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Cirurgia micrográfica: a história do surgimento do método de Munique (ou como se pode escrever certo por linhas tortas...)

Micrographic Surgery: a history of the emergence of the Munich Method (or how to write correctly on crooked lines...)

CORRESPONDÊNCIA

Cirurgia micrográfica - A história do surgimento do método de Munique (ou como se pode escrever certo por linhas tortas...)*

Micrographic Surgery - A history of the emergence of the Munich Method (or how to write correctly on crooked lines...)*

Luis Fernando Figueiredo Kopke

Mestre em dermatologia pela UFMG. Pós-graduado em dermatologia cirúrgica na Universidade de Munique na área de cirurgia micrográfica. Ex-preceptor de cirurgia dermatológica nas residências em dermatologia do Hospital das Clínicas da UFMG e Santa Casa de Belo Horizonte

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Luis Fernando Figueiredo Kopke Rua Rio Grande do Norte 1560/702 Belo Horizonte MG 30130-131 (31) 3227-9898 E-mail: luiskopke@uol.com.br

Parece que todos nós temos a tendência de achar que, por dominar um assunto e falar muito sobre ele, todos já deveriam saber muito a respeito e não seria mais preciso voltar à história de como o fato surgiu. É aí que nos esquecemos de que muitas pessoas ou ainda não escutaram ou não sabem nada a respeito do mesmo. E ficamos admirados com o quanto podemos contar a partir de nossas próprias experiências. Foi pensando nisso que resolvi contar, mais uma vez, como surgiu a cirurgia micrográfica pelo método de Munique, por ter sido, talvez, meu maior legado até agora para a expansão de um conceito em medicina. Aos que já sabem, peço desculpas por não estar trazendo uma novidade, mas talvez a releitura compense, pois alguns detalhes podem ter sido esquecidos.

Em 1991 fui para a Alemanha, com uma bolsa de estudos e um projeto de mais de um ano de duração para fazer um fellowship em cirurgia dermatológica, especialmente em cirurgia micrográfica de Mohs. Como todo estudante ávido de conhecimentos, já havia praticamente estudado todo o livro de Mikhail sobre cirurgia micrográfica, antes de começar o estágio na clínica dermatológica da Universidade de Munique. Portanto, teoricamente, já sabia bem sobre o assunto, pois esse livro é realmente muito completo, explicando detalhadamente todos os pormenores técnicos do método.

Na clínica, minha rotina resumia-se a cerca de 8-10 horas diárias de trabalho, com as manhãs tomadas de cirurgias (em média 10 a 15) e a tarde dominada por horas no laboratório. De início, uma surpresa: naquela época, todos os casos de cirurgia micrográfica da clínica eram feitos com os pacientes internados. Assim, na rotina do trabalho, operávamos pacientes em vários estágios diferentes do procedimento, desde o início à reconstrução da ferida cirúrgica. Normalmente tínhamos cerca de 10 casos simultaneamente. O paciente era operado pela manhã, e o laudo do estágio, seja para início da reconstrução ou para outro estágio da cirurgia, era dado no final da tarde, depois que todos os fragmentos enviados ao laboratório fossem cortados e analisados. Nos primeiros três meses, praticamente eu apenas observava e ajudava, tanto nas cirurgias quanto no laboratório. A partir daí, passei a operar e também a processar o material.

Mas nesses três primeiros meses, de imediato, notei que tudo que eu via era muito diferente do que estava descrito no livro de Mikhail. As peças eram cortadas sistematicamente em cortes paralelos à superfície epidérmica, do fundo até que toda epiderme fosse tocada em praticamente todo o seu contorno. No microscópio, SEMPRE observávamos o tumor, estivesse ou não a borda livre de acometimento. Procurei, então, na literatura alemã, alguma descrição do método que eu observava. Nada encontrei. Pedi a meu chefe direto, Dr. Birger Konz, que me indicasse publicações sobre o assunto e, nelas, nada encontrei que pudesse ser semelhante ao que eu estava observando. Ao final de três meses, tendo estudado tudo que podia e continuando a observar o que estava sendo feito, comecei a me sentir um pouco constrangido e naturalmente com medo de polemizar... Já imaginou dizer que aquilo que era praticado como sendo cirurgia micrográfica de Mohs, não era cirurgia micrográfica de Mohs e sim outra coisa, que parecia não estar ainda descrita, e errar? Ainda mais considerando-se a rígida disciplina alemã. Dizer as coisas sem estar certo delas poderia render-me frutos não muito bons... Foi então que decidi estudar a história do início da cirurgia micrográfica na Alemanha.

