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A Calcificação do Arco Aórtico na Radiografia de Tórax de Rotina está Fortemente e Independentemente Associada ao Padrão de Pressão Arterial

Palavras-chave
Aorta Torácica/fisiopatologia; Calcificação; Calcinose; Cardiomiopatias; Hipertensão; Função Ventricular Esquerda; Anti-Hipertensivos; Monitoração Ambulatorial da Pressão Arterial; Frequência Cardíaca

A hipertensão arterial é a doença crônica mais prevalente em todo o mundo, e estima-se que no Brasil, segundo a avaliação do estudo Vigitel de 2018, a população brasileira tem 24,7% de hipertensos.11 Brasil. Ministério da Saúde. Vigitel Brasil 2018. Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico. [Acesso em 2019 maio 13] Disponível em:https://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2019/julho/25/vigitel-brasil-2018.pdf
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É o mais importante fator de risco para todas as doenças cardiovasculares, sendo um dos principais responsáveis pelo acidente vascular cerebral, doença arterial coronariana, insuficiência cardíaca, insuficiência renal, e etc.

A pressão arterial não é simplesmente um fenômeno biológico caracterizado por dois números expressos em mmHg que refletem a pressão sistólica e diastólica. É um evento multiforme decorrente da ação hidrodinâmica de um líquido complexo que exerce força em uma parede vascular complacente, com propriedades elásticas regidas por múltiplas forças decorrentes das estruturas vasculares (células musculares, matriz extracelular, fibras elásticas e etc). Esta onda vetorial de sangue segue as leis da interação simpática e parassimpática, com variações para mais ou para menos dependendo das condições de cada paciente. Por isso a simples medida da pressão no consultório não reflete a realidade do verdadeiro cotidiano do paciente.

As diversas medidas durante as 24 horas têm um melhor significado na avaliação do contexto global, podendo discriminar o comportamento pressórico nas diversas fases do dia e principalmente durante o sono. A monitorização ambulatorial da pressão arterial (MAPA) tem melhor correlação com todos os eventos cardiovasculares quando comparada com a simples medida de consultório. A pressão apresenta grande variação durante as 24 horas, e durante o sono, nos indivíduos considerados normais, ocorre uma redução entre 10 e 20% dos valores diurnos. Em alguns estudos, a ausência deste descenso fisiológico do sono que chamamos de “non-dipper” encontra uma relação positiva com aumento de lesões em órgãos-alvo e da mortalidade.11 Brasil. Ministério da Saúde. Vigitel Brasil 2018. Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico. [Acesso em 2019 maio 13] Disponível em:https://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2019/julho/25/vigitel-brasil-2018.pdf
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,22 Boggia J, Li Y, Thijs L, Hansen TW, Kikuya M, Bjork Lund-Bodgard K,et al. International Database on Ambulatory Blood Pressure Monitoring in Relation to Cardiovascular Outcomes (IDACO) Investigators. Prognostic accuracy of day versus night ambulatory blood pressure: a cohort study. Lancet. 2007;370(9594):1219-29.

Este conceito de que os indivíduos hipertensos (e também os normotensos) que não apresentam queda pressórica fisiológica durante o sono (non-dipper), estão sujeitos a um pior prognóstico já é consenso há algum tempo, bem evidenciado em diversos estudos, entretanto os mecanismos intrínsecos que levam a um maior risco ainda não são totalmente conhecidos.33 O'Brien E, Sheridan J, O'Maleey K. Dippers and Non-Dippers. Lancet. 1988;2(8607):397.

4 Kario K, Matsuo T, Kobayashi H, Imiya M, Matsuo M, Shimada K. Nocturnal fall of blood pressure and silent cerebrovascular damage in elderly hypertension patients. Hypertension. 1996;27(1):130-5.
-55 Ohkubo T, Hozawa A, Yamaguchi J, Kikuya M, Michimata M, Matsubara M, et al. Prognostic significance of the nocturnal decline in blood pressure in individuals with and without high 24-h blood pressure: the Ohasama study. J Hypertens. 2002;20(11):2183-9. Na prática clínica os hipertensos com o padrão non-dipper geralmente apresentam alguma outra comorbidade, levando a suspeita de causas secundárias para a elevação pressórica e/ou apneia obstrutiva do sono.

