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Leucodermia sifilítica: expressão rara do secundarismo diagnosticada por exame histopatológico

Resumos

Biópsias são ocasionalmente necessárias para confirmação diagnóstica de sífilis secundária, normalmente obtida por correlação clínico-sorológica. Entretanto, o exame histopatológico pode oferecer pistas que conduzam a um diagnóstico em casos antes insuspeitos ou de apresentação clínica incomum. Apresentamos um paciente de 35 anos, há dois com lesões acrômicas vitiligoides, para o qual sífilis foi sugerida somente após o exame histopatológico. Alguns aspectos microscópicos observados são discutidos e comparados com dados disponíveis na literatura.

Dermatite; Histologia; Infecções por Treponema; Sífilis cutânea


Biopsies are occasionally necessary to confirm the diagnosis of secondary-stage syphilis, currently achieved by clinico-serological correlation. However, histopathologic examination may offer clues that can lead to the diagnosis of the disease in previously unsuspected or unusual cases. We report the case of a 35-year-old male patient with vitiligo-like lesions for two years, whose diagnosis of syphilis was suggested only after histopathologic examination. Some microscopic aspects observed are discussed and compared to data from the literature.

Dermatitis; Histology; Syphilis, cutaneous; Treponemal infections


DERMATOPATOLOGIA

Leucodermia sifilítica: expressão rara do secundarismo diagnosticada por exame histopatológico* * Trabalho realizado no Serviço de Dermatologia do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Pará (ICS-UFPA) e em consultórios particulares - Belém (PA), Brasil.

Mario Fernando Ribeiro de MirandaI; Maraya de Jesus Semblano BittencourtII; Igor da Costa LopesIII; Shirley do Socorro Magalhães CuminoIV

IEspecialista em Dermatologia pela Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD); especialista em Dermatopatologia pelo International Committee for Dermatopathology (ICDP) e pela Union Européenne des Médecins Spécialistes (UEMS); professor adjunto de Dermatologia da Universidade Federal do Pará (UFPA) - Belém (PA), Brasil

IIEspecialista em Dermatologia pela Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD); ex-residente de Dermatologia do Hospital da Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará (HFSCMP) e do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Pará (ICS-UFPA) - Belém (PA), Brasil

IIIEspecialista em Dermatologia pela Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD); ex-residente de Dermatologia do Hospital da Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará (HFSCMP) e do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Pará (ICS-UFPA) - Belém (PA), Brasil

IVMédica dermatologista; profissional liberal - Belém (PA), Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Mario Fernando Ribeiro de Miranda Av. Nazaré, 1.033 / 701 - Nazaré 66040 145 Belém - PA, Brasil E-mail: mariomir@globo.com

RESUMO

Biópsias são ocasionalmente necessárias para confirmação diagnóstica de sífilis secundária, normalmente obtida por correlação clínico-sorológica. Entretanto, o exame histopatológico pode oferecer pistas que conduzam a um diagnóstico em casos antes insuspeitos ou de apresentação clínica incomum. Apresentamos um paciente de 35 anos, há dois com lesões acrômicas vitiligoides, para o qual sífilis foi sugerida somente após o exame histopatológico. Alguns aspectos microscópicos observados são discutidos e comparados com dados disponíveis na literatura.

Palavras-chave: Dermatite; Histologia; Infecções por Treponema; Sífilis cutânea

INTRODUÇÃO

Para casos suspeitos de sífilis secundária, é prática dermatológica corrente confirmar-se o diagnóstico por meio da correlação de dados clínicos com resultados de provas sorológicas. A realização de uma biópsia, considerada dispensável, em muitos casos, pode ser útil, pelo menos, sob dois aspectos: (i) apuro diagnóstico, pela obtenção de pistas histopatológicas fortemente sugestivas; (ii) exclusão de doenças que apresentam características clínicas similares e, eventualmente, até reações sorológicas positivas, de que são exemplos certos casos de lúpus eritematoso e estados reacionais da hanseníase.

