores dessa diretriz esperam que a elaboração e divulgação deste documento contribua para uma melhor forma de enfrentamento e normatização da conduta frente a prevenção, diagnóstico e tratamento de todas as formas de apresentação da cardiopatia chagásica.

Jadelson Andrade

1. Introdução e epidemiologia

Quando se comemoram os 100 anos da descoberta da Doença de Chagas (DC), nada mais oportuno que se festeje este acontecimento com a edição da primeira Diretriz Latino-Americana para o seu manejo e tratamento, e que se renda homenagem àquele que, com genialidade, descreveu a doença, desde a sua etiologia até o quadro clínico, incluindo o principal modo de transmissão e a sua epidemiologia. Carlos Chagas (Figura 1) procedeu de maneira inversa ao usual em doenças infecciosas, nas quais a apresentação clínico-epidemiológica da doença motivou a busca do agente causal e do modo de transmissão, como, por exemplo, do bacilo da tuberculose, descoberto por Robert Koch em 1822.


Em fins de 1907, já médico do Instituto Oswaldo Cruz, onde ingressara em 1906, três anos após sua graduação pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, hoje Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Carlos Chagas e Belisário Penna foram encarregados, por Oswaldo Cruz, do controle de surto de malária em Lassance, arraial de Minas Gerais, próximo às margens do rio São Francisco, onde esta doença impedia o desenvolvimento dos trabalhos em acampamento da Estrada de Ferro Central do Brasil. Logo em sua chegada em Lassance, foi procurado pelo engenheiro da ferrovia, Cantarino Mota, que o alertou para um inseto que vivia nas frestas das paredes de pau-a-pique das casas e que, à noite, saía para picar os moradores, geralmente no rosto, sendo por isto conhecido como "barbeiro"1. Carlos Chagas iniciou, então, um ciclo investigativo que demonstra seu brilhante talento nato de pesquisador. Encontrando protozoários no intestino desses hematófagos, enviou barbeiros para o Instituto Oswaldo Cruz, a fim de infectar animais experimentais, que adoeceram, e no sangue dos quais identificou uma nova espécie de parasito, que denominou Trypanosoma cruzi, em homenagem a Oswaldo Cruz. Voltou-se, então, à caracterização da doença humana quando, em 23 de abril de 1909, identificou o T. cruzi no sangue de uma menina, com doença aguda, febril, de dois anos de idade, chamada Berenice. Assim descreveu o primeiro caso de DC agudo, com sobrevivência da paciente. Nesse mesmo ano, difundiu a sua descoberta, descrevendo o ciclo evolutivo da doença em notas prévias no Brasil Médico, no Archiv fur Schiffs- und Tropen Hygiene, seguidas de extenso artigo, em português e alemão, publicado nas Memórias do Instituto Oswaldo Cruz sob o título de "Nova tripanosomiaze humana. Estudos sobre a morfolojia e o ciclo evolutivo do Schizotrypanum cruzi n. gen. , n sp. , ajente etiolojico de nova entidade morbida do homem2".

A partir da identificação da nova doença, em 1909, até seu falecimento, em 1934, Chagas se dedicou a ampliar os conhecimentos sobre a tripanossomíase americana. Lassance tornou-se um posto permanente para o estudo dessa e de outras endemias rurais e, em 1912, Oswaldo Cruz obteve verba federal para mapear a distribuição geográfica da doença e equipar um pequeno hospital naquela estação ferroviária, ao tempo que iniciava, em Manguinhos, a construção de um hospital destinado a estudar os casos de lá referidos. O prosseguimento dessas pesquisas em Lassance e no Instituto Oswaldo Cruz permitiu a Chagas desenvolver um estudo completo sobre os aspectos essenciais da nova tripanossomíase. Para isso, contou com a contribuição de vários pesquisadores de Manguinhos, entre os quais se destacam Gaspar Vianna, Arthur Neiva, Eurico Villela, Magarinos Torres, César Guerreiro, Astrogildo Machado, Evandro Chagas e Emmanuel Dias.

Finalizando o seu ciclo de contribuição direta sobre a DC, Carlos Chagas publicou artigo de revisão3 no qual aborda os aspectos epidemiológicos e etiopatogênicos da doença, com destaque à transmissão congênita da doença, recém-descrita por Gaspar Vianna, um dos seus associados. Vale salientar, também, a descrição das formas clínicas com desfecho letal raro ou remissão na fase aguda e a evolução para a insuficiência cardíaca (IC) e/ou morte súbita (MS) nas formas crônicas. Morte súbita, como evento primário na evolução da doença, era registro frequente nas áreas endêmicas, ocorrendo em indivíduos aparentemente sadios, enquanto a IC caracterizava a forma clínica que serviu de base para o seu reconhecimento clínico e patológico. Foram descritas, também, detalhadamente, as arritmias, comuns nesta condição, atriais, ventriculares e atrioventriculares, estas últimas sob a forma de bloqueios de grau variável. Esse estudo foi realizado por meio do registro cuidadoso do pulso arterial e venoso, por técnica direta, e, posteriormente, com auxílio do eletrocardiograma (ECG), técnica ainda incipiente, mas dominada pelo cardiologista Eurico Villela, na época.

Dentre as especulações para a não concessão do prêmio Nobel a Carlos Chagas, dois aspectos merecem destaque: primeiro, a falta de um maciço apoio da comunidade científica e acadêmica brasileira da época às indicações; segundo, o fato de a doença ser restrita a países da América Latina, fora dos interesses colonialistas de nações europeias e dos Estados Unidos. Contudo, a História cuidou de engrandecer, cada vez mais, a contribuição científica de Carlos Chagas, que deve permanecer como paradigma de cientista, médico e sanitarista, para nós brasileiros e para o resto do mundo4.

1.1. Aspectos epidemiológicos no Brasil

Desde sua descrição, a tentativa de controlar a transmissão da DC no Brasil se mostrou um desafio. Na década de 1970, os esforços e pressões políticas e sociais em atos organizados de campanhas para o controle da doença eram intensos. Entretanto, somente em 1991, o desenvolvimento das Iniciativas Subregionais de Controle da DC pelos Países do Cone Sul alavancou esse controle5.

Campanhas organizadas e coordenadas para o controle do vetor triatomídeo e da transmissão por via transfusional, com maior rigor nos bancos de sangue, proporcionaram significativa redução de novos casos. Em junho de 2006, o Brasil recebeu da Organização Mundial da Saúde (OMS) o certificado de eliminação da transmissão da DC pelo vetor silvestre Triatoma infestans6. Isso, de forma alguma, representa a erradicação da doença, pois surtos isolados em diferentes estados brasileiros e registro de casos agudos esporádicos continuam a ocorrer. A redução na transmissão confirma-se comparando dados de 1975-1985 com aproximadamente 4.500.000 de indivíduos infectados e, 30 anos mais tarde, em 2005, com apenas 1.900.000 estimados7. Em levantamento realizado pelo Ministério da Saúde, avaliando o resultado do programa do Cone Sul para controle da doença, constatou-se que, de 1975 a 1995, 89,0% de potenciais transmissões foram prevenidas, evitando, portanto, aproximadamente 2.339.000 novos casos e 337.000 mortes. Nessa avaliação, também ficou clara a custo-efetividade desse programa de controle da Doença de Chagas, evidenciando que, para cada US$1,00 gasto, se economizava US$17,008,9. Com o maior controle das formas vetorial e transfusional de transmissão, a forma oral ganhou relativamente maior importância, como visto nos surtos em 2005 em Santa Catarina e Pará, em 2006 no Ceará e Pará, e em 2007 no Pará e Amazonas, entre outros. Na região amazônica, o número de casos agudos vem aumentando, sendo menos de dez em 1968 e quase cem em 2007. Em grande parte, isso ocorreu por surtos isolados com transmissão, usualmente pela via oral, ou, menos frequentemente, por vetores isolados não domiciliados, ou ainda por exposição de humanos a vetores na selva10,11. Visto esse aumento de casos na região amazônica, um programa específico (AMCHA) foi criado em 2004 para mapeamento e detecção da transmissão da doença12.

Inquérito sorológico realizado em escolares de 7 a 14 anos, no período 1994-1997 revelou soroprevalência de 0,05%13. Em 1999, nessa mesma faixa etária, observou-se prevalência de infectados com o T. cruzi de 0,04%. Em 2005, uma varredura nos bancos de sangue do Brasil mostrou que 100% das amostras foram avaliadas quanto a possível infecção por T. cruzi, com soropositividade em apenas 0,21%14.

Portanto, no Brasil impõe-se vigilância permanente, bem como a continuidade de programas de controle por outras vias de transmissão, já em execução, cujos resultados serão avaliados a médio e longo prazo.

1.2. Epidemiologia da Doença de Chagas na América Latina e no restante do mundo

A DC está atravessando as fronteiras dos países que historicamente eram reconhecidos como os principais focos da moléstia.

O êxodo de milhões de latino-americanos para países mais desenvolvidos foi decisivo para que mais de cem mil pessoas infectadas cronicamente estejam vivendo agora nos Estados Unidos. Além disso, outros casos detectados de infecção por T. cruzi foram associados a transfusões de sangue e transplantes nos Estados Unidos, Canadá e países da Europa, onde a triagem para detectar a DC em doadores não era realizada até muito recentemente15.

Nos Estados Unidos, a preocupação com a DC tornou-se crescente, a ponto de ser já considerada moléstia prevalente e constituir importante diagnóstico diferencial em vários contextos clínicos16. Uma análise recente em imigrantes (dados dos PEW Hispanic Center e US Department of Homeland Security) estima que 300.000 indivíduos têm infecção pelo T. cruzi e entre 30.000 e 45.000 têm a doença clínica. Como nos países classicamente endêmicos, também nos EUA a maioria das pessoas com infecção pelo T. cruzi não tem sinais ou sintomas de DC crônica e são considerados como tendo a forma indeterminada17. A partir de 2007, a triagem em larga escala nos doadores de sangue e de órgãos tornou-se federalmente obrigatória nos Estados Unidos, contribuindo para aumentar em muito a visibilidade da DC18.

Na Espanha, onde a maioria dos imigrantes é de origem boliviana (na Bolívia, a prevalência da DC está entre 20-40,0%), comunicado recente indicou que a prevalência da DC, nos últimos dois anos, em mulheres bolivianas grávidas em um hospital da Espanha, foi de 17,7%, com taxa de transmissão vertical de 1,4%19.

Assim, em tempos recentes, criou-se um novo problema epidemiológico, econômico, social e político, devido à globalização da DC, pela migração legal e ilegal dos países endêmicos para os não endêmicos, principalmente Estados Unidos, Canadá, Espanha, França, Suíça, Itália, Japão, países emergentes da Ásia e Austrália (Figura 2)20. Entre esses problemas, pode-se citar o risco de transmissão por transfusão ou congênita, assim como a necessidade de cuidados médicos, dificuldades diagnósticas pela inexperiência dos médicos em reconhecer tal patologia e controle adicional nos bancos de sangue em países com pouca experiência neste tópico. Esses aspectos epidemiológicos diferem em muito daqueles presentes nos países endêmicos. Nas Américas, as características epidemiológicas da DC podem ser distribuídas nos seguintes grupos de países de acordo com o ciclo de transmissão e os programas de controle por meio dede transfusão e do vetor (Figura 3)21:

Grupo I - Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Equador, Honduras, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela apresentam os ciclos doméstico, peridomiciliar e silvestre, com alta prevalência de infecção humana e predomínio da cardiopatia chagásica crônica (CCC).

Grupo II - Colômbia, Costa Rica e México, caracterizadas por ciclos doméstico e peridomiciliar com presença da CCC.

Grupo III - El Salvador, Guatemala, Nicarágua e Panamá apresentam ciclos doméstico, peridomiciliar e silvestre com informação clínica deficiente.

Grupo IV - Antilhas, Bahamas, Belize, Cuba, Estados Unidos, Guiana, Guiana Francesa, Haiti, Jamaica e Suriname, com ciclos silvestres e informação clínica escassa21.



1.3. Medidas de controle da transmissão da doença

Uma visão geral do problema da DC que permitisse a definição de estratégias abrangentes de prevenção foi alcançada mediante levantamento epidemiológico transversal, conduzido individualmente em 15 países da América Latina a partir dos anos 80. Os resultados mostraram que as áreas endêmicas originais com transmissão vetorial domiciliar aos humanos compreendiam 18 países com maiores taxas de infecção pelo T. cruzi, infestadas pelo Triatoma infestans (países do Cone Sul) e pelo Rhodnius prolixus (países andinos e da América Central), que são as espécies de triatomíneos melhor adaptadas aos domicílios humanos22.

Os meios mais efetivos para interrupção da transmissão da infecção pelo T. cruzi também foram indicados: 1) implementação de atividades de controle de vetores nas casas com objetivo de primeiro reduzir e, então, eliminar a transmissão vetorial pelo T. cruzi; e 2) desenvolvimento e implementação de política para triagem do sangue para uso humano a fim de prevenir a transmissão transfusional da DC.

Em 1975, iniciou-se no Brasil o programa de controle de transmissão vetorial da DC. Isso compreendia o borrifo de inseticidas nas casas e no peridomicílio, com objetivo de interromper os ciclos de transmissão doméstica e peridoméstica envolvendo vetores, reservatórios animais e humanos. Além disso, foram adotadas medidas educativas sanitárias e foi estabelecido um sistema de monitoração envolvendo os membros das comunidades locais. No Brasil, esses programas mostraram-se efetivos para eliminação do vetor domiciliar T. infestans, o mais importante do ponto de vista epidemiológico23. No início desses programas, 711 municípios apresentavam casas infestadas com Triatoma infestans. As infestações domiciliares por T. infestans apresentaram redução drástica: dos 166.000 insetos coletados no programa de controle em 1975, para apenas 6.111 insetos capturados em 1999. A taxa de infestação média tornou-se de um inseto para cada 10.000 casas pesquisadas, valor muito abaixo do mínimo requerido para transmissão da doença21,22. A prevalência de infecção humana pelo T. cruzi, em baixas faixas etárias, também pode ser considerado um índice de controle da transmissão da doença. Como assinalado anteriormente, na faixa etária de 7 a 14 anos, em 1999, observou-se positividade de 0,04%, redução de 99,8% quando comparado com o índice de 18,5% verificado em 198014. Em 2007, os resultados de 94.000 testes sorológicos em amostra de 0 a 5 anos de idade indicaram positividade em 0%.

2. Patogenia e fisiopatologia da cardiopatia chagásica crônica

A CCC é essencialmente uma miocardiopatia dilatada em que a inflamação crônica, usualmente de baixa intensidade, mas incessante, provoca destruição tissular progressiva e fibrose extensa no coração. Vários mecanismos devem contribuir para a patogenia das lesões cardíacas e a consequente instalação dos diversos distúrbios fisiopatológicos, conforme revisões recentes24-28.

2.1. Disautonomia cardíaca

Vários estudos necroscópicos independentes em pacientes chagásicos e em modelos experimentais de infecção pelo Trypanosoma cruzi evidenciaram depopulação neuronal, predominantemente do sistema parassimpático cardíaco29. Tais alterações patológicas se acompanham de disautonomia cardíaca, comprovada por inúmeros pesquisadores empregando-se variados métodos de avaliação funcional. Nisso, são encontradas antes da disfunção ventricular, e nas formas indeterminada ou digestiva da doença24,30,31. Em consequência desses distúrbios funcionais da regulação autonômica cardíaca, os pacientes chagásicos crônicos podem ser deprivados do controle inibitório vagal normalmente exercido sobre o nódulo sinusal e outras estruturas cardíacas, bem como se tornarem incapazes de ajustes cronotrópicos rápidos em resposta a estímulos fisiológicos, como alterações de postura e o exercício físico, mediados pelo sistema vagal24,30. Além disso, hipótese fisiopatológica bastante plausível seria de que a perda do controle parassimpático cardíaco estivesse implicada em mecanismos de MS na CCC. Embora de menor monta, ocorrem também alterações estruturais e funcionais do sistema simpático cardíaco, inclusive ao nível ventricular, em associação a distúrbios contráteis e perfusionais miocárdicos32. É possível ainda que anticorpos circulantes, capazes de interferir com receptores de ambos os sistemas - simpático e vagal - afetem fisiopatologicamente o comportamento autonômico cardíaco e modulem propriedades eletrofisiológicas envolvidas em mecanimos de arritmias malignas33. Entretanto, o papel desses anticorpos na gênese de alterações miocárdicas é ainda obscuro, não se correlacionando com a disfunção ventricular contrátil34.

Em suma, a despeito de alterações morfológicas e funcionais do sistema autonômico do coração serem detectáveis em alguns pacientes chagásicos crônicos, elas ocorrem em intensidade variada e não se correlacionam diretamente ao grau de depressão ventricular. Dessa forma, a chamada "teoria neurogênica", conforme entendida com base em estudos pioneiros29, não se mostra convincente para explicar a destruição miocárdica da CCC24.

2.2. Distúrbios microcirculatórios

Há evidência em modelos experimentais de infecção por T. cruzi de alterações microvasculares, incluindo formação de microtrombos associados a espasmo microcirculatório, disfunção endotelial e aumento da atividade plaquetária35. É provável que tais distúrbios microcirculatórios sejam consequentes à inflamação diretamente ligada ao T. cruzi ou mediada por agressão imunológica36. Admite-se que essas alterações microcirculatórias contribuam como amplificadores dos efeitos inflamatórios e produzam isquemia miocárdica24. Muitos pacientes com CCC manifestam sintomas anginoides, exibem alterações eletrocardiográficas sugestivas de isquemia, e cursam com variados defeitos perfusionais miocárdicos32,37. As artérias coronárias epicárdicas desses pacientes são em geral angiograficamente normais, mas podem ter reatividade anormal a estímulos vasodilatadores ou vasoconstrictores37,38. Postula-se que essas alterações microcirculatórias causem hipoperfusão em áreas miocárdicas relativamente desprovidas de ramificações coronárias - zonas de perfusão marginal ou "divisoras de águas", assim se associando à formação de aneurismas nas paredes apical e posterior-basal do ventrículo esquerdo39.

Analogamente à "teoria neurogênica", a "hipótese microvascular" ainda carece de suporte clínico mais convincente, mas, mesmo que não se constitua em mecanismo patogênico independente da CCC, pode potenciar a inflamação crônica do miocárdico.

2.3. Mecanismos imunopatológicos

Há evidência experimental de que, após a intensa miocardite da fase aguda da DC, quando a parasitemia e a parasitose tissular são controladas por mecanimos imunológicos, a inflamação regride e persiste focalmente com baixa intensidade, enquanto se mantém a forma indeterminada da doença40. Postula-se que o equilíbrio e a relativa estabilidade patológica dessa forma indeterminada, em que mecanimos imunológicos devem essencialmente estar modulados em sentido protetor, são rompidos, por fatores ainda obscuros, quando a inflamação, a necrose e a fibrose passam a ser mais intensas, difusas, e progressivas24-27,39,41.Vários fatores podem determinar a estabilidade ou instabilização do processo: carga parasitária, cepa do parasito ou seu tropismo tecidual, tempo de infecção e componentes genéticos do hospedeiro. Admite-se que a vigência de mecanismo adequado de imunorregulação seria o fator crucial para se diferenciar os indivíduos que controlariam sua infecção sem desenvolver dano tecidual importante (através de resposta inflamatória limitada) daqueles que evoluiriam com doença grave, com inflamação intensa, necrose e fibrose reativa.

