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Cardioversão elétrica e lesão miocárdica: avaliação pelos novos marcadores de injúria cardíaca

Resumos

OBJETIVO: Avaliar, através da evolução dos novos marcadores bioquímicos de injúria cardíaca, se a cardioversão elétrica (CVE) causa lesão miocárdica. MÉTODOS: Foram avaliados 76 pacientes (P) submetidos a CVE eletiva de fibrilação atrial ou flutter atrial. Medidas de creatinafosfoquinase (CPK), CKMB-atividade e dosagem de CKMB-massa (M), mioglobina e troponina I cardíaca (cTnI) foram determinadas antes e após 6 e 24 horas da CVE. RESULTADOS: A CVE resultou um sucesso em 58 P (76,3%). A carga cumulativa (CC) foi de até 350 joules (J) em 36 P, de 500 a 650 J em 20 P e de 900 a 960 J em 20 P, com energia média aplicada de 493 J (± 309). A cTnI permaneceu dentro da normalidade nos 76 P. Com o aumento da CC, ocorreu elevação de CPK (> valor de p = 0,007), CKMB-atividade (> valor de p = 0,002), CKMB-M (> valor de p = 0,03) e mioglobina (> valor de p = 0,015). Correlação positiva foi observada entre a CC e picos de CPK (r = 0,660; p < 0,001), CKMB-atividade (r = 0,429; p < 0,0001), CKMB-M (r = 0,265; p = 0,02) e mioglobina (r = 0,684; p < 0,0001). Correlação também positiva ocorreu entre o número de choques e picos de CPK (r = 0,770; p < 0,001), CKMB-atividade (r = 0,642; p < 0,0001), CKMB-M (r = 0,430; p < 0,0001) e mioglobina (r = 0,745; p < 0,0001). CONCLUSÃO: A CVE não causa lesão miocárdica detectável pela dosagem da cTnI. Elevações de CPK, CKMB-atividade, CKMB-M e mioglobina são decorrentes de lesão do músculo esquelético, estando correlacionadas positivamente com a CC aplicada ou com o número de choques.

Cardioversão; injúria cardíaca; troponina I cardíaca


OBJECTIVE: Evaluate, based on the evolution of new biochemical markers of cardiac damage, if electrical cardioversion (ECV) causes myocardial injury. METHODS: Seventy-six patients (P) submitted to elective ECV for atrial fibrillation or atrial flutter were evaluated. Creatine phosphokinase (CPK), CK-MB activity, CK-MB mass, myoglobin and cardiac troponin I (cTnI) were measured before, and 6 and 24 hours after ECV. RESULTS: ECV was successful in 58 P (76.3%). Cumulative energy (CE) was up to 350 joules (J) in 36 P, from 500 to 650 J in 20 P and from 900 to 960 J in 20 P; the mean energy delivered being 493 J (± 309). The levels of cTnI remained within normal limits in all 76 P. The increase of cumulative energy led to an elevation of CPK levels (> p value = 0.007), CK-MB activity (> p value = 0.002), CK-MB mass (> p value = 0.03), and myoglobin (> p value = 0.015). A positive correlation between the cumulative energy and CPK peaks was observed (r = 0.660; p < 0.001), CK-MB activity (r = 0.429; p < 0.0001), CK-MB mass (r = 0.265; p = 0.02), and myoglobin (r = 0.684; p < 0.0001), as well as between the number of shocks and the CPK peaks (r = 0.770; p < 0.001), CK-MB activity (r = 0.642; p < 0.0001), CK-MB mass (r = 0.430; p < 0,0001), and myoglobin (r = 0.745; p < 0.0001). CONCLUSION: ECV does not cause myocardial injury detectable by cTnI measurement. Elevations of CPK, CK-MB activity, CK-MB mass and myoglobin result from skeletal muscle injury and are positively correlated with the CE delivered or with the number of shocks.

Cardioversion; myocardial injury; cardiac troponin I.


ARTIGO ORIGINAL

Cardioversão elétrica e lesão miocárdica: avaliação pelos novos marcadores de injúria cardíaca

Elizabete Silva dos Santos; Marcos Paulo Pereira; Luiz Minuzzo; Dalmo A. R. Moreira; Rui Ramos; Álvaro Avezum; Ari Timerman; Leopoldo S. Piegas

Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia - São Paulo, SP

Correspondência Correspondência Elizabete Silva dos Santos Rua das Rosas, 126/32 04048-000 – São Paulo, SP E-mail: elizabetessantos@cardiol.br

RESUMO

OBJETIVO: Avaliar, através da evolução dos novos marcadores bioquímicos de injúria cardíaca, se a cardioversão elétrica (CVE) causa lesão miocárdica.

