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Genética molecular do hipotireoidismo congênito

Resumos

O hipotireoidismo congênito (HC) ocorre, mundialmente, em 1/3000-4000 neonatos e pode ser classificado em permanente ou transitório. O HC primário é responsável pela maioria dos afetados, enquanto o secundário e terciário são raros. Nos países iodo-suficientes, a disgenesia tireóidea (DT) é a causa mais freqüente de HC. Os defeitos hereditários da síntese hormonal ocorrem em minoria de crianças portadoras de HC. Fatores ambientais, genéticos e auto-imunes concorrem na etiologia do HC, mas na maioria dos casos de DT a causa é obscura. Atribui-se aos genes envolvidos na ontogenia da glândula tireóidea, como os fatores de transcrição TITF1, TITF2, PAX-8 e receptor de TSH (TSHR), função patogenética na DT. Até o momento não foi descrita anormalidade no gene TITF1 como causa de HC, enquanto foram identificadas mutações no PAX-8 em cinco recém-nascidos com DT. Embora não envolvidas na DT, mutações inativadoras do TSHR podem produzir espectro de defeitos congênitos oscilando entre hipertirotropinemia com eutireoidismo e hipotireoidismo com hipoplasia glandular. A clonagem dos genes envolvidos na biossíntese dos hormônios tireóideos, como o da tireoperoxidase (TPO) e tireoglobulina (Tg), permitiu a identificação de mutações responsáveis por alguns casos de bócio e hipotireoidismo decorrente de defeito de incorporação de iodeto ou anormalidades na síntese de Tg. Recentemente, foi demonstrada a base molecular do defeito de transporte ativo de iodeto e da síndrome de Pendred, respectivamente, devidas a mutações no gene NIS (simportador de sódio e iodeto) e no gene PDS (pendrina). Em conclusão, grande parte dos pacientes com HC e DT não tem esclarecida, ainda, a causa molecular desta síndrome.

Tireóide; Hipotireoidismo congênito; Disgenesia tireóidea; Receptor de TSH; Biologia molecular


Congenital hypothyroidism (CH) occurs in 1/3000-4000 neonates worldwide and may be classified as permanent or transient. Primary CH accounts for the majority of affected children, while secondary and tertiary CH are rare. In iodine-sufficient countries, thyroid dysgenesis (TD) is the most frequent cause of CH. Hereditary inborn errors of thyroid hormonogenesis account for about 10-20% CH children. Environmental, genetic and autoimmune factors have been implicated in the etiology of CH, but in the majority of cases the cause of TD remains to be clarified. Candidates for playing a pathogenetic role in TD are genes involved in thyroid gland ontogeny, such as those of thyroid transcription factors TITF1, TITF2, PAX-8 and the TSH-receptor (TSHR). No abnormality in the TITF1 gene has yet been found in CH, while mutations in the PAX-8 gene were identified in at least 5 neonates with TD. Loss of function mutations of the TSHR gene, although not involved in TD, may produce a spectrum of congenital defects ranging from euthyroid hyperthyrotropinemia to overt hypothyroidism with a hypoplastic gland. The cloning of genes implicated in the biosynthesis of thyroid hormones, such as those of thyroperoxidase (TPO) and thyroglobulin (Tg), has led to the identification of mutations responsible for some cases of goitrous hypothyroidism due to iodide organification defect or abnormalities in Tg synthesis. Recently, the molecular basis of the iodide transport defect and Pendred’s syndrome were reported, due to mutations, respectively, on the NIS and PDS genes. In conclusion, we still do not have elucidated the molecular basis of TD, the most common of the defects affecting neonates with CH.

Thyroid; Congenital hypothyroidism; Thyroid dysgenesis; TSH receptor; Molecular biology


atualização

Genética Molecular do Hipotireoidismo Congênito

Meyer Knobel

Célia Regina Nogueira

Geraldo Medeiros-Neto

Unidade de Tireóide (MK, GMN) e

Laboratório de Biologia Molecular em

Tireóide da FMUSP (LIM-25),

Disciplina de Endocrinologia,

Hospital das Clínicas da Faculdade de

Medicina da USP, São Paulo, SP; e

Laboratório Experimental de Clínica

Médica (CRN), Disciplina de

Endocrinologia, Universidade

Estadual Paulista (UNESP),

Botucatu, SP.