Há inequívoca evidência de que reações patogênicas de autoimunidade ocorram na CCC, por mimetismo molecular, ativação policlonal ou outros mecanismos24-27,42. . É menos elucidado se a agressão às estruturas cardíacas dependente de autoimunidade é decisiva para instalação das lesões características da miocardiopatia crônica da DC. Não obstante a limitação atual do conhecimento, a teoria de que a reação do sistema imunológico à infecção por T. cruzi seja uma verdadeira "espada de dois gumes" e participe como mecanismo fundamental na fase crônica da miocardite chagásica, apoia-se em extensa gama de evidências experimentais e clínicas24-27,39-41.

2.4. Inflamação e agressão tissular dependente da presença parasitária

Na fase crônica da DC, métodos histológicos clássicos destacavam a ausência ou paucidade parasitária no coração de animais de experimentação ou de humanos infectados por T. cruzi29. Com técnicas mais sensíveis, (imuno-histoquímicas ou com PCR), a persistência parasitária nos focos inflamatórios miocárdicos foi evidenciada43,44. Também se observou que a redução da carga parasitária por tratamento tripanossomicida, em animais de experimentação e humanos, tende a atenuar ou deter a progressão da miocardite crônica45,46. Em contraste, reinfecções com T. cruzi, ou sua multiplicação durante imunodepressão, exacerbam as manifestações inflamatórias e o curso da CCC47,48.

Com base nessas evidências, cristaliza-se o consenso de que a essência da patogenia da CCC resida em inflamação diretamente dependente da persistência parasitária e de consequente reação imunopatológica adversa, elicitada pela mesma24-28,49. Isso resgata a noção de que, mesmo em sua fase crônica, a cardiopatia seja essencialmente um processo inflamatório infeccioso, e torna premente a necessidade de se testar se nessa fase o tratamento antiparasitário altera a história natural da CCC.

Há também substancial evidência de que citocinas produzidas por pacientes e animais infectados com T. cruzi sejam capazes de modular a expressão gênica e proteômica de células miocárdicas e outros componentes tissulares cardíacos50. Polimorfismo de genes ligados à resposta imune inata, bem como à produção de citocinas, pode influenciar a evolução do processo patogenético da CCC.

2.5. Fisiopatologia da CCC

O dano cardíaco resulta das alterações fundamentais (inflamação, necrose e fibrose) que o T. cruzi provoca, direta ou indiretamente, no tecido especializado de condução, no miocárdio contrátil e no sistema nervoso intramural.

O frequente comprometimento do nó sinusal, do nó atrioventricular e do feixe de His, por alterações inflamatórias, degenerativas e fibróticas, pode dar origem a disfunção sinusal e a bloqueios variados atrioventriculares e intraventriculares. Por serem estruturas mais individualizadas, o ramo direito e o fascículo anterior-superior esquerdo são mais vulneráveis e mais frequentemente afetados. Focos inflamatórios e áreas de fibrose no miocárdio ventricular, especialmente em regiões posterior-lateral e inferior-basal, podem produzir alterações eletrofisiológicas e favorecer o aparecimento de reentrada, principal mecanismo eletrofisiológico das taquiarritmias ventriculares malignas, que acarretam morte súbita mesmo em pacientes sem insuficiência cardíaca ou grave disfunção de ventrículo esquerdo (VE).

Outra consequência das lesões miocárdicas é a disfunção biventricular característica da CCC. Inicialmente, há comprometimento regional, assemelhando-se ao que ocorre na cardiopatia por obstrução coronária, mas, paulatinamente, verifica-se dilatação e hipocinesia generalizada, conferindo o padrão hemodinâmico de cardiomiopatia dilatada à CCC.

Desde as fases mais precoces, discinergias ou aneurismas ventriculares predispõem a complicações tromboembólicas. Em estágios avançados, a dilatação global, a estase venosa e a fibrilação atrial são fatores adicionais que propiciam a formação de trombos e a consequente embolização pulmonar e sistêmica, como no sistema nervoso central51. Esse aspecto confere à CCC, além das predominantes características de provocar arritmias malignas e insuficiência cardíaca refratária, a de ser precipuamente embolizante.

3. Apresentação clínica e classificação

A DC pode ser classificada evolutivamente em duas fases: a aguda e a crônica. A fase aguda pode ser devida à infecção primária ou a reativação de fase crônica. Na fase crônica, quatro situações clínicas podem evoluir: a forma indeterminada, a forma cardíaca, a forma digestiva e a forma mista (acometimento cardíaco e digestivo no mesmo paciente). A forma cardíaca pode ocorrer com e sem disfunção ventricular global (usualmente denominada forma arritmogênica). A fase crônica pode ser ainda classificada em estágios (A, B, C e D) de envolvimento cardíaco, conforme recomendações internacionais, adaptadas à etiologia chagásica52.

No estágio A, estão os pacientes da forma indeterminada, sem sintomas presentes ou pregressos de IC e com ECG e radiografia (RX) de tórax normal.

No estágio B, estão os pacientes com cardiopatia estrutural que nunca tiveram sinais nem sintomas de IC. Esse estágio contempla duas situações clínicas: B1 e B2. No estágio B1, estão os pacientes com alterações eletrocardiográficas (distúrbios de condução ou arritmias) e que não têm disfunção ventricular. Esses pacientes podem ter alterações ecocardiográficas discretas (anormalidades da contratilidade regional), porém a função ventricular global é normal. No estágio B2, estão os pacientes que já apresentam disfunção ventricular global, com fração de ejeção do VE (FEVE) reduzida.

No estágio C, estão os pacientes com sintomas prévios ou atuais de IC, e que possuem disfunção ventricular (NYHA I, II, III e IV).

No estágio D, encontram-se os pacientes com sintomas de IC em repouso, refratários ao tratamento clínico maximizado (NYHA IV), necessitando intervenções especializadas e intensivas.

Essa classificação é simples, operacional e consistente, permitindo compreensão internacional e comparação com outras etiologias (Quadro 1).


3.1. Fase aguda

Após a infecção inicial, a fase aguda da DC dura de 6-8 semanas. O quadro clínico se assemelha ao de outros casos de miocardite, com manifestações sistêmicas de febre, taquicardia desproporcional, esplenomegalia e edema. Inflamação pode ser observada no local em que os parasitos penetraram na pele. Se o local de penetração foi a região ocular, pode ocorrer conjuntivite acompanhada de edema palpebral unilateral e adenopatia satélite preauricular (Sinal de Romaña). O ECG pode revelar taquicardia sinusal, baixa voltagem dos complexos QRS, prolongamento do intervalo PR e/ou QT e alteração da repolarização ventricular. Podem ser observadas arritmias ventriculares, fibrilação atrial e bloqueio do ramo direito, situações que indicam pior prognóstico53. Quando a doença é transmitida de forma congênita, pode ser associada a hepatoesplenomegalia, icterícia, hemorragia cutânea e sinais neurológicos, especialmente em neonatos prematuros. Outras condições mais raras podem levar à forma aguda, tais como contaminação oral e acidente de laboratório54,55.

A fase aguda é detectada mais frequentemente em crianças e, sem tratamento, admite-se que entre 5 e 10,0% dos pacientes sintomáticos morram durante essa fase, devido a IC aguda, meningite, raramente ocorrendo MS.

A fase aguda pode decorrer também de reativação infecciosa a partir de fase crônica previamente estabelecida. Condições que provoquem imunossupressão podem causar proliferação dos parasitos, lesões necróticas ou tumorais no cérebro, esôfago, e intensificação da miocardite56. Isto tem sido observado frequentemente em coinfecção por HIV, particularmente com contagens de CD4 inferiores a 200/ml e em transplante de órgãos57. Verifica-se quadro de miocardite e ou esofagite aguda, com exacerbação da cardiopatia prévia e ICC. Em situações pós-transplante cardíaco, pode ser difícil diferenciar-se reativação de rejeição, estando presentes febre, miocardite e lesões cutâneas58.

3.2. Fase crônica

Após a fase aguda inicial, três condições clínicas podem evoluir: a forma indeterminada, a forma cardíaca sem disfunção ventricular e a forma cardíaca com disfunção ventricular. Deve-se preferir essa nova classificação à anteriormente empregada, que definia formas congestiva e arrítmica independentes. Destaca-se o principal marcador prognóstico, ou seja, a disfunção ventricular. Essas formas clínicas costumam ocorrer após o período de latência de várias décadas que caracteriza a forma indeterminada59.

Dada a ampla disponibilidade do ecocardiograma nos dias atuais, recomenda-se considerar a realização deste exame como parte da avaliação inicial de pacientes com sorologia positiva e sempre que houver mudanças no quadro clínico ou eletrocardiográfico. Para pacientes com alterações eletrocardiográficas, recomenda-se considerar a realização de ECG ambulatorial (Holter) na avaliação inicial e posteriormente sempre que os sintomas ditarem (Tabela 1).

3.2.1. Forma indeterminada

Por definição, os pacientes com essa forma apresentam sorologia e/ou exames parasitológicos positivos para Trypanosoma cruzi, mas não manifestam sintomas, sinais físicos ou evidências de lesões orgânicas (cardíacas e extracardíacas) ao ECG e no R-X de tórax, bem como em outros estudos radiológicos (esôfago e cólon)60-62. Entretanto, se o paciente for submetido a testes mais rigorosos e sofisticados (ecocardiograma, avaliação autonômica, teste ergométrico, Holter, cintilografia miocárdica, ressonância magnética, cateterismo cardíaco, biopsia endomiocárdica), algumas alterações podem ser observadas, geralmente discretas e sem valor prognóstico estabelecido em qualquer estudo61,63-66. Por serem portadores de infecção chagásica, admite-se que os pacientes com esta forma da doença estejam sob risco aumentado de se desencadear IC e anormalidades da contratilidade regional, assim evoluindo para a forma cardíaca propriamente dita.

Essa fase pode durar até 30-40 anos, ao cabo da qual uma fração igual a 30-40,0% dos pacientes desenvolverá a forma cardíaca62,67. Os demais pacientes permanecerão assintomáticos durante toda a vida, em condição de equilíbrio imunológico entre o parasito e o hospedeiro68. O aparecimento gradual de alterações eletrocardiográficas (ou ecocardiográficas) marca o início da forma cardíaca crônica69.

3.2.2. Forma cardíaca sem disfunção ventricular

Embora o mais comum seja a coexistência de manifestações arrítmicas com o quadro congestivo, alguns pacientes podem apresentar uma forma de cardiopatia chagásica caracterizada apenas por arritmias e distúrbios de condução intraventricular e atrioventricular, com função ventricular normal. Ainda que a arritmia ventricular maligna seja mais comum em pacientes com disfunção ventricular concomitante, ela também pode ocorrer em ventrículos com função preservada e constitui importante marcador prognóstico70.

Sintomas relacionados às arritmias incluem palpitações, tonturas, lipotimia e síncope. A síncope na cardiopatia chagásica pode ser devida tanto a episódios de taquiarritmias ventriculares quanto a disfunção sinusal e bloqueios atrioventriculares (BAV) com assistolia71. Morte súbita é a principal causa de óbito e o mecanismo é múltiplo (taquicardia ou fibrilação ventricular e assistolia), estando associada a múltiplas áreas cicatriciais no miocárdio59,70.

Incompetência cronotrópica pode decorrer de degenerações do sistema de condução e de disfunção autonômica, causando sintomas relacionados à intolerância ao exercício físico, mesmo com função ventricular normal30,72.

3.2.3. Forma cardíaca com disfunção ventricular

A insuficiência cardíaca crônica habitualmente instala-se 20 anos ou mais após a infecção original. O quadro clínico nesse estágio depende da expressão de três distúrbios frequentemente coexistentes: IC, arritmias e tromboembolismo. A apresentação clínica mais frequente é IC biventricular, com predominância dos sintomas relacionados ao maior comprometimento do ventrículo direito (estase jugular, hepatomegalia, ascite e edema de membros inferiores), associada a arritmias ventriculares, atriais e distúrbios de condução atrioventricular e intraventricular73,74.

Os pacientes costumam queixar-se de fraqueza mais do que de dispneia, o que pode ser parcialmente explicado por níveis de pressão arterial mais baixos, quando comparados a outras etiologias de IC e pela concomitância ou preponderância, em alguns casos, de disfunção ventricular direita. Muitos pacientes apresentam dor torácica, usualmente como angina atípica, possivelmente devida a anormalidades da microcirculação causadas pelo processo inflamatório75. O exame clínico revela cardiomegalia significativa com ictus cordis impulsivo e difuso, sopros de insuficiência mitral e tricúspide e desdobramento amplo de segunda bulha.

Os ventrículos dilatados e com aneurismas de ponta, além da elevada prevalência de fibrilação atrial em estágios mais avançados, constituem importantes fontes de trombos murais, ocasionando fenômenos tromboembólicos sistêmicos e pulmonares76. Acidentes vasculares encefálicos (AVE) são mais comuns em pacientes com IC de etiologia chagásica do que em outras etiologias, configurando-se essa etiologia como fator de risco77. O prognóstico se agrava à medida que o quadro congestivo progride e as arritmias se tornam de difícil controle78-80.

4. Diagnóstico clínico, diagnóstico diferencial e prognóstico da cardiopatia chagásica crônica

4.1. Diagnóstico clínico da CCC

Como referido acima, a CCC pode manifestar-se por IC, eventos tromboembólicos, arritmias ventriculares e MS80. Seu diagnóstico baseia-se em epidemiologia positiva, anamnese, exame físico, alterações eletrocardiográficas, radiológicas e testes sorológicos81-83. A sintomatologia predominante é de IC, com dispneia progressiva, fadiga, astenia. Sintomas de IC direita, como edema, aumento do volume abdominal e desconforto epigástrico, podem aparecer precocemente, mas são mais frequentes em etapas avançadas da doença, acompanhados de sintomas de baixo débito cardíaco, como intolerância ao esforço. História sugestiva de eventos arrítmicos (bradiarritmias ou taquiarritmias), com palpitações, pré-síncope e síncope é frequente79,84,85. Eventos tromboembólicos, notadamente o AVE, podem ser a primeira manifestação da CCC e se origina principalmente de trombos intracavitários84. Dor anginosa de caráter atípico é frequente e decorre de isquemia na ausência de obstrução coronariana angiograficamente detectável, sendo explicada por alterações inflamatórias, tromboses e outros distúrbios da microcirculação coronariana32,37,75. O exame semiológico pode evidenciar cardiomegalia global, sopros de regurgitação mitral e tricuspídea e a presença de 3ª bulha. Sinais de baixo débito, como hipotensão e pulso filiforme, são detectáveis em alguns indivíduos, em contraste com sinais de congestão pulmonar menos conspícua, fato que se deve à importante disfuncão do VD73,86,87.

4.1.1. Testes sorológicos (Tabela 2)

Dada a baixa parasitemia na fase crônica da doença, os testes parasitológicos não são utilizados e testes sorológicos baseados na detecção de anticorpos contra o T. cruzi devem ser rotineiramente empregados para o estabelecimento da etiologia da cardiopatia81.

O diagnóstico sorológico da infecção pelo T. cruzi é confirmado (ou excluído) pelo emprego de pelo menos dois testes sorológicos de princípios diferentes, que devem comprovar a existência de anticorpos anti-T. cruzi81. A quantificação da concentração de anticorpos é desejável. Os testes sorológicos mais empregados e de maior utilidade são os convencionais: ensaio imunoenzimático (ELISA), imunofluorescência indireta (IFI) e hemaglutinação indireta (HAI). Quando realizados os três testes, é possível obter concordância entre eles em mais de 98,0% dos soros88,89. Cada teste apresenta características diferentes quanto à sensibilidade e especificidade: testes ELISA e IFI apresentam sensibilidade superior a 99,5%, porém a especificidade é menor (97-98,0%). Os testes de HAI apresentam sensibilidade menor (97-98,0%) com especificidade maior (99,0%)90-93. Com os dois testes acima recomendados, evitam-se resultados falso-positivos ou falso-negativos, ambos com conotações éticas e judiciais81,89-94 .

4.1.2. Exames complementares (Tabela 3)

4.1.2.1. Eletrocardiograma

As alterações eletrocardiográficas constituem, frequentemente, o primeiro indicador do surgimento da CCC. Inicialmente, as alterações são caracterizadas por retardos transitórios ou fixos da condução atrioventricular, da condução no ramo direito, alterações da repolarização ventricular e ectopias ventriculares95,96. Na evolução, principalmente quando surgem os distúrbios de contratilidade, global ou regional, as alterações no ECG se tornam marcantes e têm implicações prognósticas relevantes69,97.

Na CCC, o bloqueio completo do ramo direito, associado ao hemibloqueio anterior esquerdo, constitui a alteração mais frequente (> 50,0% dos pacientes)69,95,96.O acometimento do ramo esquerdo ou do fascículo posterior esquerdo é raro. Os BAV de graus variáveis são comumente descritos em diversos estudos69,95-98. Os BAV mais avançados são decorrentes de lesões extensas do nó AV e sistema de His e podem ser a primeira manifestação da doença. Disfunção do nó sinusal pode ocasionar episódios de bloqueio sino-atrial, com bradicardia ou taquicardia atrial ectópica. Flutter e fibrilação atrial são tardios e costumam ocorrer após a instalação de grave disfunção ventricular, como em outras cardiopatias99,100.

Extrassístoles ventriculares polimórficas são comuns na presença de disfunção ventricular. Arritmias ventriculares complexas, como a taquicardia ventricular não sustentada (TVNS), ou sustentada (TVS), podem existir mesmo em pacientes sem IC, porém, usualmente, ocorrem em casos mais avançados e sua coexistência é indicativa de pior prognóstico69,79,85,97.

4.1.2.2. Radiografia torácica

Nas fases avançadas, cardiomegalia global muito acentuada em geral contrasta com graus discretos ou ausência de congestão pulmonar. Cabe ressaltar que, devido ao frequente e acentuado comprometimento do ventrículo direito (VD) e insuficiência tricúspide, o aumento das cavidades direitas pode se destacar no RX de tórax. Congestão venosa sistêmica, derrame pleural e pericárdico frequentemente acompanham os sinais de cardiomegalia.

4.1.2.3. Ecocardiografia

O exame ecocardiográfico (ECO) permite avaliar o desempenho contrátil regional e global do VE, o comprometimento do VD, a presença de aneurismas apical ou submitral, trombos cavitários e alterações da função diastólica74,101. Em grandes séries de pacientes, mesmo na fase indeterminada da doença, o ECO pode demonstrar alterações de contratilidade segmentar em parede inferior ou apical do VE em 10 a 15,0% dos casos e o aneurisma apical pode ser detectado em 40 a 60,0% dos pacientes com CCC74,101,102. Disfunção sistólica também tem sido detectada com a utilização do Doppler tecidual. As velocidades de encurtamento sistólico e alongamento diastólico, mesmo em pacientes com ECG normal podem evidenciar tempos de contração isovolumétrica prolongados em ambos os ventrículos103-106. Portanto, um ECG normal não exclui a presença de dano funcional ao miocárdio103,105-107. Estudos com estresse farmacológico têm demonstrado redução da resposta inotrópica e cronotrópica à infusão de dobutamina, incluindo resposta contrátil bifásica72. Finalmente, o ECO de estresse pode induzir arritmias ventriculares complexas mesmo em pacientes em fases precoces da cardiopatia108.

