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Biologia de Sistemas Aplicada à Insuficiência Cardíaca com Fração de Ejeção Normal

Resumos

A insuficiência cardíaca com fração de ejeção normal (ICFEN) é, atualmente, o fenótipo clínico mais prevalente de insuficiência cardíaca e os tratamentos disponíveis não apresentam redução na mortalidade. Avanços na disciplina de ciências ômicas e em técnicas de elevado processamento de dados empregados na biologia molecular possibilitaram o desenvolvimento de uma abordagem integrativa da ICFEN baseada na biologia de sistemas.

O objetivo deste trabalho foi apresentar um modelo da ICFEN baseado na biologia de sistemas utilizando as abordagens bottom-up e top-down.

Realizou-se uma pesquisa na literatura de estudos publicados entre 1991-2013 referentes à fisiopatologia da ICFEN, seus biomarcadores e sobre a biologia de sistemas com o desenvolvimento de um modelo conceitual utilizando as abordagens bottom-up e top-down da biologia de sistemas.

O emprego da abordagem de biologia de sistemas para ICFEN, a qual é uma síndrome clínica complexa, pode ser útil para melhor entender sua fisiopatologia e descobrir novos alvos terapêuticos.

Insuficiência cardíaca; Volume sistólico; Disfunção ventricular esquerda; Idoso


Heart failure with normal ejection fraction (HFNEF) is currently the most prevalent clinical phenotype of heart failure. However, the treatments available have shown no reduction in mortality so far. Advances in the omics sciences and techniques of high data processing used in molecular biology have enabled the development of an integrating approach to HFNEF based on systems biology.

This study aimed at presenting a systems-biology-based HFNEF model using the bottom-up and top-down approaches.

A literature search was conducted for studies published between 1991 and 2013 regarding HFNEF pathophysiology, its biomarkers and systems biology. A conceptual model was developed using bottom-up and top-down approaches of systems biology.

The use of systems-biology approaches for HFNEF, a complex clinical syndrome, can be useful to better understand its pathophysiology and to discover new therapeutic targets.

Heart Failure; Stroke Volume; Ventricular Dysfunction, Left; Aged


Introdução

A insuficiência cardíaca (IC) é uma complexa síndrome clínica, sendo a via final de diferentes formas de agressão ao músculo cardíaco, manifesta-se sob dois fenótipos distintos: a insuficiência cardíaca com fração de ejeção reduzida (ICFER) e a insuficiência cardíaca com fração de ejeção normal (ICFEN).

A prevalência da ICFEN vem aumentando e irá se tornar o fenótipo mais prevalente de IC nesta década, acometendo principalmente indivíduos idosos do sexo feminino com múltiplas comorbidades11. Owan TE, Hodge DO, Herges RM, Jacobsen SJ, Roger VL, Redfield MM. Trends in prevalence and outcome of heart failure with preserved ejection fraction. N Engl J Med. 2006;355(3):251-9.. A sua fisiopatologia tem sido centrada, principalmente, na presença de alterações estruturais e funcionais diastólicas do ventrículo esquerdo (VE), ocasionando aumento das pressões de enchimento de VE e intolerância ao esforço22. Mesquita ET, Jorge AJ. Insuficiência cardíaca com fração de ejeção normal - novos critérios diagnósticos e avanços fisiopatológicos. Arq Bras Cardiol. 2009;93(2):180-7.

3. Roscani MG, Matsubara LS, Matsubara BB. Heart failure with normal ejection fraction. Arq Bras Cardiol. 2010;94(5):652-60.
- 44. Mesquita ET, Socrates J, Rassi S, Villacorta H, Mady C. Heart failure with preserved systolic function. Arq Bras Cardiol. 2004;82(5):494-500..

Os resultados de diferentes estudos clínicos randomizados, empregando tratamento medicamentoso direcionado à melhoria da função diastólica, mostraram resultados neutros no que se refere à sobrevida dos pacientes55. Yusuf S, Pfeffer MA, Swedberg K, Granger CB, Held P, McMurray JJ, et al. Effects of candesartan in patients with chronic heart failure and preserved left-ventricular ejection fraction: the CHARM-Preserved Trial. Lancet. 2003;362(9386):777-81.

