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Necrose adiposa do recém-nascido: a propósito de dois casos clínicos

Resumos

A necrose adiposa subcutânea do recém-nascido é uma paniculite rara do período neonatal. Surge, geralmente, em recém-nascidos de termo ou pós-termo, nas primeiras 4 semanas de vida, e em associação com trauma obstétrico. Caracteriza-se pelo aparecimento de placas ou nódulos subcutâneos duros, localizados ao tronco, nádegas ou coxas. O seu curso é, geralmente, benigno e autolimitado, embora possa acompanhar-se de hipercalcemia, o que obriga a uma vigilância periódica até à resolução das lesões cutâneas. Os autores descrevem 2 casos de necrose adiposa subcutânea do recém-nascido, um num recémnascido de termo, outro num prematuro, ambos associados a partos traumáticos e a sofrimento fetal

Distocia; Doenças do recém-nascido; Hipercalcemia; Necrose gordurosa


Subcutaneous fat necrosis of the newborn is an uncommon disorder occurring during the prenatal stage. Generally occurring in full-term neonates or during the first four weeks after a traumatic delivery, the disorder is characterized by the appearance of hard subcutaneous nodules or plaques on the trunk, buttocks or thighs. It is normally a benign and transient condition, although it may be complicated by hypocalcemia, which requires close monitoring until skin lesions are cured. The authors describe two cases of subcutaneous fat necrosis of the newborn, one occurring in a full-term neonate and the other in a premature newborn, both related to traumatic delivery and fetal distress

Dystocia; Infant, newborn, diseases; Fat necrosis; Hypocalcemia


CASO CLÍNICO

Necrose adiposa do recém-nascido : a propósito de dois casos clínicos* * Trabalho realizado no: Serviço de Dermatologia Hospital de Santo António - Centro Hospitalar do Porto - Porto, Portugal.

Ana Cristina Santos OliveiraI; Manuela SeloresII; Olga PereiraIII

IDra - interna de especialidade - Serviço de Dermatologia Hospital de Santo António - Centro Hospitalar do Porto - Porto, Portugal

IIChefe de Serviço - Serviço de Dermatologia Hospital de Santo António - Centro Hospitalar do Porto - Porto, Portugal

IIIMD - Serviço de Dermatologia do Centro Hospitalar do Alto Ave (CHAA) - Guimarães, Portugal

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Ana Cristina Santos Oliveira Hospital de Santo António Serviço de Dermatologia Edifício das Consultas Externas (Ex-CICAP) Rua D. Manuel II s/nº Portugal. 4000- Porto E-mail: anacsoliveira@gmail.com

RESUMO

A necrose adiposa subcutânea do recém-nascido é uma paniculite rara do período neonatal. Surge, geralmente, em recém-nascidos de termo ou pós-termo, nas primeiras 4 semanas de vida, e em associação com trauma obstétrico. Caracteriza-se pelo aparecimento de placas ou nódulos subcutâneos duros, localizados ao tronco, nádegas ou coxas. O seu curso é, geralmente, benigno e autolimitado, embora possa acompanhar-se de hipercalcemia, o que obriga a uma vigilância periódica até à resolução das lesões cutâneas. Os autores descrevem 2 casos de necrose adiposa subcutânea do recém-nascido, um num recémnascido de termo, outro num prematuro, ambos associados a partos traumáticos e a sofrimento fetal.

Palavras-chave: Distocia; Doenças do recém-nascido; Hipercalcemia; Necrose gordurosa

INTRODUÇÃO

A necrose adiposa subcutânea do recém-nascido é uma dermatose pouco comum, descrita pela primeira vez por Harrison e McNee em 1926.1 Corresponde a uma paniculite típica do recém-nascido, em que ocorrem necrose e calcificação da gordura subcutânea provocada por um parto traumático, do qual resulta hipoperfusão do tecido celular subcutâneo. 2 Tem um curso benigno e é autolimitada, resolvendo no primeiro ano de vida. Pode, no entanto, ser complicada por hipercalcémia, o que obriga a um seguimento periódico destes doentes. 3

RELATO DOS CASOS

CASO CLÍNICO 1:

Recém-nascida filha de pais saudáveis, não consanguíneos e fruto de gravidez vigiada e complicada por diabetes gestacional, controlada com medidas dietéticas. Tratava-se de recém-nascida macrossômica (Peso ao nascimento: 4850g; Comprimento: 52cm; Perímetro cefálico: 38cm) submetida a parto traumático, com distocia de ombros e necessidade de aplicação de ventosa; com Apgar de 4 e de 6 ao 1º e 5º minutos, respectivamente e necessidade de entubação endotraqueal na 1ª hora de vida. Internada durante a primeira semana de vida por asfixia perinatal e lesão do plexo braquial direito.

Observada no Serviço de Urgência, ao 13º dia de vida, pelo aparecimento de nódulos subcutâneos, de consistência dura, localizados ao dorso e à região cervical bilateral, com cerca de 5 dias de evolução. Ao exame objetivo, observavam-se nódulos subcutâneos, de consistência dura, ovalados, com cerca de 4x2 cm na região cervical, bilateralmente, e com configuração de cordão, com cerca de 10 cm na região superior direita do dorso. A pele suprajacente não apresentava alterações (Figuras 1 e 2). O restante exame objetivo era normal.



Realizou ecografia de partes moles da região cervical e dorso que mostrava espessamento e hiperecogenicidade homogénea do tecido celular subcutâneo da região cervical e dorso superior. Foi submetida à biópsia cutânea que revelou lesões de necrose adiposa com áreas de calcificação distrófica ao nível do tecido adiposo, confirmando o diagnóstico de necrose adiposa subcutânea do recém-nascido. O estudo analítico não evidenciava alterações, nomeadamente dos valores de cálcio sérico (Figura 3).


Mantém-se em seguimento, apresentando regressão gradual das lesões cutâneas. Os níveis de cálcio sérico têm-se mantido dentro dos valores normais.

CASO CLÍNICO 2:

Recém-nascido do sexo masculino, nascido de parto eutócico às 35 semanas, com 1840g (leve para a idade gestacional). Apgar de 3,6 e 8, aos 1, 5 e 10 minutos respectivamente, e necessidade de ventilação assistida no periparto.

À 4ª semana de vida, foram notados dois nódulos duros, bem circunscritos, com 15mm de diâmetro, com ulceração central, localizados na região parietotemporal esquerda. O exame histopatológico mostrou focos de necrose adiposa na hipoderme. As lesões regrediram espontaneamente nos meses subsequentes, deixando cicatriz atrófica. Os níveis de cálcio sérico apresentaram-se dentro da normalidade durante o processo.

DISCUSSÃO

A necrose adiposa subcutânea do recém-nascido é uma forma rara de paniculite, em que ocorre necrose do tecido adiposo de recém-nascidos de termo ou pós-termo submetidos a um parto traumático.4 Esta surge, geralmente, nas 4 primeiras semanas de vida, e resolve, espontaneamente, ao longo do primeiro ano. 5

Ocorre, geralmente, em associação com partos traumáticos, complicados por distocias, hipotermia, hipoxia/asfixia ou aspiração de mecônio. 6 Sabe-se que a diabetes gestacional, o abuso de cocaína durante a gestação, a pré-eclâmpsia e a incompatibilidade Rh podem estar também implicados.7 A patogênese ainda não é conhecida, mas se presume que a hipoperfusão do tecido celular subcutâneo do RN, cujo sistema enzimático responsável pela dessaturação dos ácidos gordos é imaturo, agrave a deposição de ácidos gordos saturados, condicionando solidificação e necrose do tecido adiposo; por outro lado, o arrefecimento dos tecidos induz a cristalização dos adipócitos, que resulta em necrose. A pressão local decorrente do trauma associado ao parto (por distocia ou macrossomia) potencia também a tendência à necrose gorda. 3,8

Clinicamente, caracteriza-se por áreas de edema e eritema que progridem para placas ou nódulos subcutâneos, bem delimitados, duros, móveis e indolores, em áreas submetidas a traumatismo durante o parto, como o dorso, as nádegas, as coxas, os braços e as regiões malares ou de forma difusa quando associados a sofrimento fetal de forma isolada. A pele suprajacente pode ser normal ou apresentar coloração eritematoviolácea, que vai regredindo com o tempo.5 As lesões podem, eventualmente, ulcerar. Para além das lesões cutâneas, os recém-nascidos se apresentam geralmente bem e sem outras alterações ao exame físico.