É importante frisar que, como será visto adiante, embora alguns pacientes com a forma indeterminada possam apresentar ao ECO alterações, geralmente sutis, de função diastólica ou sistólica, inúmeras séries documentam o excelente prognóstico em geral dos pacientes com essa forma da DC14,62,68,82,109.

O aspecto clássico do ECO na CCC avançada é o de grande dilatação das cavidades atriais e ventriculares, com hipocinesia difusa, biventricular, aspecto este não tão chamativo em miocardiopatias isquêmicas ou de outras etiologias63,74. Também se observa insuficiência das válvulas atrioventriculares, secundária à dilatação dos anéis valvares. Apesar do predomínio do déficit contrátil difuso, aneurismas ventriculares detectados com ECO em 47 a 67,0% são característicos na CCC e se associam a maior risco tromboembólico (em posição apical) e a arritmias ventriculares malignas (em parede inferior basal ou posterior-lateral)102. Os trombos murais podem ser visibilizados com ECO também nos átrios, especialmente em vigência de fibrilação atrial. Todos esses aspectos ecocardiográficos são relevantes para o prognóstico de pacientes com CCC74,101,109.

4.1.2.4. Ressonância magnética cardíaca

Na CCC, a fibrose miocárdica é substrato constante e intenso, associado à progressão da doença e a prognóstico ominoso pelo elevado risco de morte súbita e arritmias ventriculares39,70. A ressonância magnética cardíaca permite a identificação precoce do envolvimento cardíaco, através da detecção de áreas de realce tardio indicativos de fibrose, permitindo a estratificação mais precisa dos estágios de gravidade110. A extensão da fibrose correlaciona-se diretamente com o estágio de evolução da doença e com a classe funcional e, inversamente, com a FEVE, contribuindo para a estratificação prognóstica na CCC110.

4.1.2.5. Medicina nuclear

A avaliação da função biventricular pela angiocardiografia nuclear com 99mTc é alternativa ao ECO, principalmente para avaliação da fração de ejeção do ventrículo direito e avaliação das condições de sincronização contrátil de ambos os ventrículos, aspectos esses com valor prognóstico63,86. A cintilografia de perfusão miocárdica demonstra déficits perfusionais segmentares em até 30,0% dos pacientes com CCC e dor anginosa, mas com coronariografia normal, indicando alterações da microcirculação coronariana, distúrbios esses que se correlacionam com deterioração progressiva da função ventricular75,111.

4.1.2.6. Eletrocardiografia dinâmica (Holter)

Indicado para avaliação de paciente chagásico com síncope, que pode ser decorrente de bradiarritmias ou taquiarritmias ventriculares112,113. Ambas podem coexistir no mesmo paciente, sendo as mais graves a TVS e o BAV avançado. A TVNS, em séries retrospectivas e prospectivas, bem como em revisão sistemática, também se demonstrou preditora de pior prognóstico79,85,112,113.

4.1.2.7. Teste ergométrico e teste cardiopulmonar

Os testes ergométrico e cardiopulmonar, embora de utilidade limitada para esclarecimento de dor torácica no paciente chagásico, são úteis para a detecção e o prognóstico de arritmias induzidas por esforço na CCC108,112. O teste cardiopulmonar com medida direta do consumo de oxigênio (VO2) demonstra que pacientes com VO2 inferior a 12 ml/kg/min apresentam elevada mortalidade em um ano, sendo também utilizado como método auxiliar na indicação de transplante cardíaco (TC), como será visto a seguir.

4.1.2.8. Estudo eletrofisiológico

O estudo eletrofisiológico (EEF) permite investigação da função sinusal e da condução AV, estando também indicado para o esclarecimento de síncope de origem indeterminada após avaliação não invasiva, e em pacientes com MS revertida112,113. Não está indicado para avaliação de risco em pacientes com função sistólica preservada ou com TVNS. É indicado, também, para o mapeamento de taquicardias ventriculares refratárias, para possível ablação de focos arritmogênicos113.

4.1.2.9. Cateterismo cardíaco

O cateterismo cardíaco na CCC só deve ser indicado em situações especiais. Por exemplo, em alguns pacientes com dor anginosa típica e com fatores de risco clássicos para doença coronariana, ou com grande área isquêmica demonstrada em testes não invasivos. Ressalte-se que não deve ser indicado em pacientes chagásicos com dor atípica e sem fatores de risco coronariano37. Ver adiante a recomendação em pacientes necessitando de TC.

4.2. Diagnóstico diferencial da CCC

Não há manifestações clínicas, semiológicas ou alterações em exames complementares patognomônicas da CCC. A confirmação sorológica da doença em paciente portador da síndrome clínica de IC constitui a sequência diagnóstica na maioria dos casos68,79,81. No ECG, o bloqueio de ramo direito associado ao hemibloqueio anterior esquerdo é altamente sugestivo de CCC em pacientes oriundos de área endêmica95,98, enquanto o bloqueio de ramo esquerdo torna pouco provável a etiologia chagásica. O aneurisma da ponta do VE, poupando o septo, constitui, na visão de vários investigadores, o que mais se aproximaria de um "marcador da doença"74,102. Também contribui para o diagnóstico de CCC encontrar-se, além das alterações de mobilidade segmentar do VE, intenso comprometimento do VD, que é pouco frequente nas cardiopatias isquêmica e hipertensiva63,86,87. A etiologia chagásica também se reforça no diagnóstico diferencial quando há queixa de dor precordial, usualmente atípica como angina, em pacientes com epidemiologia sugestiva, mesmo na vigência de defeitos perfusionais na cintilografia miocárdica24,75,111. Em tais circunstâncias, deve-se primeiramente confirmar a sorologia positiva do paciente, em vez de encaminhá-lo à cinecoronariografia, a qual, nesse contexto, quase sempre revela ausência de obstruções coronarianas angiograficamente detectáveis.

4.3. Prognóstico da cardiopatia chagásica crônica

A CCC é quase sempre progressiva e o prognóstico depende da fase e da forma clínica em que o paciente se encontra79,80,85. Na fase aguda, 90,0% dos casos apresentam comprometimento cardíaco, mas ele é usualmente benigno em mais de 90,0% dos casos. O prognóstico é, em geral, inversamente proporcional à idade do paciente e mais grave em crianças com miocardite ou encefalite grave114.

Em pacientes com a forma indeterminada, observa-se o aparecimento de alterações eletrocardiográficas em cerca de 2,0% a cada ano61,82,101. Embora vários pesquisadores descrevam alterações sutis da função sistólica e diastólica do VE em portadores da forma indeterminada72,74,105-108 , e se especule que esses distúrbios possam identificar pacientes que evoluirão mais precocemente para a forma cardíaca da doença, duas ressalvas devem ser feitas neste contexto: em primeiro lugar, nesses estudos em geral, não são seguidos os critérios estritos para se definir que os pacientes incluídos realmente estejam com a forma indeterminada - por exemplo, não se descartou neles a presença de colopatia, com enema opaco115; em segundo lugar, apesar de algumas pesquisas preliminares sugerirem que alterações precoces da contratilidade regional do VE em pacientes chagásicos com ECG normal sejam evolutivamente sinalizadoras de deterioração posterior da função global dessa câmara116, não há estudos que comprovem a importância de qualquer anormalidade para estratificação prognóstica nessa fase da doença61. Portanto, a forma indeterminada deve ser encarada como portando prognóstico benigno e sobrevida equiparável à de indivíduos sem DC61,62,81,82,100,117.

Em várias séries observacionais, quando se compara a evolução dos pacientes com CCC à evolução dos portadores de outras cardiomiopatias, os chagásicos têm pior evolução118,119. Há vários fatores fisiopatológicos para essa diferença, mas, em vários estudos, a disfunção contrátil do VE aparece como preditor prognóstico independente, quer avaliado pela cardiomegalia ao RX de tórax, quer pela fração de ejeção ou diâmetro ventricular79,85,109,118-120.

Em cardiopatas crônicos avaliados com diversos métodos não invasivos, um escore de risco foi descrito em 2006, utilizando 6 fatores prognósticos identificados por análise multivariada e seguimento a longo prazo79. As variáveis com valor prognóstico independente foram: classe funcional III ou IV (5 pontos), cardiomegalia ao RX (5 pontos), disfunção ventricular no ECO (3 pontos), TVNS ao Holter (3 pontos), baixa voltagem do QRS (2 pontos) e sexo masculino (2 pontos). Baseado nesse escore de Rassi79, ponderado com base no significado prognóstico dessas variáveis, os pacientes com baixo risco (escore 0 a 6 pontos) tiveram mortalidade de 10,0%, os de risco intermediário (escore 7 a 11 pontos) tiveram mortalidade de 44,0% e os de alto risco (escore 12 a 20 pontos) apresentaram mortalidade de 84,0% em 10 anos de seguimento79.

Em revisão sistemática de estudos avaliando prognóstico que englobaram um total de 3.928 pacientes, identificou-se como variáveis prognósticas independentes: a disfunção sistólica do VE, classe funcional III/IV e cardiomegalia ao RX de tórax85. A combinação de disfunção ventricular com a presença de TVNS ao Holter identifica grupo com risco em média 2,14 vezes maior de morte durante o seguimento a que se referem esses estudos79,85. A presença de arritmia ventricular em pacientes em pacientes com IC identifica os pacientes com maior chance de apresentar MS79, 85,119,120. Tais algoritmos conseguem de maneira simplificada e lógica estratificar o prognóstico empregando parâmetros clínicos e métodos disponíveis na maioria dos serviços de cardiologia em nosso meio79,85. Na CCC, assim como em outras formas de cardiopatia, outras variáveis, como classe funcional, disfunção ventricular direita, diâmetro ventricular, FEVE, VO2, tempo de exercício e nível do BNP, podem afetar o prognóstico78,86,119-122 (Figura 4).


5. Tratamento etiológico da Doença de Chagas

O tratamento etiológico da DC é controverso, especialmente quanto a sua indicação na fase crônica tardia. Atualmente, dispõe-se de apenas dois medicamentos comprovadamente parasiticidas (no Brasil, somente um), comprovando o cabal desinteresse da indústria farmacêutica no desenvolvimento de novos fármacos ao longo de várias décadas. Não foram conduzidos estudos definitivos avaliando o efeito do tratamento parasiticida sobre a história natural da doença, e o contexto de incerteza é agravado pela ausência de exames que assegurem a total erradicação do parasito e confirmem a cura da enfermidade. Reafirmando conceitos abordados em capítulos anteriores desta Diretriz:

5.1. A participação do parasito

5.1.1. Fase aguda

Há relação direta entre a presença e a quantidade do parasito e a intensidade da miocardite. Entretanto, mesmo sem qualquer tratamento antiparasitário, mais de 90,0% dos casos agudos restabelecem-se do quadro infeccioso sem aparentes sequelas imediatas.

5.1.2. Fase crônica

Por biopsia endomiocárdica em pacientes com diferentes formas clínicas, foi possível constatar a importância da miocardite linfocitária na progressão para a forma com IC. Trabalhos posteriores demostraram associação topográfica entre antígenos e DNA do T. cruzi e focos de miocardite, sugerindo que a presença do parasito é fundamental para a perpetuação do processo inflamatório. Entretanto, a gravidade da inflamação é desproporcionalmente intensa face à paucidade de elementos do T. cruzi123.

5.2. Medicamentos parasiticidas

5.2.1. Nifurtimox (nitrofurano)

Descrito em 1965 (laboratório Bayer - Lampit - não mais disponível no Brasil), seu mecanismo de ação não está totalmente esclarecido. O comprimido contém 120 mg da substância ativa. A dose recomendada é de 15 mg/kg/dia em crianças ou casos agudos e de 8 a 10 mg/kg/dia em adultos, por 60 dias de tratamento, sendo a dose diária dividida em três vezes. Sua absorção é gastrointestinal, sendo metabolizado no fígado (citocromo P450) e excretado preferencialmente por via renal. Seus efeitos colaterais são: anorexia (o mais intenso e frequente), dor abdominal, náuseas, vômitos e emagrecimento.

5.2.2. Benznidazol (nitroimidazólico)

Foi desenvolvido pelo laboratório Roche com o nome comercial de Rochagan (1971), sendo atualmente produzido pelo Laboratório Farmacêutico do Estado de Pernambuco (LAFEPE). Os comprimidos têm 100 mg da substância ativa. Sua absorção se dá pelo trato gastrointestinal e excreção predominantemente renal, com meia vida de 12 horas. A dose recomendada é de 10 mg/kg/dia em crianças ou quadros agudos e 5 mg/kg/dia em crônicos, por 60 dias de tratamento, sendo a dose diária dividida em duas ou três vezes. A dose máxima diária recomendada é de 300 mg. Para adultos com peso acima de 60 kg, deve ser calculada a dose total esperada, estendendo-se o tempo de tratamento para além dos 60 dias, até completar a dose total necessária. Assim, paciente de 65 kg receberá 300 mg por dia, durante 65 dias, o de 70 kg, essa dose diária por 70 dias até o máximo de 300 mg, por 80 dias em paciente com 80 kg. Acima desse peso, mantém-se a dose de 300 mg e o período máximo de 80 dias para os pacientes. O efeito colateral mais frequente é a dermatite urticariforme que ocorre em até 30,0% dos pacientes, já no final da primeira semana de tratamento, apresentando boa resposta terapêutica com anti-histamínicos ou, mais efetivamente, com pequenas doses orais de corticosteroides. Quando há febre e adenomegalia, deve-se suspender a medicação. Outros efeitos adversos incluem polineuropatia (geralmente ao final do tratamento de 60 dias), com dor e/ou formigamento nos membros inferiores, anorexia (com intensidade muito menor que a do Nifurtimox). Leucopenia significativa e agranulocitose são raras e, quando ocorrem, obrigam a interrupção do tratamento. Foi descrito aparecimento de linfomas em coelhos e ratos tratados com benznidazol, mas não há relatos disso em milhares de pacientes tratados por diversos autores ao longo de várias décadas.

Tais medicamentos são contraindicados em gestantes e em pacientes com insuficiência renal ou hepática124-127.

5.3. Indicação para o tratamento etiológico na DC (Tabela 4)

Em boletim da OMS127, fica autorizado o tratamento parasiticida a todo paciente chagásico, desde que seja prescrito por médico com experiência no manuseio da medicação e que tenha condições de diagnosticar e atender possíveis efeitos colaterais, além de garantir acompanhamento pós-tratamento128. Distinguem-se dois tipos de indicação para o tratamento parasiticida81,129,130.

5.3.1. Indicações consensuais

5.3.1.1. Fase aguda para todo paciente, irrespectivo do mecanismo de transmissão

Embora, na maioria dos pacientes infectados agudamente, a doença não seja diagnosticada pela inespecificidade dos sintomas e sinais nessa fase, o tratamento deve ser realizado em todos os casos e o mais breve possível, independente da via de transmissão, à exceção da presença de gravidez, que contraindica o tratamento etiológico81,114,131,132.

5.3.1.2. Fase crônica em crianças

Em estudo brasileiro, randomizado e controlado por placebo, 130 crianças chagásicas, entre 7 e 12 anos, receberam benznidazol (7,5 mg/kg/dia por 60 dias) ou placebo: após três anos de seguimento, verificou-se que 37 das 64 crianças (58,0%) tratadas e apenas três das 66 (5%) que receberam placebo tiveram negativação da reação de imunofluorescência indireta (p < 0,001). Esse efeito favorável na relação hospedeiro-parasitao manteve-se, em linhas gerais, após 6 anos de seguimento133,134. Em outra série independente de casos, na Argentina, 106 crianças chagásicas, entre 6 e 12 anos, foram randomizadas para benznidazol ou placebo por 4 anos, sendo verificado que 62,0% das crianças tratadas e nenhuma das que receberam placebo tiveram negativação da sorologia (ELISA) para T. cruzi (p < 0,01)134. Com base nesses resultados, e mesmo sem evidência de que o tratamento altere o prognóstico de forma clinicamente relevante, recomenda-se que todas as crianças chagásicas sejam tratadas precocemente.

5.3.1.3. Contaminação acidental

Recomenda-se iniciar tratamento tão logo seja o acidente caracterizado como de risco elevado para transmissão da infecção. São caracterizados como de risco elevado os acidentes pérfuro-cortantes ou por contato com mucosas, durante a manipulação de material contendo parasitos vivos, tais como amostras para cultivo, vetores e animais de laboratório infectados, amostras de pacientes suspeitos de elevada parasitemia e material de necropsia. O uso de benznidazol na dose de 7-10 mg/kg é mantido por no mínimo dez dias. Com evidências de alta carga parasitária, o tratamento deve prolongar-se por um mínimo de 30 dias. Na situação de contato com sangue de paciente crônico (baixo risco), a profilaxia medicamentosa não está rotineiramente indicada, recomendando-se a monitorização sorológica81,128.

5.3.1.4. Reativação

A reativação da DC (agudização de paciente crônico) pode ocorrer em pacientes imunossuprimidos farmacologicamente ou em coinfectados pelo HIV. O tratamento específico convencional está indicado nessas situações, por período de 60-80 dias, na dependência das condições clínicas do paciente. Não havendo sintomas, mas com parasitemia persistentemente elevada, o tratamento parasiticida tem sido indicado por alguns autores, embora sejam necessários longos períodos de seguimento para melhor avaliação da eficácia dessa conduta81,128.

5.3.2. Indicações não consensuais

5.3.2.1. Fase crônica tardia e forma indeterminada em indivíduos jovens

A OMS e a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS)127 divulgaram conceitos sobre o tratamento etiológico e recomendaram sua implementação em países onde há pouco controle da DC. O tratamento na fase crônica tardia visa a reduzir os níveis de parasitemia, evitar o aparecimento ou a progressão de lesões viscerais e interromper a cadeia de transmissão. O tratamento nessa fase é indicado para pacientes com a forma indeterminada e com as formas cardíaca e digestiva leves81,132. A indicação para o tratamento parasiticida em pacientes chagásicos crônicos com a forma indeterminada é política de saúde pública em alguns países sul-americanos, e constitui recomendação primordial a partir de seminários conduzidos pelo CDC norte-americano tão logo decisão federal implementou a obrigatoriedade de testes sorológicos para doadores de sangue e de órgãos em todo o território daquele país133. Embora não exista comprovação de que o tratamento etiológico altere a história natural a partir da forma indeterminada (estudos randomizados com esse desfecho não foram publicados), deve-se ressaltar que os resultados de estudos observacionais e dos randomizados em crianças (alterando favoravelmente desfechos substitutos) são considerados suficientes, por muitos pesquisadores, para embasar a recomendação, visando a prevenir a instalação de cardiopatia134-141.

Em pacientes com CCC estabelecida, a indicação para o tratamento parasiticida permanece controversa. Diversos pesquisadores entendem ser defensável a conduta de tratar com base em: a) evidências experimentais de que o tratamento etiológico atenua a progressão da cardiopatia, divulgadas por grupos distintos de pesquisadores45,418; b) estudos observacionais em humanos, embora não "definitivos", com desfechos clinicamente relevantes, apontam para a possibilidade de impacto positivamente concreto sobre a história natural da doença, mesmo em fase (não avançada) da CCC46,81,126,132,133,141; c) a relativa paucidade e pequena gravidade dos efeitos colaterais, em confronto com o potencial de benefício ligado a tratamento de curta duração (dois meses em geral). Para tentar dirimir conclusivamente o dilema, face aos riscos opostos de cometerem-se erros alfa ou beta, está em andamento investigação multicêntrica internacional, randomizada, duplo-mascarada e controlada por placebo, avaliando a evolução clínica por 6 anos de pacientes com CCC tratados com benznidazol (o estudo BENEFIT)49.