6. Cleland JG, Tendera M, Adamus J, Freemantle N, Pçonski L, Taylor J, et al. The perindopril in elderly people with chronic heart failure (PEP-CHF) study. Eur Heart J. 2006;27(19):2338-45.
- 77. Massie BM, Carson PE, McMurray JJ, Komajda M, McKelvie R, Zile MR, et al. Irbesartan in patients with heart failure and preserved ejection fraction. N Engl J Med. 2008;359(23):2456-67.. Provavelmente, o modelo osleriano utilizado classicamente para descrever os mecanismos de doença e a construção do racional fisiopatológico que embasa o tratamento para ICFEN necessite ser substituído por uma nova abordagem, empregando biologia de sistemas, recentemente introduzida em outras áreas da medicina interna, como a infectologia e a oncologia. Esta nova abordagem tem levado ao desenvolvimento de novos medicamentos com sucesso em tais áreas e permitiram a construção da chamada medicina personalizada, que, por sua vez, proporcionou o avanço deste conceito. Isso se torna importante, sobretudo, pelo fato de a ICFEN ser uma síndrome cardiovascular em que se observam múltiplas anormalidades de vias fisiopatológicas, que estão presentes e interagem através de uma complexa rede88. Chan SY, White K, Loscalzo J. Deciphering the molecular basis or human cardiovascular disease through network biology. Curr Opin Cardiol. 2012;27(3):202-9. , 99. Chan SY, Loscalzo J. The emerging paradigm of network medicine in the study of human disease. Circ Res. 2012;111(3):359-74..

O objetivo desta revisão é apresentar os recentes conceitos da biologia de sistemas e o seu potencial emprego nas doenças cardiovasculares complexas, como a ICFEN, uma síndrome com multiplicidade de anormalidades fisiopatológicas e com limitada intervenção terapêutica no presente estado de conhecimento.

ICFEN e sua complexidade fisiopatológica

Do ponto de vista clínico e epidemiológico, comparado aos pacientes que apresentam ICFER, aqueles que apresentam o fenótipo ICFEN são em geral uma população mais idosa, obesa, do sexo feminino e com histórico de hipertensão arterial e fibrilação atrial11. Owan TE, Hodge DO, Herges RM, Jacobsen SJ, Roger VL, Redfield MM. Trends in prevalence and outcome of heart failure with preserved ejection fraction. N Engl J Med. 2006;355(3):251-9. , 1010. Bhatia RS, Tu JV, Lee DS, Austin PC, Fang J, Haouzi A, et al. Outcome of heart failure with preserved ejection fraction in a population-based study. N Engl J Med. 2006;355(3):260-9. , 1111. Redfield MM, Jacobsen SJ, Burnett Jr JC, Mahoney DW, Bailey KR, Rodeheffer RJ. Burden of systolic and diastolic ventricular dysfunction in the community: appreciating the scope of the heart failure epidemic. J Am Med Assoc. 2003;289(2):194-202..

Atualmente o diagnóstico de ICFEN é feito a partir da suspeita clínica -intolerância ao exercício - em associação com achados ecodopplercardiográficos, com o emprego do doppler tecidual na presença de fração de ejeção de VE ≥ 50% e volume diastólico final indexado do VE < 97ml/m2 e anormalidades na função diastólica1212. Paulus WJ, Tschope C, Sanderson JE, Rusconi C, Flachskampf FA, Rademakers FE, et al. How to diagnose diastolic heart failure: a consensus statement on the diagnosis of heart failure with normal left ventricular ejection fraction by the Heart Failure and Echocardiography Associations of the European Society of Cardiology. Eur Heart J. 2007;28(20):2539-50. , 1313. Tschope C, Kasner M, Westermann D, Gaub R, Poller WC, Schultheiss HP. The role of NT-proBNP in the diagnostics of isolated diastolic dysfunction: correlation with echocardiographic and invasive measurements. Eur Heart J. 2005;26(21):2277-84..