A utilidade da MAPA é bastante ampla. A diretriz europeia de hipertensão sugere de forma bastante objetiva a realização das medidas pressóricas fora do consultório complementadas com as medidas no consultório para o diagnóstico da hipertensão.66 Williams B, Mancia G, Spiering W, Agabiti Rosei E, Azizi M, Burnier M, et al. 2018 ESC/ESH Guidelines for themanagement of arterial hypertension The Task Force for the management of arterial hypertension of the European Society of Cardiology (ESC) and the European Society of Hypertension (ESH). Eur Heart J. 2018;39(33):3021-104.

O fenômeno da hipertensão do avental branco e do efeito do avental branco são comuns, podendo levar a erros de conduta e condução do caso. No primeiro ocorre um diagnóstico errôneo de hipertensão e no efeito do avental branco podemos titular a medicação de forma incorreta, com prejuízos ao paciente. São situações onde a MAPA é fundamental para o diagnóstico.

Outro aspecto importante e não infrequente é a hipertensão mascarada, onde o paciente apresenta valores normais da pressão no consultório e fora deles os níveis estão elevados. Esta situação só pode ser avaliada de forma correta pelas medidas fora do consultório, e representa um perigo enorme, pois as lesões em órgãos-alvo são mais intensas e precoces.77 Mejia-Vilet JM, Bhatt U, Birmingham DJ, Arce C, Hebert CJ, Parikh SV, et al. Masked uncontrolled hypertension. J Hypertens. 2019;37(12):2501-2.

A avaliação da pressão fora do consultório, também pode ser aferida pela medida residencial da pressão arterial (MRPA) bem mais barata e acessível, e apresentando boa correlação com as medidas na MAPA. Entretanto não avalia durante o sono, período fundamental do ciclo biológico. Por isso a MAPA continua sendo o padrão ouro na medida fora do consultório.88 Stergiou GS, Tzamouranis D, Nasothimiou EG, Karpetta N, Protogerou A. Are there really differences between home and daytime ambulatory blood pressure? Comparison using a novel dual-mode ambulatory and home monitor. J Hum Hypertens. 2009;24(3):207-12.

A avaliação do sono, dos fenômenos que ocorrem antes de acordar e após o despertar são também muito importantes para uma estratificação mais fina do risco de eventos cardiovasculares. Kazuomi Kario foi um dos pioneiros em avaliar o efeito do despertar no risco cardiovascular, encontrando maiores lesões em órgãos-alvo naqueles com resposta pressórica mais intensa e sustentada.99 Kario K, Pickering TG, Umeda Y, Hoshida Y, Morinai M, Murata M, et al. Morning surge in blood pressure as a predictor of silent and clinical cerebrovascular disease in elderly hypertensives: a prospective study. Circulation. 2003;107(10):1401-6.

Nakanishi et al.,1010 Nakanishi K, Jin Z, Homma S, Elkind MSV, Rundek T, Schwartz JE, et al. Night-time systolic blood pressure and subclinical cerebrovascular disease: the Cardiovascular Abnormalities and Brain Lesions (CABL) study. Eur Heart J Cardiovasc Imaging. 2019;20(7):765-71. verificaram que os pacientes que apresentavam elevações da pressão durante o sono em vez da redução fisiológica, estavam mais sujeitos a eventos cardiovasculares. Estudando uma população de 828 pacientes com exames de imagem cerebral como a ressonância nuclear magnética, verificaram que a pressão sistólica elevada no sono estava associada com doença cerebral subclínica.1010 Nakanishi K, Jin Z, Homma S, Elkind MSV, Rundek T, Schwartz JE, et al. Night-time systolic blood pressure and subclinical cerebrovascular disease: the Cardiovascular Abnormalities and Brain Lesions (CABL) study. Eur Heart J Cardiovasc Imaging. 2019;20(7):765-71.