Os resultados do estudo BENEFIT poderão ser estratégicos no contexto dos pacientes chagásicos já manifestamente cardiopatas. Em ambos os contextos não houve consenso entre os Editores da Diretriz quanto à classe de recomendação e nível de evidência para indicação do tratamento para esses grupos de pacientes. Enquanto um percentual dos Editores sugere que o tratamento da forma cardíaca não avançada receba recomendação classe IIa com nível de evidência B, e que a forma indeterminada em adultos jovens tenha recomendação classe IIa com nível de evidência C, um outro percentual dos Editores sugere recomendação IIb, e aguardam os resultados das investigações para uma eventual definitiva recomendação.

5.4. Critérios de cura da infecção

O seguimento laboratorial dos pacientes tratados, tanto na fase aguda, como crônica recente ou crônica tardia, visa avaliar se ainda há parasitos no organismo e se ainda estão presentes os anticorpos antitripanosoma142. Os exames parasitológicos (xenodiagnóstico, hemocultivo, reação em cadeia de polimerase - PCR) têm valor apenas quando se encontra T. cruzi, significando falha terapêutica. Resultados parasitológicos negativos são insuficientes para afiançar que ocorreu cura da infecção. Para a pesquisa de anticorpos são requeridos exames sorológicos. Resultados positivos (presença de anticorpos) não necessariamente atestam insucesso da terapêutica tripanossomicida, ao passo que resultados negativos persistentes (ao longo de muitos anos) significam cura143,144. Obtendo-se sucesso terapêutico, há declínio progressivo da concentração de anticorpos, até a negativação dos testes sorológicos. Essa curva inicia seu declínio e chega a valores observados na população não infectada em prazos variáveis, que dependem do momento em que o tratamento foi realizado. Em casos tratados durante a fase aguda (independentemente da idade), o declínio se observa no primeiro ano e alcança a negativação em menos de 5 anos. Em crianças (12-14 anos) ou adultos tratados nos primeiros anos após a infecção, o declínio é observado nos primeiros 5 anos e a negativação ocorre em geral até 10 anos após. Em adultos tratados mais tardiamente, a curva só apresenta inflexões após 10-20 anos e a negativação se observa após 30 anos ou mais132. O avanço conceitual proposto, porém ainda não aceito generalizadamente, é o de considerar quedas significativas de concentração de anticorpos anti-T. cruzi com o mesmo significado que sua ausência. Sugere-se repetir exames sorológicos anualmente, até que se observe negativação persistente88,145,146 (Tabela 5).

O controle com exames parasitológicos após tratamento é dispensável, pois apenas poderá verificar fracasso terapêutico. Se disponível, poderá ser indicado anualmente147.

5.5. Condutas clínicas em pacientes com a forma indeterminada

Conforme já apontado, a forma indeterminada caracteriza-se pela soropositividade para anticorpos contra o T. cruzi, ausência de sintomas e de sinais físicos, de alterações no ECG e nos exames radiológicos de tórax, de esôfago e de cólon (enema opaco normal, exigido para caracterizar o paciente como portador dessa forma, mesmo com hábito intestinal normal)115. Como o prognóstico desses pacientes é comparável ao da população não chagásica, não deve haver restrições à vida normal e nem indicação para afastamento do trabalho131. A restrição a atividades que coloquem em risco sua vida ou de terceiros é discutível82. Gestação, bem como amamentação, deve ter as mesmas orientações das gestantes não chagásicas, todavia, atenção especial deve ser dada ao recém-nascido, visando ao diagnóstico precoce da transmissão congênita. Se possível, deve-se realizar exame parasitológico no sangue do recém-nato; se positivo, deve-se iniciar o tratamento parasiticida, se negativo ou se o exame parasitológico não estiver disponível, recomenda-se o exame sorológico (IgG) por volta do 6º ou 9º mês de vida (quando não mais estarão presentes os anticorpos maternos); se positivo, iniciar o tratamento parasiticida e, se negativo, considerar a criança não contaminada81. Nos pacientes com forma indeterminada, recomenda-se avaliação clínica e ECG anual ou bianual129.

Há alguns anos, avançou-se uma proposta de redefinição da forma indeterminada, dispensando-se o enema opaco em chagásicos assintomáticos (ou substituindo-o por exame ultrassonográfico do abdômen) e passando-se a requerer ECO normal, além do ECG sem alterações, mas não houve receptividade a tal proposta115.

6. Tratamento da disfunção ventricular e insuficiência cardíaca

Incluindo o controle da infecção parasitária, como visto no Capítulo sobre tratamento etiológico, o manejo da CCC consiste no tratamento das diferentes manifestações clínicas da doença, na abordagem da disfunção ventricular e da IC, dos fenômenos tromboembólicos e dos distúrbios de ritmo (Tabela 5).

6.1. Disfunção ventricular e insuficiência cardíaca

Como em outras cardiopatias, o tratamento da IC de etiologia chagásica tem como base a utilização rotineira da combinação de três tipos de fármacos: diuréticos, inibidores da enzima de conversão da angiotensina (IECA) ou bloqueadores do receptor de angiotensina (BRA) e betabloqueadores adrenérgicos (BB)148.

Entretanto, apesar de a DC constituir causa importante de IC na América Latina, pacientes com DC e IC não foram incluídos nos grandes estudos que validaram aqueles medicamentos para tratar IC. Portanto, a real eficácia e a tolerabilidade desses fármacos em pacientes com CCC não foram estabelecidas cientificamente, e extrapola-se, empiricamente, seu uso, a partir do respaldo obtido em IC de outras etiologias.

6.1.1. Bloqueio do sistema renina-angiotensina-aldosterona

O sistema renina-angiotensina-aldosterona tem papel fundamental no remodelamento cardíaco adverso e na progressão da disfunção ventricular na IC149. Vários estudos demonstraram o benefício da administração crônica de IECA150,151 ou de BRA152 no tratamento de pacientes com IC, tanto no remodelamento de VE, como na redução de morbidade e mortalidade. Entretanto, a quase totalidade dessas investigações não arrolou pacientes com CCC, havendo apenas estudos de pequeno porte com estes últimos153.

Em estudo experimental utilizando camundongos, o uso de captopril reduziu a miocardite e a fibrose na fase aguda da CCC154. Estudo clínico que incluiu 17,0% de pacientes com CCC, avaliando a ação do captopril sobre a classe funcional de 115 pacientes com IC, mostrou benefício desse bloqueio, mas sem separar os efeitos entre as etiologias155. Outro estudo com 42 pacientes com IC e DC mostrou que o aumento da dose de enalapril até o máximo recomendável era bem tolerado e melhorava a qualidade de vida, além de reduzir níveis de BNP e o índice cardiotorácico radiológico156.

A utilização dos IECAs na CCC é recomendada em todos os pacientes com disfunção ventricular, desde a classe funcional I (NYHA) até aqueles em classe funcional IV. Quando os IECA não são tolerados, o uso de BRAs constitui alternativa recomendada, com o mesmo suporte extrapolado de estudos em IC de outras etiologias157.

Em relação ao bloqueio da aldosterona, o uso de espironolactona e eplerenona (após infarto do miocárdio) demonstrou benefício em termos de morbidade e mortalidade de pacientes com IC158,159. O maior estudo randomizado, duplo-cego e placebo-controlado que estudou a espironolactona na fase crônica da IC incluiu outras etiologias além da isquêmica, inclusive chagásica (algumas dezenas destes pacientes com CCC)159. Nesse estudo, o benefício do fármaco em pacientes em classe funcional III-IV (NYHA) foi evidente. Entretanto, uma análise de subgrupo para pacientes chagásicos não foi realizada e nem teria grande validade prática, uma vez que não foi pré-especificada e o número amostral foi exíguo. Estudo experimental utilizando a espironolactona sugeriu algum benefício na sobrevida e em reduzir fibrose miocárdica em hamsters infectados com T. cruzi160. Esse fármaco está indicado para pacientes com disfunção sistólica de VE, FEVE < 35,0% e IC CF III/IV.

6.1.2. Bloqueio betadrenérgico

Na cardiopatia isquêmica e na cardiomiopatia dilatada com disfunção sistólica, o tratamento da IC com betabloqueadores adrenérgicos em adição aos bloqueadores do SRAA mostrou-se, em vários estudos, eficaz para melhorar a qualidade de vida, reduzindo os sintomas e a necessidade de hospitalizações, bem como para aumentar a sobrevida161-166.

Como exposto no capítulo sobre patogênese, há aspectos peculiares da fisiopatologia da CCC que envolvem o sistema nervoso autônomo29-34,167,168. Há evidência de que a CCC tenha, entre outras características, a de constituir modelo de cardioneuropatia, pela importante denervação parassimpática, que precede a instalação da disfunção sistólica do VE. Também se tem demostrado a circulação de anticorpos contra receptores adrenérgicos β-1 e muscarínicos M-2, os quais podem estar implicados na perpetuação do processo de IC. É possível, assim, que a característica ativação adrenérgica que se instala com a disfunção ventricular e se intensifica à medida que progride a IC, seja mais exacerbada em pacientes chagásicos do que em portadores de outras cardiopatias. Isso pode contribuir para acelerar o processo lesivo de remodelamento ventricular, induzir arritmias e talvez aumentar o risco de morte súbita.

Portanto, parece lógico extrapolar-se a indicação de BB no tratamento de pacientes chagásicos com disfunção ventricular, a partir dos estudos com outras causas de IC. Mas deve-se registrar que, sendo a bradicardia aspecto bastante frequente na CCC (por disfunção sinusal, denervação sinusal e bloqueios AV diversos), há considerável receio entre os médicos de agravar tal condição pelo uso de BB. Assim, por exemplo, no estudo BENEFIT, de cerca de 1.800 pacientes com CCC arrolados (80,0% deles em classes I e II da NYHA), apenas 32,0% eram tratados com BB49.

Mas há também, embora escassa, evidência direta de benefício do uso de BB para tratar IC, especificamente de etiologia chagásica. O carvedilol, adicionado ao enalapril e à espironolactona, em estudo randomizado, duplo-mascarado, com placebo, de 42 pacientes com CCC e FEVE < 45,0%, promoveu melhora significativa do escore de Framingham e da qualidade de vida, bem como redução apreciável do índice cardiotorácico e dos níveis de BNP circulante, além de aumentar em 2,8% a FEVE156. O bisoprolol está sendo comparado também de forma duplo-mascarada e randomizada, em chagásicos com IC, a placebo no estudo CHARITY, já em fase de seguimento final (ClinicalTrials.gov, NCT00323973)169. Extrapolando as recomendações atinentes ao tratamento de pacientes com IC de outras etiologias148, deve-se usar carvedilol, bisoprolol ou succinato de metoprolol para tratar pacientes chagásicos com sintomas e/ou sinais de IC, pregressos ou atuais, e FEVE < 45,0%. A dose diária deve ser titulada lentamente, visando a evitar FC < 50/min, em repouso. Esses fármacos também podem ser indicados mesmo na ausência de sintomas e sinais de IC, quando ocorre disfunção ou remodelamento de VE. Tais fármacos são contraindicados em pacientes com bradicardia < 50 bpm ou com distúrbios na condução AV (PR > 280 ms).

6.1.3. Hidralazina e nitrato

Extrapolando-se os estudos V-HeFT-II e A-HeFT, o uso da combinação de hidralazina e nitrato é recomendável para tratar pacientes chagásicos de qualquer etnia em classe funcional II-III, que apresentem contraindicação (insuficiência renal progressiva ou hipercalemia) ao uso de IECA ou BRA. Ainda extrapolando (estudo A-HeFT), também é possível recomendar o uso adicional desses fármacos, para afrodescendentes em classe funcional III-IV já com terapêutica otimizada (à base de IECA ou BRA)170,171.

6.1.4. Digitálicos

O digital é o fármaco utilizado há mais tempo no tratamento da IC e, entre todos os dotados de ação inotrópica positiva, testados em uso prolongado, foi o único que não aumentou a mortalidade quando comparado a placebo (empatou com ele, mas reduziu o número de internações por IC)172. Embora sem evidências semelhantes em pacientes chagásicos, e reconhecendo que sua ação inibidora sobre o nó sinusal e a junção atrioventricular pode ser potencializada por associação de outros fármacos, como os BB e amiodarona, o uso de digoxina pode ser justificado em pacientes chagásicos com FEVE < 45,0% sintomática (IC classe funcional II a IV NYHA), principalmente quando a frequência ventricular está elevada na presença de fibrilação atrial173.

6.1.5. Diuréticos

Como em outras etiologias de IC, diuréticos devem ser usados em chagásicos para aliviar sintomas e sinais congestivos. Esses fármacos em metanálise de estudos diversos evidenciam discreto efeito de reduzir a mortalidade, mas são também úteis por modular as respostas benéficas de outros fármacos, como os antagonistas neuro-hormonais, cujos efeitos são dependentes do balanço de sódio174. A associação de tiazídicos com diuréticos de alça é mais eficaz em graus mais avançados de IC. Os tiazídicos inibem a reabsorção de sódio principalmente no túbulo contorcido distal e são diuréticos suaves, mas não são geralmente eficazes quando o clearance de creatinina é menor que 30 ml/min. Os diuréticos de alça, dos quais a furosemida é o mais usado em nosso meio, inibem a reabsorção de sódio, potássio e cloro na porção ascendente da alça de Henle, têm ação rápida, curto período de ação (4 a 6 horas) e provocam diurese copiosa, além de poderem ser administrados intravenosamente. Não há motivo para se considerar que o efeito dos diuréticos nos pacientes com CCC não seja o mesmo que em miocardiopatas de outra etiologia81,175.

6.2. Prevenção de eventos tromboembólicos

A incidência anual de fenômenos tromboembólicos é de 1 a 2,0% em pacientes portadores de CCC176,177, mais elevada (60,0%) no subgrupo de pacientes com IC crônica. Nessas séries, o aneurisma da ponta do VE e a trombose mural do VE foram observados em 23,0% e 37,0%, respectivamente, dos pacientes. Por estudos necroscópicos, a trombose do aneurisma da ponta do VE foi descrita em até 99,0% dos casos178. Em pacientes com IC, a prevalência de trombose de câmaras direitas (53,0%) supera a das câmaras esquerdas (43,0%)178. O tromboembolismo pulmonar é raramente visto em pacientes sem IC manifesta, mas pode acometer 37,0% dos pacientes com IC. Em 85,0% dos casos, associa-se à trombose mural das câmaras cardíacas direitas179.

O tromboembolismo sistêmico afeta principalmente o cérebro, pode ser a manifestação clínica inaugural da doença, e associa-se à trombose mural e ao aneurisma da ponta do VE176. Estudo caso-controle mostrou que fatores de risco independentes de tromboembolismo cerebral são: IC, arritmias no ECG, gênero feminino e aneurisma da ponta do VE77. As indicações para anticoagulação são apresentadas na Tabela 6.

Em 2008, publicou-se nos Arquivos Brasileiros de Cardiologia trabalho com desenvolvimento de escore derivado de coorte prospectiva de 1.043 pacientes para avaliar risco e implementar a prevenção do AVE cardioembólico na CCC. A incidência relatada desse evento foi de 3,0% ou 0,56%/ano. A presença de disfunção sistólica do VE contribuiu com dois pontos e aneurisma apical, alteração primária da repolarização ventricular no ECG e idade > 48 anos com um ponto para cada uma dessas alterações. Por meio da análise de risco-benefício, a varfarina estaria indicada aos pacientes com 4-5 pontos (neste subgrupo, há incidência de 4,4% AVE versus 2,0% de sangramento grave ao ano). No subgrupo com escore de três pontos, as taxas de evento e sangramento com anticoagulante oral se equivalem, podendo ser indicado AAS ou varfarina. Nos pacientes com dois pontos, com baixa incidência de AVE (1,22% ao ano), foi recomendado AAS ou nenhuma profilaxia. Os pacientes com 0-1 ponto, com incidência do evento próximo a zero, não necessitariam de profilaxia51.

6.3. Tratamento da cardiopatia da fase aguda

A mortalidade nessa fase é inferior a 10,0% dos casos em que o diagnóstico é firmado, geralmente, em decorrência de meningoencefalite, IC grave e mais raramente por MS10,180,181. A fase aguda passa despercebida na maioria dos pacientes. Havendo sinais e sintomas de miocardite, o tratamento deve ser semelhante ao preconizado para miocardites de outras etiologias181,182. O tratamento consiste de medidas de suporte circulatório e de medidas conservadoras. Havendo estabilização hemodinâmica, o tratamento deve seguir as recomendações para o manejo crônico da disfunção ventricular sistólica e IC (Tabela 6).

6.4. Tratamento da IC crônica descompensada

A IC descompensada secundária à DC é causa de 3,0% das internações hospitalares no Brasil pelo SUS, ou seja, foi responsável por 33.684 internações em 2007, que custaram aproximadamente R$ 2.300.000,00175.

O perfil hemodinâmico de pacientes chagásicos com IC descompensada é o de IC por disfunção sistólica do VE. É caracterizado pelo aumento das pressões atriais, das pressões de enchimento ventriculares e de diminuição do débito cardíaco, com aumento das resistências vasculares sistêmica e pulmonar81. Não há evidências de descompensação cardíaca por causa de disfunção diastólica isolada do VE na miocardiopatia chagásica. Em pacientes com IC descompensada, o uso de furosemida, em doses convencionais, melhora a sintomatologia183. Em pacientes com IC leve a moderada, a espironolactona tem efeito benéfico no perfil neuro-hormonal, principalmente quando associada aos IECA155. Portanto, é possível que esse fármaco também seja útil no tratamento de pacientes chagásicos com IC descompensada.

O uso endovenoso de nitroprussiato de sódio apresenta bons resultados no alívio da sintomatologia de pacientes chagásicos com IC descompensada, diminuindo a pressão capilar pulmonar, as pressões de enchimento ventriculares e as pressões atriais, o que o torna atrativo para tratamento dos casos mais graves da IC descompensada184.

A utilização de IECA tem impacto favorável no perfil neuro-hormonal de pacientes chagásicos com IC descompensada, particularmente quando utilizados após a digitalização desses pacientes, a qual, agudamente, tem nítido efeito hemodinâmico185,186.

Em casos extremos de IC descompensada (choque ou pré-choque cardiogênico), a utilização de noradrenalina endovenosa parece apresentar bons resultados no prognóstico a curto prazo desses pacientes184. Recentemente, sugeriu-se a utilidade do uso de levosimendan188 em pacientes chagásicos que desenvolveram choque cardiogênico em decorrência de miocardite chagásica aguda.

6.5. Cardiopatia chagásica e comorbidades

6.5.1. Diabete melito

Os fatores de risco para aterosclerose devem ser controlados de forma adequada, independentemente da positividade das reações sorológicas para DC, já que esses pacientes estão sujeitos aos mesmos riscos que os com sorologia negativa189,190. Além disso, o diabete melito é por si só um fator de risco para o desenvolvimento de IC191. O diabete pode levar ao comprometimento das artérias coronárias epicárdicas e ao comprometimento da microcirculação, que, no caso dos pacientes com DC, já está previamente acometida. Estudos recentes mostram que ratos diabéticos infectados com T. cruzi morrem mais, além de terem alteração no metabolismo das células adiposas, sugerindo que, ainda que muito inicialmente, poderia haver relação entre a inflamação nesse tecido e o desenvolvimento da cardiopatia192.