Nos portadores de ICFEN, diferentes anormalidades subcelulares têm sido demonstradas, como alterações na matriz extracelular com o aumento do depósito de produtos finais de glicação avançada, alteração do perfil do colágeno, mudanças da isoforma e hipofosforilação da proteína sarcomérica titina, aumento da resposta inflamatória e diminuição da atividade da bomba SERCA21414. Louridas GE, Lourida KG. A conceptual paradigm of heart failure and systems biology approach. Int J Cardiol. 2012;159(1):5-13. , 1515. Borbély A, Papp Z, Edes I, Paulus WJ. Molecular determinants of heart failure with normal left ventricular ejection fraction. Pharmacol Rep. 2009;61(1):139. No nível celular, as alterações observadas são apoptose, rigidez e hipertrofia do cardiomiócito, que pode ser responsável pelo remodelamento concêntrico, mesmo na ausência da hipertrofia do VE. Macroscopicamente, observa-se a hipertrofia do VE e aumento do volume do átrio esquerdo, que caracterizam as principais alterações estruturais observadas em pacientes com ICFEN. Finalmente, todas as alterações levarão ao desarranjo do sistema cardiovascular, que, integrado a diversos outros sistemas, provocarão ou agravarão anormalidades multissistêmicas conhecidas como comorbidades1414. Louridas GE, Lourida KG. A conceptual paradigm of heart failure and systems biology approach. Int J Cardiol. 2012;159(1):5-13. (Figura 1).

Figura 1
ICFEN – fisiopatologia e comorbidades. ICFEN: Insuficiência cardíaca com fração de ejeção normal.

Em resumo, tais alterações estruturais e funcionais aumentam o risco de desenvolvimento de disfunção diastólica do VE. Pacientes com ICFEN, apesar de apresentarem valores considerados normais para a fração de ejeção do VE, apresentam alterações no desempenho sistólico, que pode ser avaliado através de diferentes índices de função sistólica, incluindo contratilidade do VE, volume sitólico, débito cardíaco e encurtamento da velocidade sistólica do eixo axial (S'). A anormalidade do relaxamento e o aumento da rigidez ventricular levam ao aumento das pressões de enchimento do VE, que são marcadores da presença de disfunção diastólica22. Mesquita ET, Jorge AJ. Insuficiência cardíaca com fração de ejeção normal - novos critérios diagnósticos e avanços fisiopatológicos. Arq Bras Cardiol. 2009;93(2):180-7..

Alterações na rigidez arterial e na função endotelial estão presentes em diferentes graus nos portadores de ICFEN, contribuindo para o agravamento da disfunção diastólica, com aumento da pós-carga e acarretando ou intensificando a isquemia miocárdica. Ao lado disso, anormalidades da microcirculação também podem contribuir para a intolerância ao exercício através do comprometimento da perfusão da musculatura esquelética e dos músculos respiratórios que vêm sendo também estudados nos portadores de ICFEN.

Uma discussão mais pormenorizada da fisiopatologia da ICFEN tem sido descrita por Mesquita e cols. e Matsubara em duas revisões recentes nos Arquivos Brasileiros de Cardiologia33. Roscani MG, Matsubara LS, Matsubara BB. Heart failure with normal ejection fraction. Arq Bras Cardiol. 2010;94(5):652-60. , 44. Mesquita ET, Socrates J, Rassi S, Villacorta H, Mady C. Heart failure with preserved systolic function. Arq Bras Cardiol. 2004;82(5):494-500..

Definindo a abordagem de biologia de sistemas

O modelo contemporâneo translacional, de desenvolvimento do conhecimento científico na área médica, tem permitido o emprego em larga escala de novos tratamentos efetivos para as doenças. Tal modelo, derivado do sistema osleriano, estabelece que a presença de uma determinada doença deva ser definida como alterações em um tecido (correlação anatomoclínica) e, a partir daí, busca-se compreender a fisiopatologia e desenvolver um alvo terapêutico específico1616. Norman G. Medical education: past, present and future. Perspect Med Educ. 2012;1(1):6-14. , 1717. Chen R, Snyder M. Systems biology: personalized medicine for the future? Curr Opin Pharmacol. 2012;12(5):623-8.. Com base nos avanços da biologia molecular e empregando a visão osleriana, buscouse centrar na identificação de genes individuais, proteínas e células, assim como o estudo das suas funções, proporcionando informações limitadas sobre as doenças complexas.