Tudo começou na década de 1960, com a ida para os Estados Unidos do Dr. Gunter Burg. Ele estudou cirurgia micrográfica diretamente com o Dr. Frederic Mohs. Naquela época ainda se praticava a quimiocirurgia de Mohs. De volta a Munique, o método foi introduzido na Alemanha pelo Dr. Burg, que trabalhava diretamente com o Dr. Birger Konz, no período em que a clínica ainda era comandada pelo famoso Prof. Braun-Falco. O Dr. Burg publicou pouco sobre o que trouxe dos Estados Unidos, pois ele não era um cirurgião nato, tanto é que, poucos anos depois, mudou-se para Zurique, onde até hoje se dedica mais a outras áreas de interesse em dermatologia. O Dr. Konz, então, passou a comandar sozinho a cirurgia micrográfica, visto que ele é um cirurgião nato, ainda hoje trabalhando na área de cirurgia dermatológica. Acontece que foi o Dr. Burg que inicialmente instruiu as funcionárias do laboratório no corte dos fragmentos.

Nos primeiros anos, a quimiocirurgia dominou os procedimentos, da mesma forma que era o método ainda mais empregado nos EUA. Ela consistia na aplicação, sobre o tumor, de uma pasta especial de cloreto de zinco, com a finalidade de fixar o tumor in vivo. A ação fixadora da pasta, além de demorar cerca de um dia e ser muito dolorosa, ocorria com penetrabilidade muito limitada. Por isso, a excisão do tumor tinha que ser feita com o bisturi em bizel, para que ela não atingisse a área não fixada em profundidade, ou seja, a famosa, excisão em prato da cirurgia micrográfica de Mohs, um dos princípios fundamentais do método. Isso resultava quase sempre em uma peça cirúrgica de formato achatado, na qual deveria ser realizado um CORTE HORIZONTAL, que incluísse a borda epidérmica e o fundo do fragmento. Esse tipo de corte é também um dos fundamentos da cirurgia micrográfica de Mohs. Como as peças tinham o formato muito plano, um corte horizontal poderia ser confundido facilmente com um CORTE PARALELO. E isso foi o que aconteceu. Na própria literatura médica, apenas Ronald Rapini faz reparo sobre o termo corte horizontal, descrevendo que, na realidade, ele NUNCA foi horizontal, mas OBLÍQUO. Isso passou a ter mais importância ainda quando o método com fixação in vivo (quimiocirurgia de Mohs) foi praticamente substituído pelo método a fresco, que surgiu no final dos anos 60, com os trabalhos de Tromovitch e Stegman. Os fragmentos passaram a ser um pouco mais grossos, pois não havia mais o fator limitante da fixação, de penetrabilidade limitada, da pasta de cloreto de zinco. E foi justamente nesse contexto que ocorreu a mudança do Dr. Burg para Zurique. Na clínica de Munique, realizava-se cada vez menos a quimiocirurgia, seguindo-se o novo conceito do método a fresco. Porém, o corte da peça continuava a ser PARALELO em Munique, sempre com a visão do tumor e suas relações com as margens cirúrgicas. As peças continuavam a ser esgotadas no criostato em inúmeros cortes, ao contrário do método de Mohs, influenciando até a forma de se fazer o laudo histopatológico.

