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Diagnóstico pré-natal de aneurisma e divertículo do ventrículo esquerdo

Resumos

Descrevemos dois casos de protrusão localizada do ventrículo esquerdo (VE), entidade que tem sido descrita na literatura como aneurisma ou divertículo. Em ambos os casos, observou-se uma evolução distinta da anteriormente relatada. A incidência e história natural dessas raras anomalias são pouco conhecidas, podendo evoluir de forma assintomática ou gerar graves complicações e até o óbito no período pré-natal. A abordagem terapêutica deve ser individualizada.

Cuidado pré-natal; ultrassonografia pré-natal; derrame pericárdico


We report two cases of localized left ventricular (LV) protrusion, an entity that has been described in the literature as aneurysm or diverticulum. Both cases had different outcomes from those previously reported. Little is known on the incidence and natural history of these rare anomalies, whose progression may be asymptomatic or lead to severe complications and death in the prenatal period. The therapeutic approach should be customized.

Prenatal care; ultrasonography prenatal; pericardial effusion


Describimos dos casos de protrusión localizada del ventrículo izquierdo (VI), entidad que se describe en la bibliografía como aneurisma o divertículo. En ambos casos se observó una evolución distinta a la anteriormente relatada. La incidencia e historia natural de estas raras anomalías son poco conocidas, pudiendo evolucionar de forma asintomática o generar graves complicaciones e incluso el óbito en el período prenatal. El abordaje terapéutico debe ser individualizado.

Cuidado prenatal; ecografía prenatal; derrame pericárdico


RELATO DE CASO

Diagnóstico pré-natal de aneurisma e divertículo do ventrículo esquerdo

Marcia F. A. Barberato, Silvio H. Barberato, Cristiane N. Binotto, Mary Julianne M. Cavalcanti, Ana Paula Passos, Nelson I. Miyague

Unidade de Saúde Mãe Curitibana, Prefeitura de Curitiba, Curitiba, PR - Brasil

Correspondência Correspondência: Silvio Henrique Barberato Rua Saint Hilaire, 122/203, Água Verde 80.240-140, Curitiba, PR - Brasil E-mail: msbarberato@terra.com.br, silviohb@cardiol.br

RESUMO

Descrevemos dois casos de protrusão localizada do ventrículo esquerdo (VE), entidade que tem sido descrita na literatura como aneurisma ou divertículo. Em ambos os casos, observou-se uma evolução distinta da anteriormente relatada. A incidência e história natural dessas raras anomalias são pouco conhecidas, podendo evoluir de forma assintomática ou gerar graves complicações e até o óbito no período pré-natal. A abordagem terapêutica deve ser individualizada.

Palavras-chave: Cuidado pré-natal, ultrassonografia pré-natal, derrame pericárdico.

Relato do caso 1

Uma paciente de 34 anos, gesta II, para I com 16 semanas de gestação, foi encaminhada ao serviço de medicina materno-fetal devido ao achado de um derrame pericárdico durante uma ecografia obstétrica de rotina. O restante da anatomia fetal estava normal, mas o ecocardiograma fetal evidenciou um derrame pericárdico importante, além de uma protrusão digitiforme de colo estreito, localizada em ápex do ventrículo esquerdo (VE) e com tamanho aproximado de 5 x 5,7 mm (ver figura 1). Não foram encontrados trombos ou outras anormalidades cardíacas. Optou-se então pela pericardiocentese, que foi realizada com sucesso quando a paciente estava com 20 semanas de gestação. Depois da retirada de 6 ml de líquido sero-sanguinolento, observou-se a expansão pulmonar imediata. Nos exames de controle após a intervenção, notou-se um discreto aumento do derrame pericárdico em relação ao resultado pós-punção, porém, sempre com função ventricular esquerda preservada e boa expansão pulmonar. Na 37.ª semana, o ecocardiograma de controle diagnosticou o óbito fetal. A necropsia não foi realizada por opção da família.


Relato do caso 2

Uma paciente de 25 anos, gesta I, para 0, com 30 semanas de gestação, foi encaminhada para realização de um ecocardiograma fetal por suspeita de má formação cardíaca. O exame evidenciou o VE dilatado, com função sistólica diminuída (encurtamento percentual=25%) e protrusão sacular de colo largo na parede lateral do VE, abaixo da valva mitral (ver figura 2). Observou-se um abaulamento sistólico paradoxal dessa estrutura, com dimensões de 12 x 13 mm. Os Doppler pulsátil e colorido demonstraram fluxo dentro da estrutura, confirmando a continuidade com o VE. O acompanhamento expectante durante a gestação não mostrou descompensação hemodinâmica ou piora da função ventricular. Optou-se pelo parto cesárea com 36 semanas devido à infecção materna (pielonefrite), que resultou em um recém-nascido pré-termo, pesando 2,5 Kg e Apgar de 8 e 9 no primeiro e quinto minuto, respectivamente. O ecocardiograma neonatal confirmou a má formação e mostrou a função sistólica do VE preservada. Uma conduta expectante foi tomada e, até o momento, o lactente de sete meses de idade evolui assintomático, sem a necessidade de qualquer intervenção terapêutica.


Discussão

As protrusões congênitas da parede dos ventrículos cardíacos têm sido descritas na literatura como divertículos ou aneurismas. A incidência dessa anomalia não é conhecida, pois as protrusões podem evoluir de forma assintomática ou gerar complicações hemodinâmicas, inclusive o óbito no período pré-natal1. Os processos fisiopatológicos subjacentes são pouco esclarecidos, mas postula-se que resultem de enfraquecimento localizado da parede ventricular por interrupção do desenvolvimento durante a embriogênese, infecção ou isquemia2,3. Embora não haja consenso definitivo para a diferenciação entre essas entidades, alguns critérios foram propostos.