A biologia de sistemas permite através da construção de modelos matemáticos, simulações e técnicas de processamento de dados, a integração de informações das ciências ômicas e dados clínico-epidemiológicos de forma que se consiga um maior entendimento das interações entre os componentes dos sistemas vivos e de seus processos biológicos1818. Lusis AJ, Weiss JN. Cardiovascular networks: systems-based approaches to cardiovascular disease. Circulation. 2010;121(1):157-70.

19. Barabasi AL, Gulbahce N, Loscalzo J. Network medicine: a network-based approach to human disease. Nat Rev Genet. 2011;12(1):56-68.
- 2020. Maclellan WR, Wang Y, Lusis, AJ.Systems-based approaches to cardiovascular disease. Nat Rev Cardiol. 2012;9(3):172-84..

O campo da biologia de sistemas tem suas raízes na formulação do princípio de sistemas de controle do meio ambiente interno de Claude Bernard em 1865, ganhando formalismo quantitativo com a descrição matemática da biofísica do potencial de ação, primeiramente delineada por Hodgkin e Huxley em células nervosas, logo depois extendida por Denis Noble para o potencial de ação do coração2121. Dewey FE, Wheeler MT, Ashley EA. Systems biology of heart failure, challenges and hopes. Curr Opin Cardiol. 2011;26(4):314-21.. A aplicação dessa abordagem à medicina data desde antes da revolução biológica molecular. No entanto, na era pré-genômica, a biologia de sistemas era, naturalmente, prejudicada pela ausência de tecnologias necessárias para se alcançar tal integração e pela inabilidade de interrogar detalhadamente tais sistemas2121. Dewey FE, Wheeler MT, Ashley EA. Systems biology of heart failure, challenges and hopes. Curr Opin Cardiol. 2011;26(4):314-21.. No entanto, nas últimas décadas, avanços científicos nas áreas de biologia molecular, engenharia, bioinformática, e física em associação com as ciências ômicas (Quadro 1), tornaram possível a obtenção de informações mais completas e de uma maior capacidade para definir abordagens mais detalhadas.

Quadro 1
Ciências ômicas

Biologia de sistemas, cujas principais características estão descritas no Quadro 2, pode ser então entendida como a interação de diferentes sistemas biológicos ativados a níveis molecular, celular, tecidual e orgânico, que podem ser avaliadas através de ferramentas, muitas das quais disponíveis na prática clínica88. Chan SY, White K, Loscalzo J. Deciphering the molecular basis or human cardiovascular disease through network biology. Curr Opin Cardiol. 2012;27(3):202-9. , 2222. De Keulenaer GW, Brutsaert DL. Systolic and diastolic heart failure are overlapping phenotypes within the heart failure spectrum. Circulation. 2011;123(18):1996-2004..

Quadro 2
Principais características da Biologia de Sistemas

A biologia de sistemas permite um novo entendimento do conceito de doença, que pode ser definida como a quebra da cooperação entre algumas das partes biológicas em um sistema orgânico, tendo como resultado o comprometimento de toda a função do organismo1414. Louridas GE, Lourida KG. A conceptual paradigm of heart failure and systems biology approach. Int J Cardiol. 2012;159(1):5-13..