Duas particularidades no tratamento de diabéticos com CCC e IC devem ser levadas em conta: o uso das tiazolidinedionas e da metformina. Em relação às primeiras, a roziglitazona, quando utilizada em pacientes em classe funcional I/II, ocasionou retenção hídrica, apesar de não ter alterado a FEVE, necessitando ajuste medicamentoso para compensação193, portanto está contraindicada nas classes funcionais III e IV. Quanto à metformina, seu uso deve ser feito com cuidado nas fases mais avançadas da IC de etiologia chagásica, nas quais o comprometimento da função renal é mais frequente e intenso, pela possibilidade maior de desenvolvimento de acidose metabólica.

6.5.2. Distúrbios da tireoide

Cerca de 30,0% dos pacientes com IC apresentam alguma disfunção da tireoide, com redução dos níveis de T3 que pode, eventualmente, ter relação com a gravidade dessa síndrome. Um fator complicador na IC de etiologia chagásica é a alta prevalência de arritmias supra e principalmente ventriculares complexas. Um dos poucos fármacos estudados, com resultados algo favoráveis nesta população de pacientes, é a amiodarona, a qual sabidamente promove distúrbios da função da tireoide tanto para o hipertireoidismo quanto para o hipotireoidismo, podendo acometer até 64,0% dos pacientes194. Todavia, os benefícios da amiodarona devem ser contrapostos ao risco de disfunção tireoidiana. É recomendável a monitorização periódica da função tireoidiana em chagásicos usando amiodarona. Nos pacientes com hipofunção da tireoide e sintomas decorrentes deste estado clínico, em uso de amiodarona, incluindo acentuação da bradicardia a reposição hormonal deve ser realizada criteriosamente.

6.5.3. Hipertensão arterial sistêmica

Alguns estudos mostram que os pacientes com DC e hipertensão arterial sistêmica são mais idosos e têm mais cardiopatia que os hipertensos com sorologia negativa195, apesar das características clínico-laboratoriais serem semelhantes nos dois grupos. Mesmo no seguimento de pacientes na forma indeterminada, a hipertensão arterial sistêmica foi a comorbidade mais frequente, tendo contribuído para a disfunção ventricular196. O controle da hipertensão arterial em pacientes com sorologia positiva tem que ser tão eficaz e cuidadoso como nos pacientes com sorologia negativa, sendo a combinação e a escolha de medicamentos semelhantes.

6.5.4. CCC e doença coronariana

Até poucas décadas atrás, os pacientes chagásicos eram predominantemente trabalhadores rurais, com baixo perfil de risco para doença obstrutiva coronariana. Com a crescente urbanização da população de chagásicos, a partir principalmente de 1980, eles passaram a incorrer nos mesmos riscos que os indivíduos não infectados por T. cruzi. Assim, é natural que a prevalência de doença arterosclerótica como causa de Infarto agudo do miocárdio seja semelhante em pacientes chagásicos e não chagásicos197. É controversa a noção de que a prevalência de doença arterosclerótica não obstrutiva (lesões mínimas), ou mesmo coronárias epicárdicas aparentemente normais, seja maior nos pacientes chagásicos que apresentaram infarto agudo do miocárdio37,189.

Deve-se, sobretudo, reconhecer a inerente dificuldade diagnóstica diferencial em pacientes chagásicos apresentando dor precordial, que, algumas vezes, é intensa e incapacitante. O ECG pode apresentar alterações compatíveis com a doença arterial coronária (e.g. anomalias de repolarização, ondas Q de fibrose) ou que impossibilitem a interpretação correta (como os BAV). Além disso, esses pacientes com frequência apresentam distúrbios perfusionais. Sendo assim, muitos pacientes chagásicos são encaminhados para coronariografia que, no mais das vezes, evidencia coronárias angiograficamente normais37.

Como regra geral, é razoável preconizar-se, para pacientes chagásicos com doença coronária obstrutiva, o mesmo tratamento que se prescreve para pacientes sem infecção por T. cruzi.

7. Tratamento das arritmias e distúrbuios de condução na cardiopatia chagásica

7.1. Mecanismos e substrato das arritmias e distúrbios de condução na cardiopatia chagásica

Arritmias e distúrbios de condução podem ocorrer tanto na fase aguda como na CCC28,198. A fase aguda geralmente é assintomática, mas, assim como em outras miocardites, arritmias e BAV podem ocorrer durante a infecção aguda e são marcadores de mau prognóstico28. A grande maioria das arritmias e distúrbios de condução ocorre durante a fase crônica da doença e é consequência direta da miocardite fibrosante crônica desencadeada pelo T. cruzi28,198, com formação de cicatrizes e aneurismas24,28,198. Essas cicatrizes miocárdicas localizadas ou dispersas pelos ventrículos contribuem para a gênese de arritmias ventriculares por reentrada199-201. . O tecido excito-condutor cardíaco também é frequentemente danificado, levando à disfunção do nódulo sinusal e distúrbios da condução atrioventricular e intraventricular28,198. Além da fibrose reparadora e reacional, ocorre lesão nas terminações nervosas cardíacas, especialmente as parassimpáticas, fenômeno que tem sido associado ao aumento no número de ectopias ventriculares, instabilidade elétrica miocárdica e MS nos pacientes com CCC24,28,198. Alterações na densidade e função das conexinas também poderiam contribuir para a gênese das arritmias e distúrbios de condução presentes nessa doença202.

As arritmias nos pacientes chagásicos podem provocar sintomas incapacitantes e MS70,203-205. As arritmias ventriculares são as mais frequentes e podem manifestar-se como ectopias isoladas ou formas repetitivas206. A TVS é a arritmia reentrante potencialmente fatal mais comum em pacientes com CCC e alterações contráteis segmentares, mesmo quando a função sistólica global é preservada24,28,198-200. O substrato arritmogênico dessa doença é complexo, com cicatrizes subendocárdicas, transmurais e epicárdicas no VE, podendo também acometer o VD200,201-207. Em razão dessa complexidade anatômica, os circuitos reentrantes da CCC podem ter a participação do subendocárdio, do subepicárdio (cerca de 55,0% das taquicardias ventriculares) e, por vezes, de ambos (circuitos transmurais), explicando a presença de episódios de TVS com múltiplas morfologias200,201,207.

7.1.1. Mecanismos das alterações do ritmo na cardiopatia chagásica

1. Fase aguda - miocardite (rara)

2. Fase crônica - o substrato invariavelmente presente compõe-se de:

Cicatriz fibrótica subendocárdica, subepicárdica ou transmural;

Aneurismas (predominância póstero-basal e apical);

Destruição do sistema nervoso autônomo.

7.2. Propedêutica laboratorial para definição diagnóstica e terapêutica das arritmias na CCC

Na avaliação inicial do paciente com DC, deve-se considerar a presença ou não de sintomas e de disfunção ventricular. A realização do ECG de repouso e ambulatorial (Holter), do teste ergométrico e ECO é extremamente importante e tem indicações precisas.

Em pacientes com a forma indeterminada, o ECG é normal, mesmo na presença de algum grau de lesão miocárdica. Com a evolução para a forma cardíaca, as alterações mais encontradas incluem o bloqueio de ramo direito, muitas vezes associado ao bloqueio divisional ântero-superior esquerdo, presença de zona eletricamente inativa, anormalidades de ST-T, extrassístoles ventriculares e BAV. O ECG também permite estratificação de risco. Pelo escore de Rassi79,85, a presença de baixa voltagem do QRS vale dois pontos, associando-se provavelmente a fibrose difusa.

O teste ergométrico pode induzir ou agravar arritmias ventriculares complexas, podendo orientar o tratamento e o seguimento clínico108,208, além de estabelecer objetivamente a classe funcional e a tolerância ao exercício dos pacientes.

7.2.1. Eletrocardiografia ambulatorial (Holter)

Pacientes com CCC usualmente apresentam alta densidade de arritmia ventricular, principalmente aqueles com alteração eletrocardiográfica, disfunção ventricular regional ou global e IC209,210. Nesses pacientes, o Holter deve ser realizado independentemente dos sintomas, pois pode identificar arritmias complexas, com impacto no tratamento e prognóstico79,85. Pelo escore de Rassi, a presença de TVNS no Holter é marcador de pior prognóstico, recebendo pontuação três79. Não é necessária a realização periódica de Holter nos pacientes assintomáticos na fase indeterminada209.

Na CCC, o comprometimento do sistema nervoso autônomo é evidente em vários testes fisiológicos e farmacológicos30-32,211. Entretanto, a variabilidade do RR, índice de função autonômica mais disponível clinicamente é inconsistente para avaliação prognóstica ou orientação terapêutica na CCC.

A avaliação da função ventricular pela ecocardiografia permite orientação terapêutica e prognóstica198,201. Os pacientes chagásicos com arritmia ventricular podem apresentar aneurismas ventriculares, no VE (80%), no VD (10,0%) ou em ambos (10,0%). A presença do aneurisma está associada à ocorrência de taquicardia ventricular e AVEl212. O ECO transesofágico está indicado em pacientes que apresentaram AVE, na ausência de visibilização de trombo em cavidades esquerdas pelo ECO transtorácico.

7.2.2. Estudo eletrofisiológico

O substrato anatômico ideal para reentrada está presente nesta cardiopatia, o que justifica o protocolo de estimulação ventricular programada para verificar a possibilidade de indução de arritmias reentrantes209,210. Por ser exame invasivo, o EEF pode causar mais riscos que benefícios em pacientes na fase indeterminada da doença.

O EEF tem se demonstrado útil na estratificação de risco de pacientes com CCC. Alguns autores demonstraram que os pacientes com TVNS submetidos à estimulação ventricular programada que apresentaram indução de TVS tiveram um prognóstico pior, com maior taxa de eventos durante o seguimento clínico209,213-215. . Naqueles pacientes que já apresentaram TVS ou TVNS tratados com amiodarona, um estudo demonstrou que a estimulação ventricular programada foi útil em identificar aqueles com pior prognóstico214. O EEF também tem papel decisivo na investigação da síncope na CCC, especialmente quando os exames não invasivos são inconclusivos. Nesses casos, a síncope pode ser causada tanto por bradiarritmias (disfunção sinusal, bloqueios atrioventriculares, assistolia) como por taquiarritmias ventriculares (Tabela 7).

7.3. Tratamento farmacológico das arritmias da cardiopatia chagásica

O objetivo do tratamento farmacológico das arritmias na CCC é o controle dos sintomas, sem evidências concretas de efetividade na prevenção de MS. Apesar de as arritmias ventriculares na DC estarem associadas a maior risco de MS e mortalidade total70,205,206,208,216, ainda não há evidências conclusivas de benefício clinicamente relevante pelo tratamento com fármacos antiarrítmicos. As arritmias ventriculares mais frequentes nos pacientes chagásicos são as ectopias ventriculares, isoladas ou repetitivas. A presença dessas arritmias em pacientes assintomáticos com função ventricular preservada dispensa tratamento antiarrítmico. Quando sintomáticas em pacientes sem disfunção ventricular, o tratamento antiarrítmico pode ser individualizado217. A amiodarona, apesar de ser o fármaco antiarrítmico mais eficiente, apresenta elevada incidência de efeitos colaterais. Betabloqueadores, sotalol e fármacos do grupo I como propafenona, mexiletine, disopiramida e procainamida, já foram consideradas como opção terapêutica no tratamento desses pacientes. Entretanto, hoje, considera-se que os fármacos do grupo I devam ser evitados em pacientes com cardiopatia estrutural (disfunção de VE) devido ao maior risco de pró-arritmias.

Quando as ectopias ventriculares e TVNS estão presentes em pacientes com disfunção ventricular esquerda, o único fármaco seguro é a amiodarona. Apesar da ausência de evidências de que ela mude o prognóstico desses pacientes a longo prazo, seu poder na redução da densidade de arritmias e controle dos sintomas é bem conhecido218-223. Nas doses usuais de 200 a 400 mg/dia, a amiodarona pode ser associada a betabloqueadores para reduzir eventos arrítmicos graves79. A TVS na DC deve ser avaliada com muita cautela, pois pode levar à MS já na sua primeira manifestação, mesmo na ausência de disfunção ventricular199,224.

Na abordagem da TVS na sala de emergência, a cardioversão elétrica deve ser utilizada se o paciente apresentar instabilidade hemodinâmica. Se estável, poderá ser tentada a reversão com amiodarona injetável, na dose de 150 mg em 10 minutos (podendo ser repetida caso não haja reversão). Após a reversão, segue-se com infusão de um mg/minuto nas primeiras 6 horas e, posteriormente, 0,5 mg/minuto nas 18 horas seguintes. A utilização de fármacos antiarrítmicos em pacientes com TVS e disfunção de VE importante (FEVE < 35,0%) deve ser instituída apenas como tratamento coadjuvante ao implante de cardioversor desfibrilador implantável (CDI). O medicamento de escolha nessas circunstâncias continua sendo a amiodarona, nas doses de 200 a 400 mg/dia. Nos pacientes com TVS bem tolerada e função ventricular preservada, a utilização de amiodarona e a ablação por cateter podem ser consideradas, apesar de o CDI ser a opção mais segura (Tabela 8).

7.4. Ablação cirúrgica e por cateter da taquicardia ventricular na CCC

A ocorrência de TVS em pacientes com CCC é um importante fator de risco para MS199, principalmente quando há grave disfunção do VE (FEVE < 30,0%)216. O papel da ablação tem sido melhorar a qualidade de vida dos pacientes, prevenindo o desconforto dos choques nos portadores de CDI e diminuindo o número de internações hospitalares para reversão das TVS durante o tratamento com antiarrítmicos225.

7.4.1. Ablação cirúrgica

Os procedimentos utilizando a ablação da TVS na CCC foram iniciados e desenvolvidos com cirurgia cardíaca225,226. O mapeamento eletrofisiológico pré e intraoperatório permitiu que o sítio de origem pudesse ser identificado e relacionado com áreas de acinesia e discinesia, localizadas em geral no VE227. A análise do material das biopsias obtido durante o tratamento cirúrgico guiado pelo mapeamento eletrofisiológico confirmou a presença do substrato cicatricial228, demonstrando que a parede inferior, lateral e basal do VE eram os mais frequentes sítios de origem da TVS, independentemente da presença de aneurisma apical225. Com o desenvolvimento tecnológico, o tratamento cirúrgico da TVS na CCC foi paulatinamente substituído pelo tratamento por cateter, sendo, hoje em dia, raramente recomendado, exceto em pacientes altamente selecionados (Tabela 9).

7.4.2. Ablação por cateter da TVS na CCC

A origem da TVS na CCC está topograficamente ligada em geral à lesão segmentar cicatricial endocárdica, epicárdica ou intramiocárdica. A TVS pode ainda ter múltiplos sítios de origem, tornando desafiadora a tarefa de eliminar todos os circuitos201,207,213,229,230. De maneira geral, o sítio de origem de TVS recorrente bem tolerada pode ser identificado e a TVS interrompida em 60 a 80,0% dos pacientes, mas TVS rápidas e mal toleradas são frequentemente induzidas na avaliação final do procedimento201,213,227-229. Durante seguimento a longo prazo, pelo menos 50,0% dos pacientes submetidos à ablação convencional apresentam recorrência clínica, justificando a manutenção de antiarrítmicos ou instalação de CDI230. Os resultados clínicos têm sido mais consistentes em pacientes com TVS incessante ou recebendo choques do CDI, submetidos a mapeamento simultâneo endocárdico e epicárdico, com auxílio do mapeamento eletroanatômico207. O procedimento pode ser de alto risco quando o paciente encontra-se em condição clínica desfavorável e com grave disfunção ventricular. Embora raras, as principais complicações são: agravamento da disfunção ventricular, choque cardiogênico, dissociação eletromecânica, tamponamento cardíaco, BAV total, AVE, oclusão coronariana e morte (Tabela 10).

7.5. Bradiarritmias e indicação de marcapasso na CCC

As bradiarritmias da CCC podem decorrer de disfunção sinusal ou de BAV. A doença produz danos em todo o sistema excito-condutor do coração, mais evidentes no nó sinusal e no sistema His-Purkinje, com infiltrado inflamatório, substituição do tecido normal por fibrose e, possivelmente, denervação autonômica causada por substâncias liberadas a partir da interação com parasitos vivos ou mortos231. Os BIV também são frequentes na CCC em especial o bloqueio do ramo direito associado ao bloqueio da divisão ântero-superior do ramo esquerdo232. Vários estudos observacionais sugerem benefício dos marcapassos cardíacos na CCC233-235, sendo que em algumas regiões da América Latina, onde a DC é endêmica, é a etiologia mais frequente para indicações de implante desses dispositivos. As indicações de marcapassos cardíacos na CCC estão inseridas nas Diretrizes Brasileiras de Dispositivos Cardíacos Eletrônicos Implantáveis236 (Tabela 11).

7.6. Indicações de CDI

As evidências científicas a respeito de indicações de CDI na CCC se restringem a publicações de série de casos, coortes retrospectivas ou registros, envolvendo apenas prevenção secundária de MS cardíaca237-249. Até hoje, nenhum estudo clínico randomizado, em larga escala, comparando a eficácia do CDI com fármaco ativo ou placebo na CCC, foi publicado (Tabela 12).

Não há qualquer evidência científica que sustente a indicação de CDI na prevenção primária de MS cardíaca e, portanto, neste momento, não há recomendação a ser sugerida.

7.7. Terapia de ressincronização cardíaca (TRC)

A TRC é a alternativa terapêutica definida para o tratamento de IC avançada, em pacientes portadores de cardiomiopatia dilatada que apresentam dissincronia da ativação ventricular244. A TRC se baseia no conceito de que o alargamento do QRS pode proporciar dissincronismo intra e interventricular, comprometendo a função sistólica ventricular245,246. Os resultados globais dos estudos clínicos demonstraram que a TRC proporciona redução significativa da classe funcional, melhora da qualidade de vida, assim como incremento da distância percorrida em 6 min e do VO2 pico e sugeriram redução da mortalidade total247,248. Esses ensaios incluíram essencialmente pacientes com cardiopatia isquêmica e cardiomiopatia dilatada idiopática. Embora seja provável que na CCC esses resultados sejam reprodutíveis, não há relato de coorte, registro ou estudo randomizado com inclusão exclusiva de chagásicos. Deve ser destacado que o bloqueio completo do ramo esquerdo, principal indicação eletrocardiográfica do procedimento, é pouco comum na CCC249.

Por outro lado, é importante ressaltar que o marcapasso convencional, frequentemente indicado na CCC, provoca morfologia de bloqueio de ramo esquerdo (atraso na ativação do VE), sobretudo em implantes com cabo em sítio apical do VD250. Há evidências de que os prejuízos hemodinâmicos sejam expressivos, principalmente na presença de disfunção ventricular pré-existente.

Na prática clínica, apesar da inexistência de evidências científicas consistentes, a indicação da TRC na CCC segue critérios extrapolados dos utilizados para isquêmicos e portadores de cardiomiopatia dilatada idiopática, nos quais os resultados, embora com restrições, são bem conhecidos236,251,252 (Tabela 13).

8. Transplante cardíaco e celular e outras terapias cirúrgicas na CCC

Investigadores brasileiros foram pioneiros na realização e no desenvolvimento do TC ortotópico para tratamento da CCC253-256. O transplante heterotópico geralmente não é indicado pela ausência de hipertensão pulmonar e de hiper-resistência em pacientes chagásicos, além de estar associado a maior número de complicações257. O ortotópico pode ser utilizado com anastomose bicaval e profilática anuloplastia tricúspide258,259. Em nosso meio, a miocardiopatia chagásica é a 3ª causa mais comum de indicação para TC260,261.