Como o Dr. Burg não se encontrava mais em Munique e o Dr. Konz não sabia informar quando realmente os cortes em Munique "ficaram paralelos", o "elo perdido" da história estava com a funcionária do laboratório, que desde a época do Dr. Burg, ainda trabalhava na clínica. Foi com quem eu aprendi a fazer cortes de congelação. Edelgard Ebmayer. Ela era a chave da história! E contou-me que SEMPRE havia cortado as peças paralelamente e que na realidade, nunca se havia perguntado a respeito disso. Nem mesmo o Dr. Burg lhe havia questionado a forma como os cortes eram entregues para o exame histológico. Foi então que eu encontrei uma publicação em um jornal dermatológico de circulação restrita na Alemanha, denominando o método de cirurgia histográfica, de autoria de Gunter Burg. Nele havia a prova de que o método havia surgido por um engano de comunicação entre ele e a técnica do laboratório, pois existia um diagrama com o formato dos cortes histológicos prontos, como ocorre na cirurgia micrográfica de Mohs, mas com outro diagrama mostrando claramente que os cortes eram sucessivos e paralelos, como sempre foram em Munique.

De posse dessas evidências, colhidas ao longo de seis meses de investigação, propus ao Dr. Konz que se batizasse o método com o nome da cidade de Munique, como uma variação de cirurgia micrográfica até então não descrita na literatura. Baseados em pelo menos 20 anos de experiência com o método, pudemos comprovar sua eficácia como método seguro e igualmente eficaz de cirurgia micrográfica. Indo até mesmo mais além, fui a Portugal com o Dr. Antonio Picoto e depois a Tübingen, com o Dr. Helmut Breuninger, para obter de forma mais exata os detalhes técnicos do método de Mohs e do método denominado torta de Tübingen, denominação até então só conhecida na Alemanha. Então, em novembro de 1992, resolvi escrever um artigo científico, não somente apresentando e batizando o método de Munique como um método distinto de cirurgia micrográfica, mas também comparando-o aos outros métodos até então registrados, no sentido de descrever suas vantagens e desvantagens. Eu estava entusiasmado por achar que não existia na literatura abordagem sobre o assunto, no sentido de ampliar o conceito de cirurgia micrográfica. Qual não foi minha surpresa ao encontrar apenas um autor, com a mesma linha de raciocínio. Era Ronald Rapini, hoje charmain em Lubbock, no Texas. Todos os seus trabalhos com relação ao assunto foram publicados exatamente a partir de outubro de 1992. Ele mesmo, textualmente, ressalta, em um deles, que não havia encontrado nada na literatura que fosse semelhante a suas análises, as quais julgou serem inéditas até então. Apesar de perceber que minhas observações a respeito não eram mais originais como eu imaginava, fiquei contente por encontrar respaldo publicado e por descrever pela primeira vez, na literatura alemã, finalmente, o método de Munique.

A genialidade de Frederic Mohs pode prever que seu método evoluiria para outras variações e formas de checagem de margens cirúrgicas igualmente eficazes. E, apesar de os nomes de Tromovitch e Stegman ficarem ligados ao surgimento do método a fresco, não podemos nos esquecer de que o próprio Frederic Mohs publicou um caso de lesão palpebral, tratada pelo método a fresco. E é justamente de Frederic Mohs a denominação "cirurgia microscopicamente controlada", mais abrangente para métodos diferentes, mas igualmente eficazes, de checagem de margens cirúrgicas.

Para o leitor mais interessado no assunto, destacamos a seguinte bibliografia:

1. Mikhail GR, Mohs micrographic surgery. Philadelphia: W.B. Saunders, 1991.

2. Rapini RP. Comparison of methods for schecking surgical margins. J Am Acad Dermatol 1990; 23: 288-94.

3. Rapini RP. On the definition of Mohs surgery na how it determines appropriate surgical margins. Ach Dermatol 1992; 128: 673-78.

4. Kopke LFF e Konz B. Cirurgia micrográfica é sinônimo de cirurgia de Mohs? An Bras Dermatol 1994; 69(6): 499-502.

5. Kopke LFF e Konz B. As diferenças fundamentais entre as variações da cirurgia micrográfica. An Bras Dermatol 1994; 69(6): 505-510.

6. Kopke LFF e Konz B. Mikrographische Chirurgie. Eine methodische Bestandsaufnahme. Hautarzt 1995;46: 607-14.

Recebido em 26.02.2003

Aprovado pelo Conselho Consultivo e aceito para publicação em 28.02.2003

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Nov 2003
    • Data do Fascículo
      Out 2003
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