Neste conceito de doença, podemos destacar duas vertentes de estudo, a abordagem bottom-up, que visa definir as especificidades que compõemuma estrutura, enumerando os elementos e identificando suas características individuais de forma a alcançar-se uma imagem do foco a ser estudado, e a abordagem top-down, em que não há a necessidade de fornecer dados detalhados dos componentes da rede, mas sim entender os princípios gerais que regem a mesma para melhor compreendê-la e nortear a identificação de elementos antes não previstos. Analogamente, poderíamos comparar a visão bottom-up como uma imagem de ligue os pontos, na qual só conseguimos identificar a real figura quando cada um dos pontos está devidamente conhecido e ligado aos demais, enquanto a visão top-down pode ser entendida como uma arte impressionista, a qual, quando vista muito de perto, não nos permite identificar o cenário como um todo, sendo necessário ter uma visão mais distanciada, desta forma, mais ampla, não se preocupando com detalhamento excessivo para então identificar a imagem completamente. Aliando ambas as características, amplifica-se o conhecimento acerca do sistema analisado e confere capacidade de encontrar novas propostas e caminhos no mesmo1414. Louridas GE, Lourida KG. A conceptual paradigm of heart failure and systems biology approach. Int J Cardiol. 2012;159(1):5-13. , 1919. Barabasi AL, Gulbahce N, Loscalzo J. Network medicine: a network-based approach to human disease. Nat Rev Genet. 2011;12(1):56-68..

A proposta do conceito de rede é proporcionar uma estrutura na qual os seus componentes formadores e funcionais interajam em uma rede biológica auto-organizada. São as redes, mais do que os próprios componentes, que criam o comportamento fisiológico e a doença. Cada nodo em uma rede representa um componente -um gene, uma proteína- e a interconexão destes descreve a arquitetura típica que é imposta pela seleção e pela evolução biológica2121. Dewey FE, Wheeler MT, Ashley EA. Systems biology of heart failure, challenges and hopes. Curr Opin Cardiol. 2011;26(4):314-21. (Figura 2).

Figura 2
Visão geral de uma rede biológica. Adaptado de Chan SY, Loscalzo J. The emerging paradigm of network medicine in the study of human disease. Circulation Res. 2012 Jul 20;111(3):359-74.

O trabalho com redes simplifica sistemas complexos sintetizando os elementos como nodos e suas interações como arestas entre estes, além de identificar grupos funcionais como módulo. Muitas dessas redes biológicas dispõem de uma topologia descrita como livre de escala, nas quais há uma primazia de nodos que apresentam poucas conexões, mas com alguns nodos que detém um número elevado de conexões, estes são denominados hubs (Figura 2). Tal arquitetura confere uma vantagem evolutiva, exibindo uma robustez biológica, visto que há uma multiplicidade de vias alternativas para se passar de um nodo a outro. Essa "redundância" também possibilita que as redes se adaptem mais facilmente a mudanças no ambiente. Em cada nível, a rede obtém novas propriedades não previstas pelos níveis anteriores, demonstrando o conceito de propriedade emergente88. Chan SY, White K, Loscalzo J. Deciphering the molecular basis or human cardiovascular disease through network biology. Curr Opin Cardiol. 2012;27(3):202-9. , 1818. Lusis AJ, Weiss JN. Cardiovascular networks: systems-based approaches to cardiovascular disease. Circulation. 2010;121(1):157-70.. A falência de redes biológicas ou a incapacidade de obter a propriedade emergente no nível seguinte causa disrupções nos mecanismos fisiológicos, gerando fenótipos patológicos complexos.

A abordagem em rede pode possibilitar uma mudança de paradigma no tratamento da IC, pois, ao invés de tentar adequar os diferentes pacientes a um mesmo tratamento (reducionismo), visa direcionar o perfil do tratamento aos diferentes pacientes a partir de suas redes individuais (medicina personalizada)2323. Voora D, Ginsburg GS. Clinical application of cardiovascular pharmacogenetics. J Am Coll Cardiol. 2012;60(1):9-20.

De maneira geral, o desenvolvimento dessa abordagem é centrado em um alvo molecular. No entanto, em doenças humanas complexas, esse alvo não é facilmente identificável e também não costuma ser dirigido por apenas um fator2323. Voora D, Ginsburg GS. Clinical application of cardiovascular pharmacogenetics. J Am Coll Cardiol. 2012;60(1):9-20.

Análises recentes demonstram que grande parte dos medicamentos tradicionais não atingem as proteínas-alvo, mas somente proteínas de redes vizinhas, podendo ser um dos motivos para que obtenham efeitos modestos quando empregados em pacientes com ICFEN88. Chan SY, White K, Loscalzo J. Deciphering the molecular basis or human cardiovascular disease through network biology. Curr Opin Cardiol. 2012;27(3):202-9..

