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Cintilografia com MIBI-dipiridamol negativa em doença coronariana grave no pré-operatório de correção de aneurisma de aorta abdominal

Resumos

Descreve-se o caso de um paciente de 73 anos, candidato à correção de aneurisma de aorta abdominal, sem anormalidades na primeira avaliação cardiológica. A cirurgia foi postergada para tratamento de epididimite. Duas semanas após, o paciente retornou ao hospital com dor torácica e a angiografia mostrou obstruções de duas coronárias, tratadas com sucesso por angioplastia transluminal percutânea com implante de stent. Após 45 dias, o paciente foi submetido à cirurgia para correção do aneurisma de aorta abdominal sob anestesia peridural e geral, evoluindo sem complicações.


We report the case of a 73-year-old male patient who was a candidate for correction of an abdominal aortic aneurysm without abnormalities in his first cardiological evaluation. The surgery was postponed because of the need for treatment of epididymitis. Two weeks later, the patient returned to the hospital with thoracic pain, when the angiography showed obstructions in 2 coronary arteries, which were successfully treated with percutaneous transluminal angioplasty and stent implantation. After 45 days, the patient underwent surgery for correction of the abdominal aortic aneurysm under peridural and general anesthesia. The patient evolved without complications.


RELATO DE CASO

Cintilografia com MIBI-dipiridamol negativa em doença coronariana grave no pré-operatório de correção de aneurisma de aorta abdominal

Helio Halpern; Erika Miyoshi; Antonio Eduardo P. Pesaro; Carlos V. Serrano Jr.; Nelson Wolosker

São Paulo, SP

Hospital Israelita Albert Einstein e Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da FMUSP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Helio Halpern Rua Dr. Homem de Melo, 379/152 Cep 05007-001 - São Paulo - SP Email: hhalpern@einstein.br

RESUMO

Descreve-se o caso de um paciente de 73 anos, candidato à correção de aneurisma de aorta abdominal, sem anormalidades na primeira avaliação cardiológica. A cirurgia foi postergada para tratamento de epididimite. Duas semanas após, o paciente retornou ao hospital com dor torácica e a angiografia mostrou obstruções de duas coronárias, tratadas com sucesso por angioplastia transluminal percutânea com implante de stent. Após 45 dias, o paciente foi submetido à cirurgia para correção do aneurisma de aorta abdominal sob anestesia peridural e geral, evoluindo sem complicações.

Em cirurgias não-cardíacas de alto risco como cirurgias vasculares que implicam maior demanda cardíaca, os pacientes com insuficiência coronariana (ICO) significativa devem ser identificados adequadamente e submetidos a otimização farmacológica ou revascularização cirúrgica. Estudos tentam definir estratégias para identificar os pacientes de risco para eventos cardíacos no perioperatório, mas sabe-se que, atualmente, nenhum teste é capaz de mimetizar todo estresse perioperatório.

Relato do Caso

Homem de 73 anos, masculino, ex-tabagista, parou há sete anos, candidato à correção de aneurisma de aorta abdominal infra-renal de 5cm, descoberto durante ultra-sonografia abdominal de rotina. Negava antecedentes mórbidos exceto por ressecção transuretral de próstata realizada há dois anos. O paciente não tinha qualquer sintoma cardiológico. A avaliação cardiológica, incluindo ecocardiograma e cintilografia MIBI-dipiridamol, não revelou qualquer anormalidade. A cirurgia foi postergada devido à epididimite esquerda diagnosticada no dia da cirurgia, sendo o paciente tratado com antibióticos. Duas semanas depois, o paciente retornou ao hospital queixando-se de dor torácica aos pequenos esforços. O eletrocardiograma revelou um bloqueio atrioventricular de 1º grau e alteração da repolarização ventricular na parede lateral. A coronariografia revelou 80% de obstrução da artéria coronária direita e 70% da artéria descendente anterior. Ambas as lesões foram tratadas com sucesso com angioplastia e implante de stent. O paciente recebeu terapia antiplaquetária por 30 dias. Quarenta e cinco dias depois da angioplastia, com outra cintilografia MIBI-dipiridamol normal, e sem qualquer sintoma, o aneurisma de aorta abdominal foi corrigido através de acesso retroperitoneal sob anestesia peridural lombar com cateter associada à anestesia geral. O tempo de pinçamento da aorta infra-renal foi de 49min e o tempo cirúrgico de 2h e 25min. O paciente recebeu 3500 ml de cristalóides, 500 ml de hidroxietilamido, 150 ml de albumina 20% e 445 ml de sangue recuperado de auto-transfusão intra-operatória. A diurese no intra-operatório foi de 1000 ml, sendo 800 no período após a reperfusão. A dosagem de hemoglobina inicial era de 14,3g/dl e, após a cirurgia, de 11,4g/dl. O paciente foi extubado ao final da cirurgia, permanecendo na UTI por 20h, e o pós-operatório transcorreu sem complicações e o paciente recebeu alta hospitalar após quatro dias da cirurgia. Dois anos após a cirurgia, encontra-se em excelente condição, sem qualquer sintoma cardiovascular.

Discussão

A incidência de insuficiência coronariana é substancialmente maior em pacientes submetidos a cirurgia vascular do que na população cirúrgica geral 1,2.