MÉTODOS: Foram avaliados 76 pacientes (P) submetidos a CVE eletiva de fibrilação atrial ou flutter atrial. Medidas de creatinafosfoquinase (CPK), CKMB-atividade e dosagem de CKMB-massa (M), mioglobina e troponina I cardíaca (cTnI) foram determinadas antes e após 6 e 24 horas da CVE.

RESULTADOS: A CVE resultou um sucesso em 58 P (76,3%). A carga cumulativa (CC) foi de até 350 joules (J) em 36 P, de 500 a 650 J em 20 P e de 900 a 960 J em 20 P, com energia média aplicada de 493 J (± 309). A cTnI permaneceu dentro da normalidade nos 76 P. Com o aumento da CC, ocorreu elevação de CPK (> valor de p = 0,007), CKMB-atividade (> valor de p = 0,002), CKMB-M (> valor de p = 0,03) e mioglobina (> valor de p = 0,015). Correlação positiva foi observada entre a CC e picos de CPK (r = 0,660; p < 0,001), CKMB-atividade (r = 0,429; p < 0,0001), CKMB-M (r = 0,265; p = 0,02) e mioglobina (r = 0,684; p < 0,0001). Correlação também positiva ocorreu entre o número de choques e picos de CPK (r = 0,770; p < 0,001), CKMB-atividade (r = 0,642; p < 0,0001), CKMB-M (r = 0,430; p < 0,0001) e mioglobina (r = 0,745; p < 0,0001).

CONCLUSÃO: A CVE não causa lesão miocárdica detectável pela dosagem da cTnI. Elevações de CPK, CKMB-atividade, CKMB-M e mioglobina são decorrentes de lesão do músculo esquelético, estando correlacionadas positivamente com a CC aplicada ou com o número de choques.

Palavras-chave: Cardioversão, injúria cardíaca, troponina I cardíaca.

Apesar de, há mais de trinta anos, a cardioversão elétrica (CVE) ser indicada para o tratamento de taquiarritmias, ainda permanecem controvérsias se essa técnica pode causar lesão miocárdica1. Evidências a favor de injúria cardíaca causada por esse procedimento baseiam-se em pequenos estudos que mostram elevações moderadas dos marcadores enzimáticos, como a creatinafosfoquinase (CPK) e sua isoenzima CKMB2. Estudos histológicos posteriores confirmaram que essas elevações poderiam ser secundárias à lesão miocárdica3-6. As lesões corresponderam a necrose localizada e foram observadas apenas quando cargas de alta energia foram utilizadas após choques repetidos7-10; um choque de alta energia produzia mais lesões do que vários choques com mais baixa energia7, 8.

Recentemente foram desenvolvidos novos marcadores de lesão miocárdica, com maior cardioespecificidade, como a troponina I e a T. As troponinas são proteínas que regulam a interação entre actina e miosina nos músculos estriados, sendo baixa sua distribuição no citoplasma. A troponina I é encontrada em 6% a 8%, e a troponina T em 2,8% a 4,1% do seu total no citoplasma. Possuem cadeias de aminoácidos com seqüência e peso molecular diferentes, conforme sua localização muscular. A troponina I cardíaca (cTnI) apresenta seqüência exclusiva de aminoácidos, diferente da seqüência de aminoácidos da troponina I do músculo esquelético, não sendo encontrada em nenhum outro tecido humano além do coração. Portanto, não há liberação da cTnI quando ocorre lesão do músculo esquelético. Sua dosagem permite a discriminação da origem esquelética ou miocárdica das lesões musculares11, bem como a detecção de lesão miocárdica mínima que se observa em determinadas situações clínicas ou experimentais12-14. A morte celular e a destruição do aparato contrátil induzem à liberação continuada por sete a dez dias15.

Na segunda metade da década de 1990, estudos em cardioversão elétrica, analisando marcadores de injúria cardíaca com maior cardioespecificidade, foram inicialmente publicados16-18. Alguns desses estudos descrevem ligeiras elevações de troponina, tanto da cTnI17 como da troponina T18 depois de repetidas cardioversões em pacientes submetidos a estudo eletrofisiológico.

O objetivo deste estudo foi avaliar se a CVE externa eletiva causa lesão miocárdica, baseada na evolução dos novos marcadores bioquímicos de injúria cardíaca.