Em contraste, uma nova farmacologia embasada em sistemas biológicos começa a se desenvolver objetivando a criação de novos medicamentos que possam estar direcionados para um ou mais alvos envolvidos no processo fisiopatológico das redes mais relevantes. Talabordagem começa a ser utilizada no câncer, HIV/AIDS e poderá ser, no futuro, útil também na ICFEN. O que torna críticauma nova visão da ICFEN sob a ótica da biologia de sistemas88. Chan SY, White K, Loscalzo J. Deciphering the molecular basis or human cardiovascular disease through network biology. Curr Opin Cardiol. 2012;27(3):202-9..

Um modelo da ICFEN utilizando a abordagem de biologia de sistemas

A complexidade da síndrome de ICFEN é óbvia, e nosso conhecimento sobre a fisiopatologia e progressão desta condição permanece incompleto, o que torna a construção de um modelo de rede para ICFEN potencialmente útil e desafiador no estágio atual do conhecimento.

O coração envolve diferentes escalas hierárquicas estruturais e funcionais e, através de múltiplas interações de subsistemas, permite que o coração normal alcance a uniformidade apesar da sua complexidade estrutural e funcional observadas em diferentes níveis2424. Brutsaert DL. Cardiac dysfunction in heart failure: the cardiologist's love affair with time. Prog Cardiovasc Dis. 2006;49(3):157-81. (Figura 3). Essa abordagem tem identificado diferentes anormalidades estruturais e funcionais no coração de animais e humanos77. Massie BM, Carson PE, McMurray JJ, Komajda M, McKelvie R, Zile MR, et al. Irbesartan in patients with heart failure and preserved ejection fraction. N Engl J Med. 2008;359(23):2456-67..

Figura 3
Modelo do ventrículo como estrutura dissipativa com propriedades emergentes. Adaptado de De Keulenaer GW, Brutsaert DL. Systolic and diastolic heart failure are overlapping phenotypes within the heart failure spectrum. Circulation. 2011;123(18):1996-2004.

ICFEN pode ser definida como uma condição complexa do ponto de vista mecanicista e, portanto, necessita de uma abordagem que incorpore os conceitos atuais de biologia de sistemas. A análise de dados ômicos é, desta forma, cruciais para o entendimento dos fatores envolvidos na ICFEN e para identificar biomarcadores com propriedades diagnósticas e prognósticas para uso clínico55. Yusuf S, Pfeffer MA, Swedberg K, Granger CB, Held P, McMurray JJ, et al. Effects of candesartan in patients with chronic heart failure and preserved left-ventricular ejection fraction: the CHARM-Preserved Trial. Lancet. 2003;362(9386):777-81..

Utilizando a visão da biologia de sistemas e integrando as diferentes anormalidades observadas na ICFEN, propomos um modelo onde combinamos fatores ambientais, genéticos, alterações morfofuncionais presentes no coração e vasos, anormalidades em outros sistemas e interação com diferentes comorbidades, desenvolvendo uma visão holística para esta síndrome e integrando as metodologias bottom-up e top-down (Figura 4).

Figura 4
Modelo esquemático de rede biológica para ICFEN

A ICFEN se desenvolve como consequência de doenças sistêmicas, como hipertensão, diabetes, obesidade e doença coronariana associada ao dimorfismo sexual feminino. O processo de envelhecimento também influencia em diferentes vias celulares e subcelulares e promove anormalidades funcionais e estruturais no coração e nos grandes vasos. Recentemente, anormalidades no dobramento de proteínas têm sido observadas durante envelhecimento anormal do coração, podendo contribuir para a ICFEN, fenômeno este denominado "Alzheimer do coração".