No estudo de Adar A et al.,1111 Adar A, Onalan O, Cakan F, et al. Aortic Arch Calcification on routine Chest Radiography is Strongly and Independently Associated with Non-Dipper Blood Pressure Pattern. Arq Bras Cardiol. 2020; 114(1):109-117. verificaram que os pacientes que apresentavam calcificação do arco aórtico, na simples radiografia de tórax realizada na rotina, tinham uma associação com o padrão non-dipper na MAPA.1111 Adar A, Onalan O, Cakan F, et al. Aortic Arch Calcification on routine Chest Radiography is Strongly and Independently Associated with Non-Dipper Blood Pressure Pattern. Arq Bras Cardiol. 2020; 114(1):109-117. Os autores partiram da detecção de uma lesão em órgão-alvo, a aterosclerose de aorta, em um exame usual de rotina, para procurar alterações da fisiologia da pressão arterial e eventualmente diagnosticar ou corrigir outros problemas.

Esta relação é importante, pois podemos rastrear toda calcificação de arco aórtico, a procura dos non-dippers e assim tipificar melhor o comportamento da hipertensão arterial.

A radiografia de tórax, utilizada em diversas situações clínicas, é um exame barato, prático e quando realizada por algum motivo pode também servir de rastreador de um indivíduo non-dipper, como foi demostrado neste estudo. Isto pode ser benéfico ao paciente, pois são frequentes as causas secundárias de hipertensão, inclusive a apneia obstrutiva do sono.

A justificativa fisiopatológica desta relação, da calcificação do ardo aórtico com a não redução da pressão no sono, ainda é desconhecida. Os autores evocam a relação desta calcificação com a calcificação da glândula pineal e a redução da melatonina, a qual tem um papel importante na regulação do sono.1212 Turgut AT, Sonmez I, Cakit BD, Kosar P, Kosar U. Pineal gland calcification, lumbar intervertebral disc degeneration and abdominal aorta calcifying atherosclerosis correlate in low back pain subjects: A cross-sectional observational CT study. Pathophysiol.2008;15(1):31-9. Além disso, ainda participa na regulação autonômica com uma maior acentuação do sistema parassimpático com efeitos vasodilatadores diretos, e com isso, reduzindo a pressão arterial.1313 Pechanova O, Paulis L, Simko F. Peripheral and central effects of melatonin on blood pressure regulation. Int J Mol Sci. 2014;15(10):17920-37.

O encontro de calcificação no arco aórtico permitindo o diagnóstico da presença de aterosclerose modifica de imediato o risco cardiovascular, onde os cuidados clínicos devem ser mais intensos e assim melhorar nossa prática clínica.

Apesar de não termos ainda ensaios clínicos robustos avaliando a cromoterapia, e a influência dos fármacos anti-hipertensivos no padrão non-dipper, é racional e intuitivo que isso deva ser feito, quando não se encontra uma causa objetiva para a não redução da pressão no sono. Nos hipertensos, a mudança no horário da medicação pode modificar o padrão de descenso noturno e possivelmente beneficiar o paciente.1414 Bowles NP, Thosar SS, Herzig MX, Shea SA. Chronotherapy for Hypertension. Curr Hypertens Rep. 2018;20(11):97-134.,1515 Hermida RC, Crespo JJ, Domínguez-Sardiña M,Moya A, Otero A, Rios MT, et al. Bedtime hypertension treatment improves cardiovascular risk reduction: the Hygia Chronotherapy Trial. Eur Heart J. 2019 Oct 22. pii: ehz754.

Um controle adequado da pressão nas primeiras horas da manhã significa o uso de fármacos com uma cobertura correta nas 24 horas, entretanto alguns não proporcionam esta ação. A mudança no horário de tomada de algum fármaco em especial para o período da tarde pode proporcionar um comportamento da pressão mais próximo do ritmo circadiano normal.

Ainda temos uma longa estrada na avaliação do comportamento da pressão arterial, porém alguma luz já está surgindo em desvendar os mecanismos implicados nesta rede complexa da etiologia da doença hipertensiva.

  • Minieditorial referente ao artigo: A Calcificação no Arco Aórtico na Radiografia de Tórax de Rotina está Forte e Independentemente Associada ao Padrão Não-Dipper de Pressão Arterial

References

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Fev 2020
  • Data do Fascículo
    Jan 2020
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