O caso que apresentamos reveste-se de excepcionalidade tanto do ponto de vista clínico - por simular vitiligo -, quanto histopatológico - por se apresentar como dermatite liquenoide, associando atrofia epidérmica com infiltrado plasmocitário superficial. Ainda que pouco usuais, esses aspectos microscópicos direcionaram o diagnóstico para sífilis secundária, opção que não fora considerada entre as hipóteses clínicas.

RELATO DO CASO

Homem de 35 anos, fotótipo III, decorador de interiores, compareceu à consulta em maio de 2004 por manchas brancas nas dobras e genitália acompanhadas de prurido e ardência, com dois anos de evolução. Como antecedentes mórbidos, referia asma, dermatite atópica flexural, tratada por longo período com creme de clobetasol, e, aos 33 anos de idade, molusco contagioso histologicamente confirmado. Ao exame dermatológico, observaram-se manchas acrômicas de forma e dimensões variadas, irregulares, com limites precisos, em áreas associadas com eritema levemente papuloso e hiperpigmentação periférica localizadas na região inguinocrural, pênis, bolsa escrotal (Figura 1) e regiões poplíteas (Figura 2). Como hipóteses diagnósticas clínicas, sugeriram-se vitiligo e dermatite atópica com alterações discrômicas secundárias à corticoterapia tópica. Realizou-se biópsia de uma lesão da região inguinocrural. O exame histopatológico mostrou um infiltrado inflamatório linfoplasmocitário em faixa na derme papilar, associado com atrofia epidérmica, alteração vacuolar/escamotização da interface e incontinência pigmentar (Figura 3). Plasmócitos eram mais numerosos em áreas (Figura 4). A derme reticular profunda não apresentava alterações significativas. Em conclusão, uma dermatite de interface do tipo liquenoide, superficial, rica em plasmócitos, compatível com sífilis secundária, diagnóstico a seguir confirmado por exames sorológicos (VDRL reativo a 1:128, FTA-Abs IgM positivo). As sorologias anti-HIV-1/-2 e anti-hepatites B e C foram negativas. Submeteu-se o paciente a tratamento com penicilina G-benzatina (5 x 1.200.000 unidades). Dois anos após, em março de 2006, retornou apresentando regressão completa das lesões (Figura 5) e um VDRL reativo a 1:4, sugerindo cicatriz sorológica.






DISCUSSÃO

Leucodermia sifilítica (LS), como expressão do secundarismo tardio, tem sido objeto de escassas publicações na literatura dermatológica recente. 1,2,3,4 É clássica sua localização no pescoço sob a forma de pequenas manchas claras ou acrômicas circundadas por malhas pigmentadas (colar de Vênus), outrora objeto de debate quanto à sua natureza, se primária (d'emblée) ou secundária a outras eflorescências do secundarismo luético.5 Estudos de casos recentes parecem validar ambas as hipóteses, pela observação de lesões despigmentadas surgidas após o rash papuloso clássico,1 leucodermia como manifestação inaugural,4 aspectos associados,2,3 histopatologia compatível com secundarismo ativo2 e até demonstração do T. pallidum à microscopia eletrônica em lesões de LS.4 Além do pescoço, outras regiões da pele podem ser afetadas. A inclusão do vitiligo no diagnóstico diferencial da LS reflete-se tanto em uma das suas antigas designações (vitiligo sifilítico),5 quanto na eventual aparência vitiligoide das lesões, inclusive na genitália, como no caso relatado por Pattman.3

Em processos inflamatórios com plasmócitos, sífilis recente deve ser considerada, especialmente, se o infiltrado é superficial e profundo, podendo ser exclusivamente superficial em lesões maculares.6 Edema endotelial dos vasos sanguíneos é outro marcador histológico da sífilis primária e secundária, entretanto, plasmócitos e edema endotelial nem sempre são proeminentes, e micro-organismos são raramente demonstráveis no secundarismo tardio.6 A presença de espiroquetas pode ser comprovada mediante o emprego de colorações argênticas (Warthin-Starry, Levaditti, Steiner) ou de imuno-histoquímica. Num estudo histopatológico realizado em 17 casos de sífilis secundária, Hoang et al.7 puderam observar comprovada superioridade da imuno-histoquímica em relação à coloração pela prata para a demonstração de espiroquetas, com positividade de 71% e 41%, respectivamente, além da desvantagem de a prata também corar os grânulos de melanina, dificultando uma melhor visualização dos micro-organismos na epiderme, onde foram principalmente observados.