Além disso, evidências experimentais demonstram que o Fator de diferenciação do crescimento 11 (GDF11), uma substância que modula a atividade ligante-receptor em cardiomiócitos, quando se encontra reduzido em corações de ratos idosos, contribui para a hipertrofia cardíaca e para a diminuição da atividade funcional da SERCA 2, também promovendo elevação dos níveis de BNP. Por outro lado, quando restaurados os níveis de GDF11, foi demonstrada uma redução da hipertrofia cardíaca, aumento da atividade da bomba SERCA 2, ocorrendo, portanto, a restauração da função cardíaca diastólica2525. Lee RT, Loffredo FS, Steinhauser ML, Jay SM, Gannon IJ, Paancoast JR, Yalamanchi P, et al. Growth differentiation factor 11 is a circulating factor that reverses age-related cardiac hypertrophy. Cell. 2013;153(4):828-39..

Finalmente, essas anormalidades acabam promovendo intolerância aos esforços, congestão sistêmica e/ou pulmonar, hipoperfusão tecidual e também arritmias cardíacas, como a fibrilação atrial, e, finalmente, levando aos sinais e sintomas de IC2626. Willis MS, Patterson C. Proteotoxicity and cardiac dysfunction--Alzheimer's disease of the heart? N Engl J Med. 2013;368(5):455-64..

Outro importante conceito que é influenciado pelo paradigma da biologia de sistemas é o de biomarcador, sendo considerado indicador de estado clínico que pode ser obtido a partir da integração de múltiplos níveis de atividade biológica em rede. Essa abordagem é responsável por guiar a identificação de biomarcador baseado no entendimento aprofundado de seu mecanismo biológico. Na ICFEN, a elevação do peptídeo natriurético tipo B (BNP) liberado frente o aumento da tensão intraventricular é utilizado para confirmação diagnóstica e marcador prognóstico, além de mais recentemente ter demonstrado ser útil na utilização terapêutica nos casos de ICFER1818. Lusis AJ, Weiss JN. Cardiovascular networks: systems-based approaches to cardiovascular disease. Circulation. 2010;121(1):157-70..

Outros biomarcadores que avaliam fibrose, inflamação e necrose vêm sendo estudados na ICFEN. Atualmente, estratégias utilizando micro RNA demonstraram ser promissoras para melhor caracterização dos pacientes com ICFEN. Além disso, o emprego de múltiplos biomarcadores na pesquisa clínica tem introduzido a visão da abordagem semelhante a um sistema e poderão, no futuro, trazer importantes contribuições na avaliação prognóstica e na resposta terapêutica na ICFEN2727. Azuaje FJ, Dewey FE, Brutsaert DL, Devaux Y, Ashley EA, Wagner DR. Systems-based approaches to cardiovascular biomarker discovery. Circ Cardiovasc Genet. 2012;5(3):360-7..

O entendimento das anormalidades fisiopatológicas em múltiplas vias na ICFEN tem levado ao desenvolvimento de novos fármacos com ações direcionadas a mais de uma das vias identificadas como críticas na fisiopatologia da ICFEN. O LCZ696 é o primeiro em sua classe de inibidor do receptor da neprilisina e do receptor da angiotensina que combina metade de uma prodroga inibidora de neprilisina, AHU 377, e metade da valsartana, um bloqueador do receptor da angiotensina, em um único composto. A neprilisina degrada os peptídeos natriuréticos biologicamente ativos incluindo o peptídeo natriurético atrial (ANP), o BNP e o peptídeo natriurético tipo C, mas não o Nt-proBNP, que é biologicamente inativo. Aumentando os peptídeos natriuréticosativos, o inibidor da neprilisina aumenta a geração guanosina cíclica miocárdica,a qual melhora o relaxamento miocárdico e reduz hipertrofia. Peptídeos natriuréticos também estimulam a natriurese, diurese e vasodilatação e podem ter efeito adicional antifibrótico e antissimpático. Além disso, a neprilisina também contribui para o colapso da angiotensina, que é o racional para a dupla ação do composto que tanto inibe esta enzima como bloqueia a ação ou geração da angiotensina2828. Solomon SD, Zile M, Pieske B, Voors A, Shah A, Kraigher-Krainer E, et al; Prospective comparison of ARNI with ARB on Management Of heart failUre with preserved ejectioN fracTion (PARAMOUNT) Investigators. The angiotensin receptor neprilysin inhibitor LCZ696 in heart failure with preserved ejection fraction: a phase 2 double-blind randomised controlled trial. Lancet. 2012;380(98):1387-95. (Figura 5).