8.1. Peculiaridades etiopatogênicas e fisiopatológicas a serem consideradas para o TC em pacientes com CCC

Pacientes chagásicos crônicos submetidos a constantes exames mostram que a parasitemia pode ser persistente262. Técnicas variadas têm revelado que DNA ou antígenos do parasito estão presentes nos focos de inflamação no miocárdio263-265. O T. cruzi pode induzir alterações no sistema imune do hospedeiro - entre elas, falta de expressão de receptor para interleucina (IL)-2 e menor expressão das moléculas de superfície CD3+, CD4+ e CD8+ dos linfócitos265. Produção local de IL-7 e IL-15 pode estar associada com células CD8+264. Coinfecções com T. cruzi têm sido sugeridas recentemente, tendo como exemplo as arqueas, com potencial repercussão após transplante, pela imunossupressão que é induzida266.

8.1.1. Indicação e contraindicação (Tabelas 14 e 15)

Embora se apliquem em geral os critérios definidos para outras etiologias, as indicações do TC na CCC obedecem a algumas peculiaridades81. Pacientes com CCC, em geral, têm tendência a valores menores de resistência vascular pulmonar, de pressões na artéria pulmonar e de gradiente transpulmonar, minimizando a chance de disfunção do VD, frequente após o TC267. Assim, em pacientes com pressão sistólica de artéria pulmonar estimada indiretamente através de Doppler-ecocardiograma como abaixo de 50 mmHg, alguns centros de TC não têm sequer realizado exames invasivos. Quando o exame invasivo é indicado, o teste de reatividade pulmonar deve ser realizado utilizando-se vasodilatadores, como nitroprussiato de sódio, óxido nítrico, prostaglandinas, inibidores da fosfodiesterase-5 se a perssão sistólica da artéria pulmonar for > 50 mmHg, se o gradiente transpulmonar for > 15 mmHg ou resistência vascular pulmonar for > 3 unidades Wood268. Com uso do óxido nítrico, há certo risco de edema agudo do pulmão269,270. A determinação do nível de BNP pode ser útil nessa população66.

Em geral, pacientes com DC têm situação social e cultural mais desfavorável, constituindo a indicação de TC um desafio adicional para estes pacientes. Entretanto, relatou-se ausência de relação de condição socioeconômica com evolução após TC271. Todavia, atenção especial deve ser dada na identificação e melhora de condições sociais, aceitabilidade, acesso ao centro transplantador, adesão às recomendações da equipe, padrão educacional e dinâmica familiar.

Considerando o pior prognóstico da CCC (relativamente a outras etiologias de IC), o uso de medicamentos inotrópicos/vasopressores, de dispositivos de assistência mecânica (balão intra-aórtico, de assistência ventricular, ventilação mecânica) deve receber atenção especial nessa etiologia. Também a ascite e a disfunção do VD podem estar associadas à disfunção hepática e a maior risco de sangramento (Tabela 14).

Na CCC, também se deve analisar as contraindicações ao TC de forma individualizada, por tratar-se de grupo de pacientes geralmente mais jovens e com baixa taxa de comorbidades272 (Tabela 15). Ressalte-se a possibilidade de megaesôfago e megacólon, que, de acordo com sua gravidade, podem ser contraindicações ao TC.

8.1.2. Critérios de aceitação de órgãos

O diagnóstico de DC tem importância na doação de órgãos em razão de sua alta prevalência na América Latina e em países desenvolvidos em decorrência da imigração16,21. Como regra, infectados com T. cruzi não devem ser doadores de órgãos, pois transmissão da doença e óbito foram descritos com doador chagásico para receptor não chagásico273,274. Em situações selecionadas e com ênfase em receptor marginal em países onde há regulamentação, doadores com sorologia positiva para DC e sem acometimento do coração poderiam ser considerados para receptores com CCC. Em relato de caso, receptor de doador com sorologia positiva para DC recebeu profilaxia com benznidazol e não houve manifestação da DC275. Entretanto, há relatos de miocardite chagásica em receptores de órgãos de doadores com sorologia negativa para DC276.

8.1.3. Imunodepressão

Esquemas diversos que combinam drogas imunodepressoras, com ou sem indução de tolerância ao enxerto, têm sido utilizados no TC para CCC, com boa evolução277-279. Dentre as medicações passíveis de uso para prevenção da rejeição, destacam-se os corticoesteroides, ciclosporina, tacrolimus, azatiopriona, micofenolato, rapamicina e o everolimus. Na imunossupressão de manutenção, o esquema mais utilizado é associação de ciclosporina com azatioprina, com retirada do corticoesteroides tão cedo quanto possível. Não existem estudos comparando os vários esquemas de imunodepressão, entretanto, um maior número de reativações foi diagnosticado com uso de micofenolato mofetil280. Experiências com uso de tacrolimus, rapamicina, metotrexate e everolimus não têm sido publicadas, embora possam ter potencial benefício281. Como procedimentos ou medicamentos para induzir tolerância ou tratar episódio de rejeição, citam-se os corticosteroides, a ciclosfosfamida, o metotrexate282,283, antagonistas IL2-R, anticorpos policlonais, anticorpos monoclonais e aférese. O uso de medicamentos para indução é polêmico e reservado para casos e centros selecionados284.

O conceito preponderante é que, por ser portador de infecção por T. cruzi, o paciente chagásico deva receber a menor intensidade de imunodepressão possível, desde que sem rejeição (Figura 5).


8.1.4. Monitorização da infecção por T. cruzi antes e depois do TC (Tabela 16)

A monitorização da reativação da infecção por T. cruzi, antes e após TC , quer seja clínica, laboratorial ou histológica, é fundamental, devido ao risco inerente, inclusive de transmissão da infecção285-287.

8.1.5. Cronologia de seguimento após TC, em receptores soropositivos

A monitorização da reativação da infecção pelo T. cruzi após TC deve ser realizada rotineiramente e durante episódios com suspeita de reativação. Entretanto, não existem informações científicas que definam exatamente quando devem ser realização de rotina. Existem centros que a fazem no mesmo período das biopsias e outros centros que recomendam fazê-la semanalmente até dois meses do TC, depois, quinzenalmente até o 6º mês, e finalmente, de forma mensal até o primeiro ano decorrido do TC.

8.1.6. Métodos de pesquisa de reativação (Tabelas 16 e 17)

Provas sorológicas somente têm utilidade em pacientes soronegativos que recebem órgãos de doadores soropositivos. Em exame histológico em amostras de biopsias endomiocárdicas e outros tecidos, recomenda-se utilizar hematoxilina-eosina e giemsa, além da pesquisa específica do agente. Nos pacientes com suspeita de reativação clínica, segundo os sintomas, recomenda-se na presença de lesões cutâneas, biopsias de pele, biopsia endomiocárdica na suspeita de miocardite, exame de líquor com suspeita de manifestação neurológica e mielograma ou biopsia de medula para suspeita de acometimento de medula óssea. O valor do PCR tem sido testado para avaliar infecção por T. cruzi com resultados preliminares promissores288-290.

8.1.7. Métodos de detecção de T. cruzi em tecidos (Tabela 17)

O diagnóstico na histologia se faz pelo encontro de ninhos de amastigotas ou antígenos do T. cruzi. O principal diagnóstico diferencial é com toxoplasmose e, para isso, é fundamental o uso da imuno-histoquímica, que pode revelar antígenos do parasito mesmo na ausência de ninhos característicos. Nódulos de reativação da doença se apresentam como focos de paniculite no subcutâneo, com acúmulos linfo-histiocitários e intensa proliferação de amastigotas do T. cruzi no interior de macrófagos e células endoteliais291,292.

8.1.8. Diagnóstico diferencial entre rejeição e miocardite por T. cruzi após TC (Tabela 18)

Particular dificuldade diagnóstica se dá ao diferenciar-se a rejeição aguda celular da miocardite chagásica, pois esses processos podem ter semelhanças histopatológicas, basicamente representadas por focos de linfócitos agredindo fibras cardíacas não parasitadas, embora com diferenças quanto a algumas características do infiltrado292-294. Deve-se rotineiramente procurar ninhos parasitários em cortes histológicos sequenciais e fazer a reação de imuno-histoquímica contra antígenos do T. cruzi. A técnica da PCR tem sido utilizada para esse propósito, porém a sensibilidade e a relação com reativação ainda precisam ser comprovadas288,295.

8.2. Resultados do TC no Tratamento da CCC

Registro de pacientes submetidos a TC sugere que o prognóstico de receptores chagásicos é melhor do que aquele observado em receptores não chagásicos. A probabilidade de sobrevida desses pacientes é de 76,0%, 62,0% e 46,0%, em um ano, dois anos e seis anos após o procedimento cardíaco, respectivamente296. Outros centros têm relatado sobrevida semelhante à dos não chagásicos. É possível que isto se deva a fatores como: pacientes mais jovens e com menos comorbidades, rejeições menos severas, baixa incidência de doença vascular do enxerto, menor hiper-resistência pulmonar e ausência de cirurgia prévia296. A reativação da DC e a incidência de neoplasias já foram grandes problemas, mas isso hoje foi superado com a maior experiência no uso de baixas doses de imunossupressores ou de esquemas alternativos de imunossupressão119.

A infecção é a principal causa de óbito (21,0%) em médio e longo prazo de receptores chagásicos de TC na era contemporânea297. A rejeição é a segunda causa de óbito, acometendo de 10 a 14,0% dos receptores chagásicos260,297. Surpreendentemente, em experiência limitada38, a pericardite crônica foi a causa de óbito em 14,0% dos pacientes. A coronariopatia do enxerto e as neoplasias não são causas frequentes de óbito na atualidade.

8.3. Complicações

8.3.1. Pós-operatório imediato

A evolução clínica, assim como a morbimortalidade, de pacientes chagásicos receptores de TC é similar à observada em pacientes não chagásicos no período perioperatório. Isso deve estar relacionado ao fato de que, no período perioperatório, as complicações estão relacionadas mais às condições do doador, ao procedimento cardíaco e às condições gerais do receptor, do que à etiologia da IC crônica terminal.

Disfunção do enxerto (20,0%), rejeição do tipo 3A ou mais intensa (10-20,0%), a insuficiência renal aguda, sangramento (10,0%), principalmente em pacientes em uso de ventrículo artificial, e infecção bacteriana (20-30,0%) são as principais complicações observadas nesses pacientes durante esse período269. A infecção e a rejeição são as complicações mais frequentes, afetando até 30,0% e 20,0% dos pacientes, respectivamente270. É importante enfatizar que a reagudização clínica da DC, frequentemente encontrada no acompanhamento de pacientes chagásicos receptores de TC, é excepcionalmente observada no pós-operatório imediato. As principais causas de óbito precoce são falência aguda do enxerto (IC direita ou esquerda) e infecção, principalmente aquelas localizadas na árvore respiratória293. A disfunção do VD geralmente se normaliza na evolução298.

8.3.2. Reativação da infecção pelo T. cruzi

8.3.2.1. Apresentação clínica

A reativação da infecção por T. cruzi no paciente transplantado cardíaco ocorre com frequência de 0 a 50,0%, porém raramente constitui causa de óbito260,279,289,294,296, 297,299-301. Manifesta-se por febre, lesão cutânea, comprometimento de medula, miocardite, sintomas e sinais neurológicos. A detecção do parasito é frequente em pesquisa direta pelo esfregaço, xenodiagnóstico ou hemocultura, além das provas sorológicas302,303. A forma mais frequente de apresentação é a miocardite, que pode ser assintomática, mas pode se manifestar com IC e até choque cardiogênico293. Pacientes podem apresentar vários episódios de reativação durante o seguimento, com manifestações diferentes, mesmo que o episódio inicial tenha sido tratado ou que tenha recebido tratamento preventivo. Não foi ainda descrita miocardiopatia chagásica crônica no receptor277.

8.3.2.2. Diagnóstico da reativação

É comprovada quando, além dos sintomas e sinais de infecção, detecta-se o parasito no sangue, no líquor ou em amostras tissulares. Entretanto, também nos assintomáticos em cujos tecidos ou sangue se detecta o agente, persistentemente, considera-se reativação da infecção. São fatores associados com reativação da infecção por T. cruzi: número de episódios de rejeição, neoplasias e grau de imunodepressão, como, por exemplo, o uso de micofenolato304,305. A redução da imunodepressão reduz a chance de reativação. Existe controvérsia sobre se as características do T. cruzi teriam papel preponderante na reativação da infecção306.

8.3.2.3. Tratamento etiológico pré-transplante (em lista de espera) ou pós-transplante de rotina (Tabela 19)

Durante tratamento de episódio de rejeição, aumenta-se a dose de imunodepressores, e, consequentemente, incrementa-se o risco de reativação de infecção por T. cruzi. Embora seja simples optar por medicações anti-T. cruzi profilaticamente, não existem estudos que demonstrem a eficácia desta conduta. Assim, o ideal é o seguimento e monitorização rigorosa da possibilidade de reativação (Tabela 12). Embora em modelo experimental o tratamento com benznidazol tenha sido indigitado como produzindo carcinogênese, não há comprovação disso em humanos307.

8.3.2.4. Medicamentos utilizados no tratamento (Tabela 19)

O esquema terapêutico encontra-se em capítulo anterior sobre tratamento etiológico. O benznidazol é o preferível, sendo o nifurtimox a segunda opção, inclusive em casos de cepas parasitárias resistentes ao primeiro308,309. Embora experiência com pequeno número de pacientes tenha relatado efetividade do alopurinol, esta forma de tratamento não é recomendada310-312.

8.3.3. Infecção

As infecções são as mais importantes morbidades a médio e longo prazo de pacientes chagásicos submetidos a TC, afetando aproximadamente 30,0% dos pacientes no primeiro ano, e 50,0% deles após dois anos293,298,303, podendo ocorrer no local da cirurgia ou em outros órgãos313-315. Contudo, a incidência atual de infecção em receptores chagásicos parece inferior àquela observada no passado294, sendo também menor em comparação com não chagásicos303. Infecção é causa do óbito em receptores chagásicos de TC em 10-21,0%297.

8.3.4. Rejeição

Rejeição humoral, embora teoricamente possível, não tem sido relatada em pacientes chagásicos submetidos a TC315. Todavia, a rejeição celular é frequentemente encontrada nesses pacientes - cerca de 70,0% deles apresentam tal complicação no primeiro ano após o TC305. O grande problema de se achar infiltrado mononuclear inflamatório na biopsia miocárdica é que ele pode decorrer, na verdade, de reagudização da DC, pois nem sempre o parasito é visto com as técnicas rotineiras de coloração, e o infiltrado inflamatório visto na reagudização da DC é semelhante ao observado na rejeição graduada 3A ou 3B. Na verdade, até 43,0% dos pacientes podem apresentar inflamação miocárdica consistente com o diagnóstico de rejeição 3A ou mais grave, que não responde à pulsoterapia com corticoide, mas que desaparece com o tratamento específico para DC316. Em geral, a rejeição celular responde adequadamente à pulsoterapia com corticoide. Excepcionalmente, terapia de resgate pode ser necessária para debelar o processo de rejeição. Para detecção de rejeição, métodos invasivos e não invasivos são utilizados317,318.

8.3.5. Neoplasias

No início das séries, pacientes chagásicos receptores de TC mostraram aparente aumento na incidência de neoplasias275,319. Reanálise recente mostrou que essa maior incidência de neoplasias estava provavelmente relacionada a utilização de dose mais elevada de ciclosporina296. Atualmente, com uso de menores doses de agentes imunossupressores, a incidência de neoplasias em chagásicos receptores de TC é bastante baixa, causando óbito em 2,0% dos pacientes296.

8.3.6. Doença coronariana do enxerto

Pouco se sabe a respeito da incidência de coronariopatia do enxerto cardíaco em receptores chagásicos. Contudo, sua incidência parece ser baixa, menor do que 10,0% dos pacientes submetidos a TC280,297,320. Recomenda-se, para diagnóstico e prevenção, usar os mesmos métodos empregados para outras etiologias321-324.

8.4. Transplante celular e outras terapêuticas especiais

8.4.1. Resultados experimentais do transplante de células

Células de medula óssea foram obtidas de camundongos normais e injetadas por via endovenosa em camundongos na fase crônica da infecção chagásica. Observou-se redução significativa na miocardite, dois meses após o transplante, quando comparados aos controles325. Em estudo com ressonância magnética nuclear, observou-se que camundongos tratados com células mononucleares de medula óssea tiveram uma regressão da dilatação do VD326. Entre os potenciais mecanismos desses efeitos benéficos, incluem-se redução de apoptose, de fibrose, do processo inflamatório, estimulação de células residentes locais, e células transplantadas que passaram a ter morfologia de cardiomiócitos e expressão de miosina, indicando possível diferenciação de células transplantadas nesse tipo celular ou fusão com cardiomiócitos do animal receptor327,328.

8.4.2. Resultados clínicos

Estudos de fase I-II revelaram resultados iniciais favoráveis ao tratamento com células-tronco na CCC69,329-332. Entretanto, os resultados apresentados (ainda não publicados) de estudo randomizado de fase II/III não mostraram qualquer benefício, mesmo estudando-se apenas desfechos substitutos e não eventos clinicamente relevantes333. Apesar desses resultados, alguns investigadores ainda acreditam ser promissora a pesquisa com células-tronco. Há que se determinar qual o melhor tipo celular, doses a serem utilizadas, o momento e forma de aplicação, qual o doente apropriado etc. Saliente-se também o potencial de células mesenquimais, a utilização de hormônios celulares capazes de recrutar, induzir a proliferação e a diferenciação de células-tronco tendo como exemplo o G-CSF328,329. Esse parece reduzir significativamente tanto a inflamação quanto a fibrose no coração de camundongos chagásicos crônicos334.

8.4.3. Outras e novas terapêuticas cirúrgicas no tratamento da IC por DC

Devido a limitações de número suficiente de doadores335 e contraindicações para TC, vários outros procedimentos já foram ou estão sendo testados no tratamento CCC336. Entre esses procedimentos, incluem-se a cardiomioplastia337-342, a cirurgia de valva mitral para correção de insuficiência mitral isolada com reconstrução ou prótese343-345, ou associada a outros procedimentos345,346, e a ventriculectomia reducional (operação de Randas)347-354. Embora o número de pacientes incluídos seja pequeno, do ponto de vista clínico, nenhum desses procedimentos se mostrou efetivo a longo prazo, ainda que com algum benefício hemodinâmico, ou de classe funcional274,275. Esses procedimentos cirúrgicos teriam o objetivo de correção do remodelamento ou de suas consequências, como a insuficiência mitral e o aumento exagerado do diâmetro ventricular355-360. Assim, não há indicação de procedimentos cirúrgicos que não o TC para tratamento da CCC, exceto a utilização de suporte mecânico provisório.

O suporte cardíaco mecânico, quer seja ponte para transplante, ponte para ponte, ou ponte para recuperação, tem elevado potencial para futura utilização na CCC, a exemplo de outras etiologias, utilizando os mesmos critérios de indicação361. O primeiro suporte mecânico como ponte para transplante para CCC foi realizado em 1994 e o paciente continua bem até o momento361. Entretanto, a maior limitação a sua aplicabilidade é o alto custo.