A cintilografia miocárdica, utilizando MIBI e dipiridamol, tem sensibilidade de 96% quando se consideram estenoses > 70% e especificidade para detectar doença da coronária descendente anterior de 97% e 89% para coronária direita3. As limitações da cintilografia encontram-se em pacientes com hipertensão e hipertrofia ventricular e bloqueio de ramo esquerdo. O ecocardiograma com estresse é preferido para esse subgrupo4. Além disso, outros fatores, como ingesta de cafeína antes do exame (preparo inadequado), presença de lesões triarteriais e uso de betabloqueadores podem reduzir a sensibilidade da cintilografia miocárdica. Pacientes que serão submetidos à cintilografia com fármacos, como adenosina ou dipiridamol, devem manter abstinência de cafeína e medicamentos derivados de xantinas, pelo menos 24h antes do exame. A cafeína e as xantinas bloqueiam receptores de adenosina, reduzindo seu efeito de vasodilatação e elevação da freqüência cardíaca. Essas alterações reduzem a sensibilidade do teste e elevam a chance de resultados falso-negativos5,6. Pacientes com lesões triarteriais ou de tronco têm pior prognóstico. Apesar disso, quando há lesões triarteriais, a cintilografia pode detectar um padrão "balanceado" de perfusão, o que reduz a sensibilidade do método. Como a isquemia ocorre de maneira semelhante nos diversos territórios, há dificuladade em comparar as imagens de perfusão diminuída e normal, o que pode resultar em teste falso-negativo. Nesses casos, a associação da análise da perfusão e função ventricular pode elevar a sensibilidade da cintilografia, identificando regiões com disfunção segmentar em pacientes com isquemia balanceada7. Finalmente, os betabloqueadores, apesar de úteis no período pré-operatório, podem reduzir a detecção de áreas isquêmicas na cintilografia miocárdica. Dois estudos com betabloqueadores, introduzidos no período pré-operatório de cirurgia não cardíaca em pacientes com insuficiência coronariana ou apenas com múltiplos fatores de risco cardiovascular, evidenciaram benefício com redução de mortalidade e infarto do miocárdio no pós-operatório e até dois anos após a cirurgia8,9. No entanto, com o uso de betabloqueadores, pode haver redução da sensibilidade da cintilografia com dipiridamol, utilizada no pré-operatório para estratificação de risco10.

A Revisão das Condutas para Avaliação Cardiovascular Perioperatória de Cirurgia não Cardíaca da Associação Americana do Coração e Colégio Americano de Cardiologistas sugere que a cirurgia não cardíaca geralmente é segura em pacientes sem sinais ou sintomas maiores ou intermediários preditivos de risco cirúrgico e que apresentam moderada ou excelente capacidade funcional11. Os resultados de testes não invasivos podem ser usados para determinar a necessidade de exames adicionais pré-operatórios e o tratamento. Para pacientes com baixo risco e boa capacidade funcional (acima de 4 mets), os testes para estratificação para risco cardíaco não são necessários.

Segundo as diretrizes para avaliação pré-operatória do Colégio Americano de Médicos, o paciente em questão seria classificado inicialmente, como de baixo risco. Entre as variáveis de alto risco, ele possui apenas a idade > 70 anos e, portanto poderia até ser submetido ao procedimento sem estratificação com cintilografia12.

Uma vez que a doença coronariana tenha sido identificada ou diante de um infarto agudo do miocárdio, a angioplastia transluminal percutânea é considerada menos invasiva, menos dispendiosa e requer menor tempo de recuperação e permanência hospitalar. Os avanços tecnológicos dos stents e dos fármacos antiplaquetários reduziram a taxa de oclusão do stent em 30 dias em menos de 0,5%13.

Em pacientes com infarto em menos de 6 meses e tratados com angioplastia transluminal percutânea e stent, a incidência de infarto pós-operatório foi de 0,5%, comparável a de pacientes sem coronariopatia14. Pacientes tratados com angioplastia transluminal percutânea e stent há mais de 90 dias antes de cirurgias não-cardíacas tiveram metade dos eventos adversos cardíacos em relação aos não revascularizados, os quais apresentam o dobro de risco em relação a pacientes saudáveis15.

Entretanto, outro estudo que examinou 40 pacientes revascularizados por angioplastia transluminal percutânea e stent com menos de 6 semanas antes da cirurgia não-cardíaca revela uma alta incidência de complicações perioperatórias catastróficas nos pacientes submetidos a cirurgias não-cardíacas eletivas ou semi-eletivas16. Um relato de caso recente descreveu um paciente que evoluiu para falência cardíaca após nefrectomia 32 dias após implante de stent, necessitando de angioplastia transluminal percutânea de urgência para desobstruir o stent trombosado17.

Em resumo, a falha na identificação da doença coronariana mostra que exames de apoio negativos ou normais não excluem a estreita associação entre doença vascular e insuficiência coronariana, devendo-se considerar todo portador de arteriopatia periférica como de risco para desenvolver eventos adversos cardíacos. Ainda, o tempo hábil seguro entre a realização de angioplastia transluminal percutânea com implante de stent e a cirurgia de grande porte não cardíaca aparentemente é maior que 90 dias.

Recebido em 19/09/2003

Aceito em 10/03/2004

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  • Endereço para correspondência

    Helio Halpern
    Rua Dr. Homem de Melo, 379/152
    Cep 05007-001 - São Paulo - SP
    Email:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Mar 2005
    • Data do Fascículo
      Fev 2005

    Histórico

    • Aceito
      10 Mar 2004
    • Recebido
      19 Set 2003
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