MÉTODOS

Pacientes consecutivos encaminhados para CVE eletiva de fibrilação atrial ou flutter atrial, de julho de 2001 a agosto de 2003, foram considerados elegíveis para inclusão no estudo. Foram excluídos pacientes com síndrome coronariana aguda ou submetidos a revascularização miocárdica (cirúrgica ou percutânea) no mês precedente, história de lesão muscular nos últimos trinta dias, ou portadores de doença muscular. Setenta e seis pacientes foram incluídos no estudo e, após obtenção de consentimento, foram documentadas as características clínicas basais, como antecedentes pessoais, medicações em uso, sinais vitais, peso e altura (tab. 1). Todos os pacientes estavam adequadamente anticoagulados (relação normatizada internacional [RNI] acima de 2), sendo mantidos anticoagulados por pelo menos quarenta dias após o procedimento.

O Comitê de Ética em Pesquisa da Instituição aprovou o protocolo do estudo.

Os pacientes foram informados sobre a técnica do procedimento e submetidos a anestesia geral. O agente anestésico utilizado foi o tionembutal, na dose de 3 a 5 mg por quilo de peso, via endovenosa. Eletrocardiograma de doze derivações foi realizado imediatamente antes e após a cardioversão.

As cardioversões foram realizadas com cardioversor de corrente contínua monofásico, pás retangulares com eixo maior de 8 cm, cobertas com gel condutor. As pás foram localizadas, uma no segundo espaço intercostal direito e a outra na linha hemiclavicular esquerda, no sexto espaço intercostal. Foram aplicados choques sincronizados com o pico da onda R, com energia que variou de 50 a 360 joules (J), sendo a carga inicial para o flutter atrial de 50 J, seguida de 100, 200, 300 ou uma segunda carga de 300 J, e para a fibrilação atrial a carga inicial de 100 J, seguida de 200, 300 ou 360 J. O intervalo entre os choques foi o menor possível, tendo-se a preocupação para manter-se um peso de aproximadamente 10 quilos sobre as pás, bem como de não retirá-las rapidamente, após cada choque aplicado, a fim de não dispersar energia. A população estudada foi dividida em três grupos de acordo com a carga cumulativa (CC) aplicada: Grupo A = CC de até 350 J (36 pacientes); Grupo B = CC de 500 a 650 J (20 pacientes); Grupo C = CC de 900 a 960 J (20 pacientes). Foram comparados os resultados entre os três grupos, assim como a evolução de cada grupo no tempo.

Os pacientes foram mantidos em observação na sala de emergências por 6 horas após o procedimento.

A punção venosa foi realizada em um dos membros superiores para coleta de sangue e análise do nível sérico de potássio e do RNI. Com níveis adequados de potássio e RNI para a cardioversão, decidiu-se pela realização do procedimento. Os pacientes eram então submetidos à coleta de sangue pré e com 6 e 24 horas após a cardioversão, para medidas de CPK, CKMB-atividade, cTnI, CKMB-massa (M) e mioglobina.

As medidas de CPK foram determinadas pelo método cinético enzimático automatizado no equipamento Hitachi 912® da Roche Diagnostics e a CKMB-atividade pelo método cinético imunoenzimático no mesmo equipamento e da mesma empresa. O valor de referência da CPK é de até 80 U/L e para CKMB-atividade foram considerados valores até 10 U/L. As dosagens de CKMB-M, mioglobina e cTnI foram realizadas pelo método de quimioluminescência automatizada no equipamento IMMULITE® da DPC MedLab. Os valores de referência são de até 70 ng/ml para mioglobina, até 4,5 ng/ml para CKMB-M e até 1,0 ng/ml para cTnI. O coeficiente de variação intra-ensaio para as medidas de CPK e CKMB-atividade é inferior a 2,5%, e para as dosagens pela metodologia de quimioluminescência os valores não excedem 6%.

Médias e desvios-padrão foram calculados para descrever variáveis contínuas. Análise de Variância com medidas repetidas, seguida de comparações múltiplas das médias, foi realizada para determinar a evolução de cada marcador no tempo, nos diferentes grupos de carga cumulativa (SAS Software). A correlação de Pearson avaliou a relação entre carga cumulativa e cada marcador; e a correlação de Spearman entre número de choques e cada marcador.

RESULTADOS

Dos 76 pacientes estudados, 58 apresentavam fibrilação atrial (76,3%) e 18 flutter atrial (23,7%). Cinqüenta e um pacientes (67,1%) eram do sexo masculino, com idade média de 58 anos (±11). A doença de base era: miocardiopatia em 21 pacientes (27,6%), valvopatia em 28 (36,6%) e insuficiência coronariana em 8 (10,5%) (tab. 1). A duração da arritmia foi maior que seis meses em 57 pacientes (88,1%).