Lesões de secundarismo tardio tendem a ser granulomatosas, o que obriga a inclusão de outros processos granulomatosos, como sarcoidose e hanseníase. No que se refere a esta última, vale, ainda, lembrar uma possível disposição perineural do infiltrado na sífilis secundária, observada em 74% das biópsias estudadas no acima citado trabalho de Hoang et al.7

O caso ora apresentado destaca-se por aspectos histopatológicos singulares, especialmente, atrofia epidérmica e infiltrado inflamatório em faixa exclusivamente na derme superior. Exceto pela riqueza em plasmócitos, detalhe que nos levou a suspeitar de sífilis, o quadro não se superpõe in totum ao clássico descrito para a doença nas fontes consultadas, pelo que a correlação clinicopatológica, etapa essencial do processo diagnóstico em Dermatologia, foi fundamental para se chegar à elucidação do caso, permitindo a exclusão de condições mórbidas de similar expressão histopatológica, como acrodermatite crônica atrófica e outras infecções espiroquéticas. Destacadas alterações da interface dermoepidérmica, com incontinência pigmentar associada, nos parecem consistentes com os aspectos discrômicos da lesão clínica.

Em conclusão, a sífilis secundária deverá ser considerada para lesões discrômicas planas, nas quais uma dermatite de interface do tipo liquenoide, superficial, com atrofia epidérmica e predomínio de plasmócitos no infiltrado for observada à histopatologia. Recomenda-se, ainda, atenção especial à eventual necessidade de exclusão da doença em pacientes com lesões vitiligoides da região genital e áreas vizinhas.

Aprovado pelo Conselho Editorial e aceito para publicação em 11.05.2010

Conflito de interesse: Nenhum

Suporte financeiro: Nenhum

  • 1. Fiumara NJ, Cahn T. Leukoderma of secondary syphilis: two case reports. Sex Transm Dis. 1982;9:140-2.
  • 2. Pandhi RK, Bedi TR, Bhutani LK. Leucoderma in early syphilis. Br J Vener Dis. 1977;53:19-22.
  • 3. Pattman RS. Reversible penile leukoderma in a man with secondary syphilis: a case report. Sex Transm Dis. 1982;9:96-7.
  • 4. Poulsen A, Secher L, Kobayasi T, Weismann K. Treponema pallidum in leukoderma syphiliticum demonstrated by electron microscopy. Acta Derm Venereol. 1988;68:102-6.
  • 5. Fournier A. Traité de la syphilis. Paris: Rueff J (éditeur); 1903. p. 361-74.
  • 6. Weedon D, Strutton G. Skin pathology. Edinburgh: Churchill Livingstone; 2002. p. 56, 89, 650-1.
  • 7. Hoang MP, High WA, Molberg KH. Secondary syphilis: a histologic and immunohistochemical evaluation. J Cutan Pathol. 2004;31:595-9.
  • Endereço para correspondência:
    Mario Fernando Ribeiro de Miranda
    Av. Nazaré, 1.033 / 701 - Nazaré
    66040 145 Belém - PA, Brasil
    E-mail:
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    Trabalho realizado no Serviço de Dermatologia do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Pará (ICS-UFPA) e em consultórios particulares - Belém (PA), Brasil.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Out 2010
    • Data do Fascículo
      Ago 2010

    Histórico

    • Recebido
      11 Maio 2010
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