O divertículo caracteriza-se pela conexão estreita com o ventrículo e pela presença de fibras miocárdicas na composição de sua parede, possibilitando a contração eficiente na sístole em alguns casos1. A condição pode ocorrer isoladamente3, ou associada à comunicação interventricular4 e defeitos de linha média tóraco-abdominal2. Acomete a câmara ventricular direita3,4 ou esquerda1, ocorrendo mais freqüentemente no ápex1,3,4. A maior parte dos relatos de divertículo no período pré-natal ocorre como achado de exame no segundo trimestre de gestação, pois, usualmente são estruturas menores do que os aneurismas e não causam compressão cardiovascular. Assim, o prognóstico parece ser favorável, sendo a maioria dos neonatos assintomática ao nascimento4. Entretanto, dependendo da localização e associação com outras anomalias, o divertículo pode desencadear insuficiência cardíaca, arritmia, ruptura, derrame pericárdico volumoso e hidropisia1,2,5,6. Em dois casos, com derrame pericárdico diagnosticado em fase precoce da gestação, o risco de hipoplasia pulmonar levou à interrupção da gravidez, procedimento legalmente permitido nos países de origem de tais relatos5,6. Vale ressaltar que, na ausência de comprometimento hemodinâmico, a efusão pericárdica costuma ter evolução favorável e resolução espontânea2. Alguns autores reportaram os benefícios da pericardiocentese nos casos com derrame pericárdico associado à insuficiência cardíaca, permitindo o desenvolvimento normal dos pulmões e uma boa evolução2,3,7. Não foi o que aconteceu no caso 1 aqui relatado e diagnosticado como divertículo. A pericardiocentese foi efetuada, pois a gestação encontrava-se em estágio precoce. Baseando-se na experiência prévia com bons resultados após a pericardiocentese, optou-se por uma conduta expectante após a punção, porém, o óbito fetal ocorreu próximo ao termo. Como não existiam sinais de descompensação hemodinâmica nos exames seriados, a principal hipótese é que tenha ocorrido a ruptura do divertículo, a despeito do seu tamanho inalterado. Nossa experiência, portanto, contrasta com a evolução geralmente benigna atribuída ao divertículo. Outro aspecto que deve ser ressaltado, é que o achado isolado de derrame pericárdico sem etiologia óbvia exige a pesquisa de anormalidades pouco comuns, como o divertículo ventricular ou atrial8.

Por outro lado, o aneurisma é caracterizado pelo abaulamento de um segmento da parede ventricular, uni ou multilobulado, apresentando típicos colo largo, tecido fibrótico e acinesia9. Também pode ser assintomático4, mas acarreta maior risco de complicações, como ruptura, embolia, arritmia, derrame pericárdico, insuficiência cardíaca e hidropisia10. A indicação do tratamento cirúrgico após o nascimento é controversa, com alguns autores sugerindo a excisão cirúrgica somente nos sintomáticos, e outros advogando seu emprego independente da sintomatologia9. O caso 2, diagnosticado como aneurisma, demonstrou uma associação com a dilatação e o comprometimento da função sistólica do VE em um primeiro momento, pressupondo uma pior evolução. Também de maneira diversa da anteriormente relatada na literatura, observou-se uma boa evolução, sem descompensação hemodinâmica durante o acompanhamento até o parto. Além disso, notou-se a normalização da função sistólica do VE e a boa evolução clínica após o parto. Novamente, a experiência com esse caso específico difere da evolução geralmente "maligna" atribuída ao aneurisma. Tais peculiaridades decorrem, em nossa opinião, da possibilidade de que estas duas entidades sejam apresentações distintas da mesma anomalia. Embora haja diferenças em relação às características macroanatômicas e histológicas, ambas representam áreas de miocárdio displásico, com diferentes graus de comprometimento, provavelmente adquirido durante fases precoces da embriogênese. Além disso, a falta de consenso na definição dos termos (divertículo versus aneurisma), além de sua utilização como intercambiáveis, pode ter levado a diagnósticos imprecisos no passado, alterando a percepção da evolução clínica dessas afecções. As condutas tomadas nos casos ora relatados - avaliação seriada, pericardiocentese e postura expectante - seguiram as poucas recomendações existentes na literatura, sempre provenientes de experiências com casuística reduzida.

Em conclusão, o diagnóstico e a diferenciação entre divertículo e aneurisma ventricular podem ser realizados no período pré-natal desde fases precoces da gestação. Embora geralmente o melhor prognóstico tenha sido atribuído aos fetos portadores de divertículo, a evolução adversa pode advir de qualquer das duas entidades. A verdadeira história natural dessas raras condições é pouco conhecida, e as intervenções futuras em fetos com comprometimento similar devem ser individualizadas.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação Acadêmica

Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

Artigo recebido em 12/07/08; revisado recebido em 07/10/08; aceito em 13/10/08.

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  • Correspondência:
    Silvio Henrique Barberato
    Rua Saint Hilaire, 122/203, Água Verde
    80.240-140, Curitiba, PR - Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Out 2009
    • Data do Fascículo
      Ago 2009

    Histórico

    • Recebido
      12 Jul 2008
    • Revisado
      07 Out 2008
    • Aceito
      13 Out 2008
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