Um máximo de cinco choques foi preconizado para cada paciente, com média de 2,68 choques (±1,1). A carga média aplicada foi de 493 J (±309). Cinqüenta e oito pacientes (76,3%) foram cardiovertidos com sucesso, não havendo complicações relacionadas ao procedimento ou alterações (dinâmicas) do segmento ST ou da onda T ao eletrocardiograma pós CVE. Todos receberam alta hospitalar 6 horas após a CVE com retorno em 24 horas para coleta de sangue.

Não houve diferença significativa nos níveis dos marcadores, antes da CVE, nos diferentes grupos de carga cumulativa. Houve, apenas, uma tendência para valores maiores de CPK, antes da CVE, no grupo C em comparação ao grupo A (p = 0,053) ou B (p = 0,05). O mesmo ocorreu com a mioglobina entre os grupos A e C (p = 0,058) (tab. 2).

As medidas dos marcadores nos três tempos analisados (antes, 6 e 24 horas) foram realizadas para: cTnI em 73 pacientes (96%), CPK em 69 (90,8%), CKMB-atividade em 72 (94,7%), CKMB-M e mioglobina em 70 (92,1%).

A troponina I cardíaca permaneceu indetectável (< 0,5 ng/ml) em 74 pacientes (97,4%) a qualquer tempo. Um paciente do Grupo B apresentou valor de 0,5 ng/ml e 0,52 ng/ml, respectivamente, com 6 e 24 horas após a cardioversão. Outro paciente do Grupo C apresentou valor de 0,64 ng/ml com 6 horas, porém, indetectável com 24 horas após o procedimento (fig. 1a)


Ocorreu aumento significativo de CPK na sexta hora após a cardioversão entre os grupos A e B (valor médio no grupo B > A; p < 0,001) e entre os grupos A e C (valor médio no grupo C > A; p < 0,0001). Aumento significativo também foi observado com 24 horas entre os três grupos de carga cumulativa (valor médio do grupo B > A [p < 0,0001]; valor médio do grupo C > A [p < 0,0001]; valor médio do grupo C > B [p = 0,007]). Analisando separadamente cada grupo de carga cumulativa no tempo, ocorreu aumento significativo de CPK com 6 e 24 horas nos grupos B (p < 0,0001) e C (p < 0,0001) (fig. 1b); o que não ocorreu para os pacientes do grupo A (menor valor de p = 0,2). Importante correlação foi observada entre o pico de CPK e a carga cumulativa aplicada (r = 0,660; p < 0,001) ou número de choques (r = 0,770; p < 0,001).


Aumento significativo de CKMB-atividade foi observado com 6 e 24 horas, entre os grupos A e B (valor médio de B > A; p = 0,002) e com 24 horas entre os grupos A e C (valor médio de C > A; p < 0,0001). Analisando-se a evolução de cada grupo de carga cumulativa no tempo, os pacientes dos grupos B e C apresentaram elevação bastante significativa, em relação aos níveis pré-cardioversão (p < 0,0001); o que não foi observado nos pacientes do grupo A (menor valor de p = 0,3) (fig. 1c). Correlação positiva foi encontrada entre o pico de CKMB-atividade e a carga cumulativa aplicada (r = 0,429; p < 0,0001) ou o número de choques (r = 0,642; p < 0,0001).


Dentre os marcadores que se alteraram após a cardioversão, a CKMB-M apresentou menor expressividade, havendo elevação entre os grupos A e B, tendo valor médio de B > A com 6 (p = 0,03) e 24 horas (p = 0,02) e entre os grupos A e C com 24 horas, com valor médio de C > A (p = 0,01). A evolução de cada grupo de carga cumulativa no tempo mostrou aumento significativo de CKMB-M para os pacientes do grupo B, entre os tempos pré-cardioversão e 6 ou 24 horas (p = 0,001), e entre 6 e 24 horas (p = 0,02). O mesmo aconteceu para os pacientes do grupo C (p < 0,0001) (fig 1d). Correlação menos expressiva, porém, ainda significativa, ocorreu entre o pico de CKMB-M e carga cumulativa aplicada (r = 0,265; p = 0,02) ou número de choques (r = 0,430; p < 0,0001).


De forma semelhante à CPK, a mioglobina apresentou valores de pico bastante elevados após a cardioversão. Na sexta hora observou-se aumento importante da mioglobina com o aumento da carga cumulativa (p < 0,0001), ocorrendo os valores de pico em todos os grupos, nesse tempo. Com 24 horas após o procedimento os níveis da mioglobina se mantiveram ainda elevados com o aumento da carga cumulativa (p < 0,001 entre os grupos A e B ou C [valor médio de B ou C > A]; p = 0,015 entre os grupos B e C [valor médio de C > B]) (fig.1e). Importante correlação ocorreu entre o pico de mioglobina e a carga cumulativa aplicada (r = 0,684; p < 0,0001) ou o número de choques (r = 0,745; p < 0,0001).