9. Subgrupos especiais na Doença de Chagas: Coinfecção (HIV); Terapia imunossupressora e transplante não cardíaco; Grávidas; Recém-nascidos; Crianças e adolescentes; Soropositivos e bancos de sangue

9.1. Coinfecção pelo HIV

A importância da coinfecção T. cruzi/HIV deve-se ao risco de reativação da tripanosomíase em pacientes com DC crônica na vigência de imunodepressão causada pelo HIV, particularmente naqueles com linfócitos T-CD4+ < 200 céls/mm362-367. Foi também observada elevada frequência de transmissão congênita de T. cruzi com quadros graves de meningoencefalite e/ou miocardite e alta letalidade em filhos de mães coinfectadas364,368.

Por outro lado, a DC pode potencialmente interferir negativamente na evolução do HIV, por cursar com ativação do sistema imune5, que favorece a replicação do HIV, podendo levar a progressão mais rápida da doença. Aumento transitório da carga viral do HIV concomitante à reativação da DC tem sido relatado369.

A prevalência da coinfecção Chagas/HIV não é bem conhecida. Em ambulatório especializado no tratamento da infecção por HIV/AIDS em São Paulo, investigação da tripanosomíase foi realizada em 52,8% dos pacientes avaliados, e a coinfecção diagnosticada em 2,3% deles370. Em serviço de saúde de Buenos Aires, reações sorológicas para DC foram realizadas em 51,3% dos pacientes HIV+, sendo que 4,2% eram coinfectados371.

O diagnóstico de coinfecção T. cruzi/HIV é baseado em testes sorológicos. As reações sorológicas para DC devem ser indicadas para todo paciente HIV+ procedente de área endêmica ou exposto a risco de adquirir o T. cruzi (transfusões de sangue, mãe com DC)363,369.

O seguimento dos pacientes coinfectados deve ser feito, preferencialmente, em centros de referência363. A avaliação inicial e o acompanhamento destes pacientes visam, além do diagnóstico e tratamento das diversas manifestações associadas à infecção por HIV e à DC crônica, à detecção precoce de reativação.

A frequência de reativação da tripanosomíase em pacientes coinfectados por HIV não é bem conhecida. Em estudo prospectivo com seguimento prolongado, cerca de 20,0% dos coinfectados apresentaram reativação364. Além dos níveis reduzidos de linfócitos CD4+ (< 200 células/mm3), a parasitemia elevada (observada por métodos quantitativos) tem sido apontada como fator preditivo de reativação (50,0% dos casos).

A manifestação clínica mais comum da reativação é a meningoencefalite363-365,367,369. Miocardite é descrita em 30 a 40,0% dos casos relatados363-365,372. Outras manifestações, como pericardite, peritonite, eritema nodoso e colpite, foram ocasionalmente descritas. Formas oligossintomáticas e assintomáticas também podem ocorrer364.

A reativação da DC em pacientes HIV+ apresenta alta letalidade363,364,367, atingindo 100% naqueles não tratados ou tratados tardiamente. Instituição precoce do tratamento associa-se a melhor prognóstico com redução da letalidade para 20,0% nos pacientes que completam 30 dias de tratamento específico.

Tratamento etiológico da infecção por T. cruzi preemptivo pode ser considerado para pacientes HIV+ com alta parasitemia detectada por xenodiagnóstico semiquantitativo ou PCR quantitativo363,364.

Profilaxia secundária com benznidazol (5 mg/kg/dia, 3x/semana) tem sido utilizada, principalmente para pacientes com linfócitos T-CD4+ < 200 céls/mm5, por analogia a outras doenças oportunistas363,369,373, mas ainda precisa ser validada em estudos prospectivos.

Paralelamente ao tratamento da tripanosomíase, o tratamento antirretroviral deve ser mantido ou iniciado o mais precocemente possível.

O tratamento específico deve ser monitorado com avaliação clínico-laboratorial, que inclui hemograma, enzimas hepáticas, ureia e creatinina, eletrólitos e controle da parasitemia (exame parasitológico direto duas vezes por semana, para controle da resposta terapêutica, até a negativação). Após a suspensão do tratamento, exames parasitológicos periódicos também devem ser realizados uma vez que a efetividade da terapêutica nesses pacientes não está bem estabelecida363 (Tabela 20).

9.2. Transplante não cardíaco e terapia imunossupressora

A DC pode ocorrer através de três mecanismos em receptores de órgãos sólidos e medula óssea374,375:

    • Transmissão através de hemoderivados contaminados em receptor negativo para DC. Esta via é facilmente controlada em países endêmicos com a obrigatoriedade de realização de sorologia de Chagas em hemoderivados;

    • Aquisição da infecção de novo através de enxertos infectados, o que também seria facilmente controlado em regiões endêmicas, onde a sorologia de Chagas é obrigatória no processo de doação;

    • Reativação de doença latente em receptor previamente infetado, com invasão aguda do enxerto livre de doença através da disseminação da parasitemia associada à imunossupressão.

A taxa de reativação da DC tem sido descrita entre 9 e 16,0% com transplante renal58 e 17 a 40,0% com medula óssea376, sendo mais comum no primeiro ano, quando a imunossupressão é mais intensa. Em geral, há boa resposta ao tratamento, mas há relatos de disfunção e perda do enxerto ou mesmo óbito, independente do uso adequado de benznidazol377.

A taxa de transmissão quando foram utilizados enxertos renais infectados em receptores negativos é estimada em 35,0%378, contudo, em geral, os casos ocorridos após enxertos renais ou hepáticos infectados são descritos como brandos, alguns com parasitemia não detectada e excelente resposta à terapia tripanossomicida378,379. É importante ressaltar que a DC em potencial receptor não é contraindicação a qualquer tipo de transplante, já que o tratamento específico, conforme mencionado, é capaz de rapidamente suprimir as manifestações clínicas da reativação.

Casos de reativação da DC com apresentação clínica de meningoencefalite e/ou miocardite e lesões dermatológicas também têm sido descritos em pacientes imunossuprimidos portadores de câncer hematológico (leucemias e linfomas). Nesses casos, em geral, o parasito é facilmente encontrado no sangue periférico e a mortalidade pode ser elevada, principalmente quando o diagnóstico é tardio. Tratamento com nifurtimox ou benznidazol pode conduzir à remissão e reduzir significativamente a mortalidade380.

Corticoterapia, frequentemente utilizada de forma crônica em pacientes com doenças autoimunes, é associada com elevação da parasitemia, mas o seu papel na reativação clínica da doença ainda não foi inteiramente comprovado. Os casos relatados envolvem comprometimento da imunidade celular, seja pela doença de base, seja pelo uso concomitante de outros imunossupressores. Dessa forma, a profilaxia com tripanossomicida em pacientes chagásicos que fazem uso crônico de corticosteroide, ainda é controversa, com alguns autores indicando possíveis benefícios na profilaxia primária380, enquanto outros apontam para a falta de estudos clínicos controlados e o risco de efeitos colaterais da medicação381.

9.3. Gestantes

A CCC ocupa o segundo lugar entre as cardiopatias presentes no ciclo gravídico-puerperal, atrás apenas da cardiopatia reumática. Estudo realizado no estado de Minas Gerais, em 2009, identificou prevalência da DC em puérperas de 0,5%, com prevalências mais elevadas observadas na região norte do estado, variando de 2,3% a 23,0%382.

O risco de transmissão vertical é substancialmente maior na fase aguda (62,0%) do que na fase crônica (1,6%)383.Os mecanismos da transmissão vertical ainda são pouco conhecidos. Há indicativos de que a produção de citocinas imunorreguladoras e a carga parasitária tenham relevância nesse contexto384. Em mães chagásicas que não transmitem sua infecção ao feto, não há maior frequência de aborto, prematuridade ou mortalidade perinatal, porém nas mães que transmitem a infecção há maior tendência à natimortalidade. Parece existir maior risco de transmissão quando a gestação ocorre em ocasiões sucessivas385.

O impacto da DC no transcurso da gravidez é controverso. Alguns trabalhos apontam no sentido da benignidade dessa associação386, enquanto outros verificam elevadas incidências de complicações na gestação e de mortalidade perinatal, bem como hipotrofia neonatal, considerando as gestantes chagásicas como grupo de alto risco obstétrico387.

Gestantes chagásicas cardiopatas têm prognóstico estreitamente relacionado à gravidade da disfunção ventricular e classe funcional no início da gravidez. Pacientes que iniciam a gestação em classe funcional I e II geralmente chegam ao parto sem intercorrências. Chagásicas em classe funcional III ou IV têm probabilidade de 25 a 50,0% de morte materna388.

A presença de cardiopatia, desde que assistida e sem maior gravidade, não contraindica a gravidez. Nesta situação, a CCC não limita o número de gestações, não predispõe à prematuridade, não promove antecipação da data do parto e não afeta significativamente o peso do nascituro. Pacientes com IC e ou arritmias graves devem ser desaconselhadas a engravidar. Pela possibilidade de agravamento durante a gestação, as grávidas em tais condições requerem acompanhamento e cuidados especiais.

O tratamento etiológico (com tripanossomicidas) não deve ser instituído em gestantes ou mulheres em idade fértil e que não estejam em uso de contraceptivos. O uso de medicamentos, com ação sobre o sistema cardiovascular, pela gestante chagásica, deve seguir indicação médica absoluta, devido ao risco potencial de efeitos sobre o feto (Tabela 21).

9.4. Recém-natos

No atual estágio de controle vetorial e transfusional, a transmissão vertical passou a ser um importante mecanismo de transmissão da DC no Brasil e em outros países do Cone Sul81,389. A taxa de transmissão vertical por T. cruzi apresenta diferenças regionais, variando em torno de 1,0% no Brasil e de 4 a 12,0% em outros países do Cone Sul, e parece depender de fatores ligados ao parasito e ao hospedeiro. A alta possibilidade de cura da DC congênita faz com que seu diagnóstico precoce seja imperativo.

Em trabalhos realizados no Brasil, Argentina, Chile e Paraguai, foi demonstrado que 60 a 90,0% dos recém-natos com infecção congênita são assintomáticos. Nos sintomáticos, as alterações clínicas mais frequentes são prematuridade, baixo peso, febre e hepatoesplenomegalia390.

Nas primeiras semanas de vida, o diagnóstico de infecção congênita baseia-se na pesquisa do T. cruzi por método parasitológico direto e deve ser realizado nas crianças com manifestações clínicas sugestivas de infecção congênita. A técnica do micro-hematócrito é de fácil realização e apresenta boa sensibilidade, especialmente no primeiro mês de vida. Se o resultado for positivo, deve-se iniciar o tratamento etiológico imediatamente. A DC congênita é considerada aguda e, portanto, de notificação obrigatória.

Em caso de exame negativo, deve-se completar a investigação diagnóstica com testes sorológicos (com duas técnicas distintas) após o 7º mês de vida. Estudo sorológico antes do 6º mês não é útil devido à passagem passiva de anticorpos maternos. Entre o 6º e o 9º mês, tais anticorpos desaparecem e o diagnóstico de DC congênita pode ser realizado. A soropositividade implica em iniciar o tratamento específico. A sorologia negativa após o período acima referido permite a exclusão do diagnóstico de infecção chagásica.

A PCR para o diagnóstico de infecção chagásica é avanço potencial de recente aquisição391, mas, em alguns centros, apresenta problemas de especificidade e por isso não deve, ainda, ser utilizada na prática clínica.

O tratamento da infecção chagásica no recém-nato pode ser realizado com uso de benznidazol ou nifurtimox por 30 a 60 dias, com resultados similares e altos índices de cura392.

Finalizado o tratamento, deve-se realizar controle sorológico a cada 6 meses, até obterem-se dois resultados consecutivos negativos. Se o recém-nato iniciar o tratamento com micro-hematócrito positivo, deve-se repetir esse exame parasitológico após 15 dias de iniciada a medicação389.

O critério atual de cura é a negativação da sorologia nos testes após tratamento. O tempo necessário para ocorrer a negativação depende da idade do início do tratamento. As crianças diagnosticadas nos primeiros meses de vida negativarão a sorologia entre o segundo e 12º mês, após o início do tratamento. A PCR tem sido proposta como marcador de resposta terapêutica, mas ainda aguarda maior padronização para ser utilizada na prática clínica (Tabela 22).

9.5. Soropositivos e bancos de sangue

Rastreamento de rotina para DC em bancos de sangue faz parte da estratégia de prevenção da transmissão do T. cruzi estabelecida pela iniciativa dos países do Cone Sul, na década de 90, e deve ser realizado em todos os candidatos a doação em países endêmicos283.

Em países não endêmicos, duas estratégias têm sido utilizadas para prevenção da transmissão por transfusão: excluir da rotina doadores com história epidemiológica positiva ou aceitar a doação após teste sorológico negativo. Essa segunda abordagem vem sendo introduzida em países onde há população vultosa de imigrantes da América Latina, como EUA, Espanha e França.

Muitos testes com a técnica ELISA são considerados sensíveis o suficiente para serem recomendados como ferramenta única no rastreamento de DC em doadores de sangue393. A prática técnica no rastreamento para DC nos bancos de sangue deverá observar as legislações locais. Resultados reatores ou positivos em testes realizados em bancos de sangue devem ser considerados como rastreamento, ou seja, resultado não definitivo, e, por isso, é indicada a investigação diagnóstica confirmatória posterior em centros de referência.

10. Recomendações para constituição de serviços estruturados de acompanhamento a pacientes com CCC

Em se considerando a importância do impacto de fatores sociais, econômicos e culturais envolvidos na gênese e na evolução da CCC, sua abordagem requer adoção de modelo assistencial que transcenda o aspecto puramente biológico, procurando oferecer ao paciente assistência integral, levando em consideração o conjunto de determinantes biológicos, psicológicos e sociais. Essa iniciativa requer a criação de equipe multiprofissional, tecnicamente bem preparada e sintonizada com a ideologia do cuidar.

A experiência tem mostrado que, diante dessas peculiaridades, um importante desafio é imposto para o sistema de saúde, uma vez que existem numerosas lacunas no manejo dos pacientes, quando acompanhados em clínicas sem estrutura adequada. Uma estrutura adequada implica em espaço ambulatorial próprio, vinculado ou com retaguarda de hospital, preferencialmente de ensino, com disponibilidade de métodos diagnósticos invasivos e não invasivos, tratamento clínico e cirúrgico, leitos de alta complexidade. Esse serviço tem como objetivo a melhoria da adesão ao tratamento, diminuição da morbimortalidade e impacto positivo na qualidade de vida dos pacientes394.

10.1. Atribuições de serviço estruturado

    1. Realizar o diagnóstico etiológico por meio de dados clínico-epidemiológicos e testes sorológicos (dois testes com metodologias diferentes);

    2. Estadiar o comprometimento cardíaco que determinará a periodicidade do acompanhamento;

    3. Estabelecer o plano terapêutico (etiológico e sintomatológico) e o prognóstico de acordo com o grau de comprometimento cardíaco;

    4. Monitorar o paciente sistematicamente;

    5. Identificar comprometimento digestivo associado e, quando presente, orientar ou encaminhar para serviço de referência em gastroenterologia;

    6. Tratar as comorbidades identificadas ou encaminhar o paciente para interconsulta em serviço especializado;

    7. Estimular a adesão ao tratamento farmacológico e não farmacológico otimizando a relação custo/efetividade;

    8. Propiciar ações educativas ao paciente, familiares e cuidadores, sobre a doença, o autocontrole, objetivando a identificação precoce de sinais e sintomas de descompensação cardíaca;

    9. Esclarecer sobre a impossibilidade de se doar sangue, órgãos e tecidos;

    10. Propiciar orientação nutricional;

    11. Oferecer suporte psicológico ao paciente e seus familiares, objetivando diminuir o estigma, o autopreconceito, os tabus e as crenças inadequadas em relação às doenças;

    12. Orientar sobre aspectos médico-trabalhistas e previdenciários, gestação, planejamento familiar, exercício físico e atividade sexual;

    13. Esclarecer o paciente e seus familiares quando houver necessidade de implante de marcapasso ou CDI, bem como de TC;

    14. Esclarecer sobre a prevenção de fatores agravantes (álcool, tabagismo, drogas lícitas e ilícitas);

    15. Promover o atendimento ao paciente em situações especiais (portadores de marcapasso e CDI);

    16. Capacitar e reciclar profissionais da saúde com enfoque específico sobre as peculiaridades do paciente portador de CCC, estimulando o ensino e a pesquisa;

    17. Identificar outros membros da família contaminados pelo T. cruzi e incorporá-los ao serviço para conduta terapêutica;

    18. Estimular e apoiar a criação de associações de pacientes portadores de DC, visando a melhor integração de seus participantes (pacientes e familiares), estabelecendo um canal de comunicação com a comunidade científica e uma política a respeito de suas reivindicações394.

10.2. Equipe multiprofissional

A multidisciplinaridade é, hoje, reconhecida como a melhor forma de assistência aos pacientes com doenças crônicas81,395-397. Ao criar-se um serviço destinado e vocacionado a portadores de DC, torna-se importante contemplar suas peculiaridades, procurando compreendê-la dentro de um contexto biopsicossocial398-400. Nessa proposta de trabalho, cada componente da equipe tem o seu papel definido, devendo conhecer seus limites, suas possibilidades e suas responsabilidades, embora seja fundamental que todos interajam com os outros. Cada um deles observa uma face da verdade do mesmo indivíduo. É necessário que essa equipe tenha conhecimento básico da CCC, assim como da rotina de sua condução, para que todos falem uma mesma linguagem Dessa forma, busca-se evitar informações distorcidas, ou mesmo iatrogênicas. Diante da necessidade de interação de múltiplos saberes, o grande desafio é manter no ambiente da equipe um clima de cooperação, evitando sempre a competição predatória.

O serviço estruturado deve dispor idealmente dos seguintes profissionais: médico cardiologista, enfermeiro, psicólogo, nutricionista e assistente social, podendo ser ampliado de acordo com a adoção de novas terapêuticas, com a participação do educador físico, fisioterapeuta, farmacêutico e terapeuta ocupacional. A dimensão da equipe deverá ser ajustada à realidade e às possibilidades de cada serviço, à demanda de pacientes e acima de tudo ao que se propõe394,401.

10.3. Identificação de comorbidades e criação de mecanismo de referência e contrarreferência

Com o envelhecimento da população portadora de CCC e o manejo mais adequado da cardiopatia, a prevalência de comorbidades também aumentou, sendo necessária sua identificação, principalmente daquelas que aumentam o risco cardiovascular e contribuem para a piora da cardiopatia, agravando o prognóstico402.

10.4. Educação e saúde

A educação do paciente e de seus familiares começa pela avaliação do seu conhecimento sobre a doença e o tratamento. Atividades educativas individuais ou coletivas devem ser realizadas periodicamente, devendo-se focar em informações sobre o que é a doença, mecanismo de contágio, evolução, necessidade de avaliações periódicas mesmo naqueles indivíduos assintomáticos, importância do tratamento regular e impossibilidade de doação de sangue, órgãos ou tecidos. Hoje, há possibilidade de chagásicos serem doadores de sangue, órgãos e tecidos na situação de "doação expandida", ou seja, portadores de DC podem ser doadores em situações em que haja consentimento do receptor e este também seja portador da mesma patologia403.

10.5. Modelo de gestão para um serviço estruturado

A atenção e a promoção da saúde ao portador de CCC devem obrigatoriamente estar calcadas em estrutura de atendimento que permita ações integrais, perpassadas por práticas de humanização e gestão de qualidade404-406. O modelo de atenção a esse paciente, na rede pública de saúde integrada ao SUS, pressupõe a existência das condições necessárias para o seu desenvolvimento, por meio do fortalecimento técnico e gerencial das instituições envolvidas em planejamento, coordenação, execução e avaliação desses serviços em todos os níveis, com o objetivo de oferecer melhor assistência, observando-se o custo/efetividade das ações407-409.

