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Cardiogeriatria: uma subespecialidade ou uma necessidade?

PONTO DE VISTA

Cardiogeriatria: uma subespecialidade ou uma necessidade?

Mauricio Wajngarten

Unidade de Cardiogeriatria – InCor – HC/FM-USP - São Paulo, SP

Correspondência Correspondência: Mauricio Wajngarten Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44 05403-000 – Cerqueira César – São Paulo, SP E-mail: wajngart@cardiol.br ou mauriciowa@uol.com.br

Palavras-chave: Cardiogeriatria, geriatria, gerontologia.

Os dados demográficos mostram o envelhecimento da população mundial. Em nosso país, esse processo está ocorrendo de modo muito acelerado. A epidemiologia, por sua vez, mostra o impacto plausível das doenças cardiovasculares nas faixas etárias maiores. Essas doenças são freqüentes e promovem altas taxas de mortalidade e de morbidade. Evidentemente, os custos impostos ao sistema de saúde são enormes. Portanto, teremos cada vez mais idosos que sofrerão de doenças cardiovasculares e de suas conseqüências, impingindo ônus socioeconômico enorme ao nosso país.

Como resolver essa equação? Como garantir os direitos do idoso prometidos, aliás, pela legislação vigente? Como prevenir e resolver os problemas relacionados ao envelhecimento?

A geriatria e a gerontologia objetivam contemplar essas questões em amplo espectro, à medida que buscam a compreensão de fatores biológicos, psicológicos e sociais envolvidos no envelhecimento. A cardiologia é, sem dúvida, um dos fatores determinantes para o aumento do número de idosos. Ela é uma especialidade de vocação curativa para condições eminentemente agudas e obtém ótimos resultados envolvendo tecnologia avançada. Contudo, de modo geral, olha mais para a doença que para o doente. Estabelece-se, portanto, um conflito potencial: uma especialidade que tende a priorizar a doença em relação ao doente, o agudo em relação ao crônico, e depara com doentes cada vez mais idosos revestidos por suas peculiaridades e complexidades. São pacientes com múltiplas comorbidades agudas ou crônicas que sofrem influência de fatores sociais e ambientais e são mais vulneráveis a doenças e à iatrogenia.

Desse modo, formam um grupo heterogêneo que não pode ser contemplado adequadamente pelas diretrizes elaboradas com a finalidade de padronizar as condutas médicas. Tais características recomendam condutas individualizadas que considerem a opinião e os desejos do paciente e de seus familiares.

A cardiogeriatria se propõe a ser uma intersecção entre a cardiologia e a geriatria, a fim de solucionar o conflito mencionado, tem como objetivo maior aprimorar a assistência cardiológica aos idosos. Esse objetivo passa, inicialmente, pelo desenvolvimento de pesquisas, aferição de dados e coleção de experiências, cuja divulgação oferece a possibilidade de uma assistência qualificada.

A evolução da cardiogeriatria é ilustrativa. Criada em nosso meio em 1982 pelo Prof. Dr. Luis Gastão do Serro Azul, passou por diversas fases. Todas elas foram norteadas pelo conhecimento da epidemiologia das doenças cardiovasculares nos idosos. No início, buscou-se o aprendizado detalhado sobre o envelhecimento normal do sistema cardiovascular. Ele foi fundamental para o entendimento da maior vulnerabilidade do idoso a doenças cardiovasculares, bem como para diferenciar achados normais dos patológicos.

Ainda na década de 1980, foram desenvolvidos estudos sobre as peculiaridades em prevenção, diagnóstico, terapêutica e reabilitação. Esses tópicos continuaram a ser focalizados posteriormente a fim de contemplar a evolução dos conhecimentos científicos, incluindo nas áreas básicas. Assim, buscou-se acompanhar a evolução rápida e constante da cardiologia para aplicá-la ao idoso em todas as suas dimensões.

Felizmente, nos últimos anos, a cardiogeriatria incorporou progressivamente a cultura geriátrica. O trabalho em equipe multiprofissional, há muito aplicado na cardiologia, foi intensificado.

O estudo das comorbidades e de suas conseqüências no idoso com doença cardiovascular mereceu maior atenção. Além disso, a aplicação de instrumentos preconizados pela "Avaliação Geriátrica Ampla" tem sido estimulada e aferida. Desse modo, temos a possibilidade de avaliar o idoso em múltiplos domínios e potencializar os resultados que a moderna tecnologia, aplicada na cardiologia, pode oferecer.

A saúde cardiovascular é essencial, mas é apenas uma parte do bem-estar do indivíduo. De que vale anticoagular um idoso com fibrilação atrial sem conhecer características de seu cuidador e de fatores ambientais que possam influir nos resultados do tratamento? Esses aspectos são esquecidos pelas Diretrizes.

A rigor, em razão da transição demográfica, todos os profissionais de saúde devem estar familiarizados com a "cultura geriátrica", incluindo o cardiologista. A divulgação dessa cultura no meio cardiológico começa a ter repercussões evidentes. É crescente o número de serviços de cardiogeriatria e de profissionais de saúde interessados na área. Conseqüentemente, houve um aumento expressivo na produção científica e no espaço aberto nos principais congressos. Eventos e cursos relacionados à cardiogeriatria multiplicam-se em todo o país. A Sociedade Brasileira de Cardiologia reconheceu o desenvolvimento da cardigeriatria e permitiu a promoção do Grupo de Estudos (Gebrac) a Departamento (Decage).

A cardiogeriatria não se limita à incorporação de conhecimentos de duas áreas. Ela propõe a criação contínua de novos conceitos que aprimoram as disciplinas de origem e trazem novas propostas de atuação. Esse processo é dinâmico, transdisciplinar e multiprofissional.

Talvez, a maior razão para o desenvolvimento da cardiogeriatria seja a demanda decorrente do número crescente de idosos; é a necessidade da capacitação para atendê-los, enfrentando dificuldades, sem dúvida, maiores do que aquelas encontradas nos pacientes mais jovens. Uma capacitação que deve transcender os limites impostos por especialidades.

Desse modo, o caráter da cardiogeriatria transcende ao de uma subespecialidade. Sempre a apontamos como área de pesquisa e ensino a fim de aprimorar a assistência. A realidade que constatamos em nossos ambulatórios, consultórios e hospitais mostra, de modo inequívoco, que a cardiogeriatria é, sim, uma necessidade primordial nos dias de hoje e, cada vez maior, para o futuro.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflitos de interesses pertinentes.

Recebido em 17/05/05

Aceito em 25/07/05

  • Correspondência:

    Mauricio Wajngarten
    Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44
    05403-000 – Cerqueira César – São Paulo, SP
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Out 2006
    • Data do Fascículo
      Set 2006
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