Analisando a correlação de todos os marcadores com a superfície corpórea, observou-se correlação desta com os picos de CPK (r = 0,261; p = 0,024) e de mioglobina (r = 0,300; p = 0,009).

DISCUSSÃO

Este estudo mostra que, baseado na dosagem da cTnI, um indicador altamente específico de injúria cardíaca, não há lesão miocárdica detectável após CVE, mesmo quando utilizadas cargas cumulativas elevadas.

Em estudos anteriores, elevações de CPK e CKMB foram encontradas após CVE externa, em uma grande proporção de pacientes, variando de 9,3% a 50%19. Em razão da falta de especificidade biológica desses marcadores, nenhuma conclusão poderia ser tomada quanto à origem da liberação dessas enzimas. Baseada em resultados de estudos experimentais, na década de 1970, a hipótese da origem cardíaca para a elevação desses marcadores recebeu apoio por mostrar necrose localizada após choques repetidos com alta energia. A aplicação de choques de corrente contínua pode causar dano reversível de estruturas subcelulares implicadas na fosforilação oxidativa e originar uma liberação de proteínas do músculo estriado como a CPK, CKMB e mioglobina20,21. Esses marcadores, porém, falham em revelar lesões miocárdicas mínimas, especialmente se ocorre, simultaneamente, lesão do músculo esquelético20, 22.

Em nosso estudo, 57 pacientes (75%) apresentaram níveis de CPK acima do limite da normalidade, em pelo menos um dos tempos após a cardioversão. Elevação da CKMB-atividade ocorreu em 39 desses pacientes (51,3%), não havendo valores anormais de CKMB-atividade em pacientes com níveis normais de CPK. A CKMB-M apresentou níveis acima do normal em menor proporção (32 pacientes [42,1%]). De forma semelhante à CPK, um grande número de pacientes evoluiu com valores de mioglobina acima do limite de referência.

A análise de variância com medidas repetidas e comparações múltiplas das médias demonstrou um aumento proporcional com o tempo em todos os marcadores, culminando com o pico de CPK na 24ª hora e de mioglobina na sexta hora. Correlação importante foi observada entre o pico de cada marcador e a carga cumulativa aplicada ou o número de choques, sendo essas correlações mais significativas para CPK e mioglobina.

Medidas de CPK e CKMB-atividade e dosagem de CKMB-M e mioglobina se elevam em grande proporção de pacientes submetidos a CVE; sendo atribuída à lesão do músculo esquelético da parede torácica a causa para liberação dessas enzimas. Esse fato já foi demonstrado em estudos histopatológicos e por meio de técnicas de imagem com captação de radionuclídeos20,23. A liberação desses marcadores está diretamente relacionada com a carga cumulativa aplicada ou com o número de choques.

Comparando-se a segurança e a eficácia entre a cardioversão elétrica com choques bifásicos ou monofásicos na fibrilação atrial, observou-se que o choque bifásico é mais eficiente24-26, podendo causar menos dano miocárdico e no músculo esquelético, possivelmente em decorrência de menor energia deliberada24.

A informação mais importante do nosso estudo é o fato de não ocorrer elevação da cTnI após a cardioversão elétrica eletiva com cardioversor monofásico, mesmo com choques de alta energia.

Apesar de ser utilizado neste estudo um marcador bioquímico com elevada especificidade para injúria cardíaca27, hipoteticamente poderíamos argumentar a possibilidade de que a lesão miocárdica, causada pela CVE, não seja detectável pela dosagem da cTnI. Essa hipótese receberia apoio se fosse comprovada necrose miocárdica, em CVE, por meio de técnicas complementares mais específicas, como a determinada por estudos histopatológicos ou pela ressonância nuclear magnética28, 29.

Agradecimentos

Às srtas. Valéria Troncoso Baltar e Camila Sarteschi do Laboratório de Epidemiologia e Estatística do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, responsáveis pelos cálculos e análise estatística. Ao Dr. Carlos Eduardo dos Santos Ferreira e à Biomédica Nívea Aparecida C. Salvarani pelas determinações laboratoriais.

Recebido em 07/12/04

Aceito em 04/05/05

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  • Correspondência

    Elizabete Silva dos Santos
    Rua das Rosas, 126/32
    04048-000 – São Paulo, SP
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Mar 2006
    • Data do Fascículo
      Mar 2006

    Histórico

    • Aceito
      04 Maio 2005
    • Recebido
      07 Dez 2004
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