Figura 5
Mecanismos de ação do novo medicamento LCZ696 que atua inibindo a neprilisina e bloqueando o receptor da angiotensina. Solomon SD, Zile M, Pieske B, et al; Prospective comparison of ARNI with ARB on Management Of heart failure with preserved ejection fraction (PARAMOUNT) Investigators. Lancet; 2012;380:1387-95.

O LCZ696 foi testado em pacientes com ICFEN (Estudo PARAMOUNT - fase 2) e mostrou uma redução mais acentuada do NT-proBNP do que o uso da valsartana isolada. Além disso, LCZ696 foi superior ao valsartana para promover o remodelamento reverso atrial esquerdo e também melhorar a classe funcional desses pacientes2828. Solomon SD, Zile M, Pieske B, Voors A, Shah A, Kraigher-Krainer E, et al; Prospective comparison of ARNI with ARB on Management Of heart failUre with preserved ejectioN fracTion (PARAMOUNT) Investigators. The angiotensin receptor neprilysin inhibitor LCZ696 in heart failure with preserved ejection fraction: a phase 2 double-blind randomised controlled trial. Lancet. 2012;380(98):1387-95..

Em resumo, a compreensão da IC sob o ponto de vista da biologia de sistemas é ainda limitada pela dificuldade que temos de integrar dados deste complexo sistema de informações em um modelo biopatológico, sobretudo em função das diversas variáveis que interferem nas relações existentes, como variações genéticas de cada indivíduo e a influência do ambiente sobre o organismo88. Chan SY, White K, Loscalzo J. Deciphering the molecular basis or human cardiovascular disease through network biology. Curr Opin Cardiol. 2012;27(3):202-9..

Conclusão

A abordagem utilizando biologia de sistemas na ICFEN está em um estágio inicial e apresenta um potencial de oferecer a possibilidade de ampliar o entendimento fisiopatológico, refinar o diagnóstico e levar ao desenvolvimento de novos biomarcadores e alvos terapêuticos.

No momento atual, a combinação de uma visão reducionista com uma visão holísticaé ainda necessária para um melhor entendimento da ICFEN que envolve uma rede de interações complexas entre entidades biológicas em diferentes escalas.

Portanto, a ICFEN, pela sua complexidade fisiopatológica, e, no momento atual, pela ausência de um tratamento capaz de reduzir o seu impacto sobre a mortalidade, torna-se uma condição cardiovascular ideal para uma nova abordagem empregando a biologia de sistemas e, dessa forma, permitir o desenvolvimento de futuros alvos terapêuticos.

  • Contribuição dos autores
    Concepção e desenho da pesquisa: Mesquita ET; Redação do manuscrito: Mesquita ET, Jorge AJL, Souza Junior CV, Cassino JPP; Revisão crítica do manuscrito quanto ao conteúdo intelectual importante: Mesquita ET, Jorge AJL.
  • Fontes de Financiamento
    O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.
  • Vinculação Acadêmica
    Não há vinculação deste estudo com dissertações e teses de pós-graduação.

Referências

  • 1
    Owan TE, Hodge DO, Herges RM, Jacobsen SJ, Roger VL, Redfield MM. Trends in prevalence and outcome of heart failure with preserved ejection fraction. N Engl J Med. 2006;355(3):251-9.
  • 2
    Mesquita ET, Jorge AJ. Insuficiência cardíaca com fração de ejeção normal - novos critérios diagnósticos e avanços fisiopatológicos. Arq Bras Cardiol. 2009;93(2):180-7.
  • 3
    Roscani MG, Matsubara LS, Matsubara BB. Heart failure with normal ejection fraction. Arq Bras Cardiol. 2010;94(5):652-60.
  • 4
    Mesquita ET, Socrates J, Rassi S, Villacorta H, Mady C. Heart failure with preserved systolic function. Arq Bras Cardiol. 2004;82(5):494-500.
  • 5
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Maio 2014

Histórico

  • Recebido
    26 Jun 2013
  • Revisado
    24 Set 2013
  • Aceito
    26 Set 2013
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