Os diagnósticos diferenciais a ser considerados incluem: a esclerodermia neonatal, as dermo-hipodermites bacterianas agudas (erisipela, celulite), a infecção por CMV, os hemangiomas profundos, a lipogranulomatose (doença de Farber) e os sarcomas, nomeadamente rabdomiossarcomas. 2,5

O diagnóstico é clínico, sugerido pela história típica de complicações maternas como a diabetes gestacional associadas a trauma obstétrico (geralmente partos distócicos) ou a sofrimento fetal, aliado aos achados clínicos característicos. Os exames de imagem são, geralmente, desnecessários para o diagnóstico, embora possam ter um papel importante na exclusão de outros diagnósticos diferenciais. 9,10 O diagnóstico pode ser confirmado por citologia aspirativa ou por biópsia cutânea. A histologia é característica, revelando áreas de necrose adiposa, rodeada por uma reacção granulomatosa, constituída por: histiócitos, macrófagos e células gigantes e associada a focos de calcificação. 2

O primeiro caso clínico que relatamos se enquadra no que se encontra descrito na literatura, à medida que se trata de uma recém-nascida macrossômica, filha de mãe com diabetes gestacional e submetida a parto distócico, do qual resultou lesão do plexo braquial direito e hipoxia perinatal. O segundo caso clínico é um caso atípico, à medida que se trata de recém-nascido prematuro. O fato de ser leve para a idade gestacional foi relevante à proporção que condicionou o sofrimento fetal e a asfixia periparto. Apesar de raros, estão descritos casos de NASRN em prematuros. 11

Os diagnósticos de necrose adiposa subcutânea foram realizados com base na história clínica, nos achados clínicos típicos e no exame histopatológico.

Esta é uma patologia benigna e com tendência à resolução espontânea em menos de um ano. Pode, no entanto, fazer-se acompanhar de alterações extracutâneas que, embora raras, devem ser pesquisadas, nomeadamente hipoglicemia, anemia, trombocitopenia e hipercalcémia. A hipercalcémia, cuja verdadeira incidência é desconhecida, é a principal complicação desta patologia e surge, em média, um a seis meses após a necrose adiposa. 5 Geralmente, faz-se acompanhar de recusa alimentar, letargia, irritabilidade, hipotonia, vómitos, polidipsia ou poliúria. Há, no entanto, recém-nascidos que permanecem assintomáticos. Esta complicação pode condicionar elevada morbilidade e, eventualmente, mortalidade, pelo que deve ser sempre de considerar, mesmo na ausência de sintomas. A sua etiologia ainda não é conhecida, mas parece ser por causa de uma produção excessiva de 1,25-diidroxi-vitamina D pelos macrófagos, independente da absorção renal e da paratormona (PTH). 6,12 É necessário manter estas crianças em vigilância periódica, clínica e analítica, até à regressão completa das lesões cutâneas.

Quando não se encontra associada à hipercalcemia, o tratamento desta dermatose é sintomático.

Recebido em 09.01.2011.

Aprovado pelo Conselho Consultivo e aceito para publicação em 30.01.2011.

Conflito de interesse: Nenhum

Suporte financeiro: Nenhum

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  • Endereço para correspondência:
    Ana Cristina Santos Oliveira
    Hospital de Santo António Serviço de Dermatologia Edifício das Consultas Externas (Ex-CICAP)
    Rua D. Manuel II s/nº
    Portugal. 4000- Porto
    E-mail:
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    Trabalho realizado no: Serviço de Dermatologia Hospital de Santo António - Centro Hospitalar do Porto - Porto, Portugal.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Nov 2011
    • Data do Fascículo
      Ago 2011

    Histórico

    • Recebido
      09 Jan 2011
    • Aceito
      30 Jan 2011
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