10.6. Benefícios esperados de um serviço estruturado para acompanhamento a pacientes portadores de CCC

O serviço estruturado para acompanhamento de portadores de CCC poderá comprovar o que tem sido descrito para outras doenças crônicas81,395,397. Embora se saiba que aparentemente a implantação de um serviço estruturado implica em maior investimento no número de profissionais envolvidos, recurso financeiro limitado e aspectos gerenciais, acredita-se que a sua criação poderá ser custo/efetiva em médio e longo prazo21-410. Essa proposição não deve ser encarada como um modelo matemático fechado, mas sim apoiada em princípios gerais de orientação para auxiliar na composição de serviços estruturados. Em suma, os serviços estruturados têm como missão precípua promover assistência que favoreça a estabilidade clínica, psicológica e social do paciente.

11. Prevenção da transmissão com adendo sobre critério sorológico

11.1. Introdução

Em 200581, a área endêmica com risco de transmissão vetorial da DC na América Latina englobava 19 países, com 108.595.000 pessoas expostas ao risco. Em 1950, iniciaram-se as ações contra o inseto vetor no Brasil, Chile, Argentina e Venezuela, enquanto se intensificavam a urbanização, o êxodo rural e a modernização agropastoril. A partir de 1980, foi priorizado o programa brasileiro de controle e os bancos de sangue começaram a excluir doadores para DC, alcançando-se hoje, no Brasil, cobertura de 100% de verificação sorológica de doadores. Houve drástica redução da transmissão, logrando-se a certificação da eliminação do Triatoma infestans e da transmissão transfusional no Uruguai, Chile e Brasil81. Em decorrência, decaiu a prevalência nas mulheres férteis e a transmissão congênita também diminuiu. Dos cem mil casos novos anuais estimados no Brasil em 1979, cerca de duas centenas são hoje detectados, a maioria na Amazônia, devidos a surtos de transmissão oral81,410. As ações e estratégias já disponíveis são suficientes para controlar os principais mecanismos de transmissão da DC nas situações mais comuns de sua ocorrência. Ainda não existe uma vacina segura e eficaz contra a DC411. Os desafios básicos são manter os bancos de sangue controlados e sustentar e manter a necessária vigilância epidemiológica sobre o vetor88. O presente capítulo é baseado em resultados de campo, em longa investigação e em documentos de consenso oficiais81 (Tabela 23).

11.2. Formas de transmissão e fatores envolvidos

São formas de transmissão admitidas ou possíveis para DC412,413:

A. Habituais:

• Vetorial

• Transfusional

• Congênita

B. Alternativas (ou secundárias):

• Acidental em laboratório

• Oral (incluindo por leite materno)

• Por transplantes de órgãos

C. Hipotéticas:

• Por picada de insetos (triatomíneos e outros)

• Por contato com fezes de triatomíneos infectados

• Por via sexual

• Esdrúxulas (práticas sadomasoquistas, juras de amor com troca de sangue, criminal).

11.2.2. Descrição sumária dos principais mecanismos

11.2.2.1. Transmissão vetorial

Ocorre pelo contato do indivíduo suscetível com fezes de triatomíneos infectadas por Trypanosoma cruzi. A penetração do parasito dá-se por solução de continuidade na pele ou através de mucosas íntegras. Das mais de 140 espécies descritas do vetor, as mais competentes transmissoras são aquelas com maior poder de colonização domiciliar, maior grau de antropofilia e metaciclogênese, e com menor tempo repasto-dejeção. Hoje, distinguem-se áreas virtualmente sob controle e com risco eventual de transmissão por vetores secundários ou silvestres (Uruguai, grande parte do Brasil) e áreas ainda com transmissão ativa, com ações de controle precárias ou inexistentes. Por existirem focos silvestres em toda América Latina, a ocorrência de transmissão sempre será possível. Não obstante, pode-se virtualmente eliminar a transmissão intradomiciliar, mediante ações contínuas de controle e vigilância21,283.

11.2.2.2. Transmissão transfusional

Ocorre entre doador infectado (geralmente crônico) e receptor suscetível. O parasito permanece infectante por mais de duas semanas em sangue estocado. O risco de transmissão para 500 ml de sangue total infectado crônico varia entre 12 e 25,0%, aumentando em doadores em fase aguda e em situações de imunodepressão (doador ou receptor). Plasma fresco congelado e concentrados (plaquetas, hemácias e leucócitos) infectados também podem transmitir a DC414.

11.2.2.3. Transmissão congênita

Ocorre principalmente após o terceiro mês de gravidez. Implica em colonização da placenta pelo parasito, mas pode dar-se pela ingestão de líquido amniótico contaminado ou por contato do feto com sangue materno. Seu risco varia entre 1 e 5,0% em gestantes crônicas (menor no Brasil do que na Bolívia, por exemplo), sendo maior em gestantes agudas ou imunodeprimidas. Uma mulher infectada pode transmitir o parasito em uma ou várias gestações. Em maioria, os conceptos nascem a termo e assintomáticos, mas pode haver morte fetal e prematuridade. Os recém-nascidos sintomáticos apresentam febre, baixo peso, taquicardia e hepatoesplenomegalia414,415.

11.2.2.4. Acidentes de laboratório

São devidos à contaminação com diversos materiais infectados, ao manejo de triatomíneos e à manipulação de mamíferos infectados, de culturas, de sangue de casos agudos etc. Já houve casos esporádicos em cirurgias de chagásicos e aspiração de aerossóis416.

11.2.2.5. Transmissão oral

Em tempos antigos, foram descritos eventos na Argentina, Pará, Rio Grande do Sul, México, Paraíba e, mais recentemente, na Amazônia (especialmente Pará e Amapá), em Santa Catarina, Ceará, Bahia, Venezuela e Colômbia. Estariam implicados diversos tipos de alimentos contaminados, especialmente sucos (cana, açaí, bacaba, goiaba), leite, sopas, carne crua de caças etc. À parte o leite de mãe infectada (evento extremamente raro e improvável) e carne mal cozida de mamíferos infectados (de tatu, por exemplo), no mais das vezes os eventos descritos parecem corresponder à contaminação de alimentos com triatomíneos infectados ou suas dejeções, em ambientes com infestação peridomiciliar ou com área silvestre próxima. Houve um surto de provável contaminação por urina ou secreção glandular de marsupial81.

11.2.2.6. Transmissão em transplantes de órgãos

Pressupõe doador infectado e receptor suscetível, descrita em transplantes de rins (os mais frequentes), de coração, de pâncreas, de fígado e de medula óssea. Os riscos de ocorrência são maiores em doadores de parasitemia mais intensa (agudos) e em receptores imunodeprimidos (pela doença de base ou pela própria medicação recebida após o transplante)416.

11.3. Principais esquemas e estratégias de controle da DC

A DC não é erradicável, dada a permanência do ciclo silvestre do T. cruzi e casos de transmissão oral. Todavia, o controle adequado (vetor domiciliado e sangue) é altamente efetivo, resultando em virtual eliminação da transmissão, o que reduz os riscos de transmissão congênita e transfusional81,283. Em geral, o controle da DC compete aos sistemas públicos de saúde, cabendo parcela desse controle a sistemas privados, particularmente no caso de bancos de sangue particulares. No Uruguai e no Brasil417, por exemplo, controlados o principal vetor e os bancos de sangue, a transmissão reduziu-se a níveis mínimos nas últimas décadas, restando, hoje, casos eventuais de transmissão congênita, ao lado de surtos imprevisíveis de transmissão oral21. A consolidação do controle nesses países dependerá de continuidade em esquemas de vigilância sustentada81,413.

11.3.1. Controle da transmissão vetorial

Baseia-se na luta química contra os vetores domiciliados e nas ações de melhoramento habitacional.

11.3.1.1. Uso de inseticidas

É a medida isolada mais usada, com resultados mais rápidos, pela aplicação em forma sistêmica e continuada em áreas contíguas. No Brasil, até 1999, dependia de equipes centralizadas (SUCAM, FNS, SUCEN); posteriormente, as ações foram descentralizadas para os municípios, sob coordenação estadual. O programa pressupõe etapas de investigação, planejamento, ataque maciço e vigilância414,415. Até 1980, os principais inseticidas eram os organoclorados (BHC, Dieldrin®) e organofosforados (Malathion®, Fenitrotion®). Modernamente, foram substituídos por piretroides de síntese, de maior ação residual e menores riscos humanos e ambientais. Possuem longa ação residual e agem por contato, afetando especialmente o sistema nervoso do inseto.

Os principais produtos em uso com sua dose recomendada são416:

São aplicados especialmente no interior das casas (ação residual superior a 6 meses) e anexos peridomiciliares (ação mais curta). As formulações melhores são em pó molhável, microencapsulados e suspensão concentrada416. Têm baixa toxicidade sobre pessoas, geralmente limitando-se a irritações na pele e mucosas. O grande desafio atual é o peridomicílio, que concentra a maioria dos focos residuais do país. Não se justifica luta química no ambiente silvestre, mas ordenamento ambiental e afastamento de ecótopos naturais e reservatórios silvestres do âmbito domiciliar. Na vigilância, focos domiciliares são notificados pela própria população e expurgados por equipes municipais, quando indicado. Alguma resistência aos piretroides por triatomíneos surgiu em áreas focais da Bolívia e da Argentina416. Nesses casos, a alternativa indicada é o emprego de outra família de inseticidas, os carbamatos.

11.3.1.2 Melhoria da habitação

Implica no melhoramento de setores da casa (paredes, tetos) ou em novas construções. De forma geral, é a medida mais duradoura e transcendental que o inseticida, mas não o substitui em áreas endêmicas. Além de significar promoção de vida, é proteção contra a DC, por dificultar o ingresso e colonização do vetor. As evidências acumuladas por muitos anos mostram que a sustentação dos níveis de controle depende decisivamente da participação interessada da população na vigilância entomológica da DC81.

11.3.2. Controle da transmissão transfusional

As estratégias básicas são a seleção de doadores por sorologia prévia e a quimioprofilaxia417. A primeira é a mais usada, prevista por lei em vários países latino-americanos. No Brasil, até 2004, era exigida a triagem sorológica por duas técnicas de princípios diferentes. A partir de 2004, tendo em vista a baixa prevalência da infecção chagásica nos doadores, passou-se a exigir apenas uma técnica, desde que o princípio desta fosse imunoenzimático, com altos índices de sensibilidade417. Os doadores soropositivos são considerados inaptos permanentes e devem ser encaminhados a serviço médico para avaliação e tratamento. A quimioprofilaxia se faz com a adição de violeta-de-genciana a 1:4.000 em sangues suspeitos por 24 horas, tempo necessário para erradicação do T. cruzi. Foi útil para regiões altamente endêmicas em DC no passado, sendo ainda hoje usada em algumas áreas da Bolívia. Outra possibilidade de controle seria o emprego de filtros celulares para leucócitos, capazes de reter o parasito, lamentavelmente muito caros. Considerar que o melhor uso e indicação da hemoterapia (por exemplo, evitando-se as transfusões braço a braço e de sangue total) é a ablação do doador remunerado são elementos fundamentais para o controle definitivo da DC transfusional417.

11.3.3. Controle da transmissão congênita

A prevenção primária não é possível, pois não está indicado o tratamento específico de gestantes com os fármacos hoje disponíveis, assim como não existem marcadores de prognóstico de transmissão. Não é prescrito o abortamento terapêutico em gestante chagásica, salvo em casos gravíssimos de cardiopatia. Indica-se por consenso a detecção e o tratamento específico o mais precocemente possível para a criança infectada, que normalmente se cura e tolera bem a medicação81,382. Como o recém-nascido é portador de anticorpos (classe IgG) passivamente transferidos da mãe até os 5-6 meses de vida, a mera sorologia precoce positiva não indicará infecção até esta idade. Nos filhos de chagásicas, é mais prático realizar-se sorologia convencional aos 7 meses de idade, iniciando-se prontamente o tratamento específico naqueles sororreagentes81. Em recém-nascidos sob forte suspeita de doença congênita, insistir nos exames parasitológicos durante alguns dias, pelo menos três vezes ao dia, para aumentar a sensibilidade382.

11.3.4. Prevenção em acidentes de laboratório

Todo profissional que vá lidar com o T. cruzi deverá submeter-se a sorologia convencional, no início de suas atividades. Se negativa, deverá repeti-la anualmente enquanto durar a atividade, o que permitirá detecção de infecção inaparente e possibilitará tratamento específico. É importante promover conscientização e capacitação técnica, ambiente adequado ao manuseio do parasito e uso obrigatório de equipamentos de proteção individual (óculos, máscara, luvas, sapatos fechados etc). Uma vez ocorrido o acidente, realizar desinfecção local imediata (com álcool iodado ou colírio de nitrato de prata, em caso de contaminação ocular). Colher sorologia convencional imediatamente. Iniciar de imediato o tratamento específico com as doses usuais dos medicamentos disponíveis (nifurtimox ou benznidazol), por 10 dias. Decorridos 30 dias, repetir a sorologia, realizando tratamento integral (60 dias) caso ocorra a soroconversão para positividade 81.

11.3.5. Prevenção da transmissão oral

Pela ocorrência imprevisível e esparsa, pouco há que se fazer em termos de prevenção primária. Afastamento de casas e anexos do ambiente silvestre, boa higiene no manejo e preparo de alimentos, não ingestão de carnes cruas ou mal cozidas de caça são medidas genéricas de algum valor. Como na transmissão congênita, a medida mais prática é a detecção precoce do caso e seu tratamento específico, realizando-se de imediato o estudo epidemiológico da ocorrência para eventual descoberta de outros casos. A transmissão por leite materno é de extrema raridade, não devendo ser proscrito o aleitamento pela mãe, exceção para DC materna aguda e sangramentos mamilares21. A DC aguda é de notificação compulsória, cabendo ao sistema local/regional de saúde a sua confirmação e estudo epidemiológico, o que possibilita a adoção de medidas pertinentes, tais como a busca ativa da doença em pessoas expostas aos fatores comuns, eventual controle triatomínico etc). Na Amazônia brasileira, treinam-se microscopistas de malária para detecção do T. cruzi em lâminas de indivíduos febris21.

11.4. Apêndice

11.4.1. Diagnóstico sorológico da infecção crônica pelo Trypanosoma cruzi

Este item complementa os tópicos anteriores e foi bem estabelecido em documentos recentes81,88,382,392,414,415,417.

Basicamente, utilizam-se duas técnicas sorológicas entre aquelas disponíveis e referendadas pela OMS, como imunofluorescência indireta, ELISA (Enzyme-linked immunobsorvent assay) e hemaglutinação indireta. Resultados iguais indicarão soropositivo ou negativo. Resultado discordante pressupõe repetição dos testes. Permanecendo a discrepância, realizar nova prova com técnica de PCR ou western blot (Figura 6)81.


11.4.2. Notas práticas

a. Para diagnóstico post mortem, a sorologia é viável em líquido pericárdico;

b. Para inquérito extensivo em condições de campo, é muito prática a coleta de sangue por punção digital em papel de filtro (Whatmann Nº 4), preenchendo-se uma área com dois centímetros de diâmetro. Os soropositivos devem ser confirmados por coleta venosa, conforme o esquema abaixo;

c. Sorologia inicial negativa seguida de outra positiva após 30 dias indica DC aguda;

d. Testes não convencionais14,18 são técnicas modernas que empregam antígenos recombinantes, peptídeos sintéticos e misturas capazes de identificar multiepitopos, de alta especificidade. Exemplos: o "PaGIA" (aglutinação de partículas de polímeros sensibilizados), o "INNO-LIA" (tiras de nitrocelulose recobertas com antígenos recombinantes), o "Chembio" (teste rápido por imunocromatografia);

e. Um teste por PCR pode ser negativo em indivíduos infectados, mormente na fase crônica, devendo ser repetido em caso de dúvida ou suspeita clínica;

f. Casos muitíssimo raros de negativação persistente de testes sorológicos e parasitológicos em indivíduos seguramente infectados e não submetidos a tratamento específico significam cura espontânea da infecção, conforme algumas observações5.

12. Breve retrospectiva e perspectivas

Muito se fez decorrido um século da descoberta de Carlos Chagas. Mas também muito há por fazer, certamente ainda por várias décadas. A sabedoria popular consagrou a noção, imanente à vida humana, de que "há males que vêm para bem". Isto se aplica à globalização da DC e à substancial diversificação recente de sua epidemiologia em países tradicionalmente endêmicos. Esse contexto contribui para despertar muito mais interesse sobre os problemas sociais e médicos pertinentes à DC, por parte de órgãos responsáveis pela saúde pública e entidades afins, nacionais e internacionais, instituições de pesquisa, e até grupos industriais. Em suma, assiste-se presentemente a notável ativação de muitos esforços para controlar a epidemiologia da doença, conhecer melhor a biologia do T. cruzi e sua interação com o ser humano, bem como a patogenia e fisiopatologia das complicacões na fase crônica, e tratar mais adequada e efetivamente as manifestações cardíacas e digestivas tardias. Desse cenário promissor, emergem vários aspectos a merecer especial atenção em anos vindouros:

Embora a transmissão vetorial e transfusional da doença tenha sido em grande parte controlada em diversos países, persiste a necessidade premente de vigilância sustentada das medidas que levaram a essa conquista. Ademais, preocupa a situação cambiante ecologicamente de vastas regiões, como a Amazônia, onde novas facetas epidemiológicas da doença têm grande potencial de se desenvolver e constituir mais complexos e difíceis desafios.

Torna-se também necessário adotar iniciativas que possibilitem adequado manejo das condições sociais e médicas resultantes da migração de indivíduos infectados para países onde a doença não existia. Aguarda-se a padronização de métodos mais confiáveis de detecção da infecção pelo T. cruzi, não somente para efeito diagnóstico, porém, mais crucialmente, como critério de cura.

O tratamento etiológico de milhões de pacientes cursando com a fase crônica da doença representa também incógnita a ser desvendada. Registra-se atualmente renovado interesse nessa área, incluindo a perspectiva de estudos que focalizem associação de medicamentos, como benznidazol e posaconazol, pelo potencial de agirem sinergicamente contra os parasitos circulantes (benznidazol, mais ativo) e tissulares (pozaconazol, talvez mais eficiente). Aguarda-se comprovação cabal de real eficácia do tratamento etiológico, no sentido de impactar favoravelmente sobre a história natural da doença em sua fase crônica, e o desenvolvimento de novos agentes tripanossomicidas, dotados de maior efetividade e menor gama de efeitos colaterais. São divisados já inúmeros alvos preferenciais para ataque farmacológico ao T. cruzi, com base em conhecimento mais aprofundado de sua interação com as células do hospedeiro, e de seu genoma recentemente decifrado.

Finalmente, aos cardiologistas incumbe, precipuamente, aperfeiçoar o manejo clínico de seus pacientes chagásicos, administrando-lhes judiciosamente medicamentos e intervenções que respeitem o quanto for possível a fisiopatologia peculiar da doença, não recorrendo a medidas sem comprovação definida de benefício, mas também não desperdiçando oportunidades terapêuticas plausíveis.

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    • Publicação nesta coleção
      14 Fev 2012
    • Data do Fascículo
      2011
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