Recebido em 20/10/00

Aceito em 10/01/01

RESUMO

O hipotireoidismo congênito (HC) ocorre, mundialmente, em 1/3000-4000 neonatos e pode ser classificado em permanente ou transitório. O HC primário é responsável pela maioria dos afetados, enquanto o secundário e terciário são raros. Nos países iodo-suficientes, a disgenesia tireóidea (DT) é a causa mais freqüente de HC. Os defeitos hereditários da síntese hormonal ocorrem em minoria de crianças portadoras de HC. Fatores ambientais, genéticos e auto-imunes concorrem na etiologia do HC, mas na maioria dos casos de DT a causa é obscura. Atribui-se aos genes envolvidos na ontogenia da glândula tireóidea, como os fatores de transcrição TITF1, TITF2, PAX-8 e receptor de TSH (TSHR), função patogenética na DT. Até o momento não foi descrita anormalidade no gene TITF1 como causa de HC, enquanto foram identificadas mutações no PAX-8 em cinco recém-nascidos com DT. Embora não envolvidas na DT, mutações inativadoras do TSHR podem produzir espectro de defeitos congênitos oscilando entre hipertirotropinemia com eutireoidismo e hipotireoidismo com hipoplasia glandular. A clonagem dos genes envolvidos na biossíntese dos hormônios tireóideos, como o da tireoperoxidase (TPO) e tireoglobulina (Tg), permitiu a identificação de mutações responsáveis por alguns casos de bócio e hipotireoidismo decorrente de defeito de incorporação de iodeto ou anormalidades na síntese de Tg. Recentemente, foi demonstrada a base molecular do defeito de transporte ativo de iodeto e da síndrome de Pendred, respectivamente, devidas a mutações no gene NIS (simportador de sódio e iodeto) e no gene PDS (pendrina). Em conclusão, grande parte dos pacientes com HC e DT não tem esclarecida, ainda, a causa molecular desta síndrome.

Unitermos: Tireóide; Hipotireoidismo congênito; Disgenesia tireóidea; Receptor de TSH; Biologia molecular

ABSTRACT

Congenital hypothyroidism (CH) occurs in 1/3000-4000 neonates worldwide and may be classified as permanent or transient. Primary CH accounts for the majority of affected children, while secondary and tertiary CH are rare. In iodine-sufficient countries, thyroid dysgenesis (TD) is the most frequent cause of CH. Hereditary inborn errors of thyroid hormonogenesis account for about 10-20% CH children. Environmental, genetic and autoimmune factors have been implicated in the etiology of CH, but in the majority of cases the cause of TD remains to be clarified. Candidates for playing a pathogenetic role in TD are genes involved in thyroid gland ontogeny, such as those of thyroid transcription factors TITF1, TITF2, PAX-8 and the TSH-receptor (TSHR). No abnormality in the TITF1 gene has yet been found in CH, while mutations in the PAX-8 gene were identified in at least 5 neonates with TD. Loss of function mutations of the TSHR gene, although not involved in TD, may produce a spectrum of congenital defects ranging from euthyroid hyperthyrotropinemia to overt hypothyroidism with a hypoplastic gland. The cloning of genes implicated in the biosynthesis of thyroid hormones, such as those of thyroperoxidase (TPO) and thyroglobulin (Tg), has led to the identification of mutations responsible for some cases of goitrous hypothyroidism due to iodide organification defect or abnormalities in Tg synthesis. Recently, the molecular basis of the iodide transport defect and Pendred’s syndrome were reported, due to mutations, respectively, on the NIS and PDS genes. In conclusion, we still do not have elucidated the molecular basis of TD, the most common of the defects affecting neonates with CH.

Keywords: Thyroid; Congenital hypothyroidism; Thyroid dysgenesis; TSH receptor; Molecular biology

AS ANORMALIDADES CONGÊNITAS DA TIREÓIDE tornam-se clinicamente evidentes pela resultante alteração funcional glandular. Esta envolve tanto o decréscimo como aumento da produção hormonal, definindo assim, respectivamente, o hipotireoidismo neonatal ou congênito (HC) e o hipertireoidismo congênito.

Etiologia

O HC é um dos distúrbios endócrinos pediátricos mais comuns, ocorrendo em aproximadamente 1/3000-4000 nascimentos (1). Pode ser classificado em permanente ou transitório (tabela 1).

O HC primário ocorre na maioria das crianças afetadas, enquanto o secundário e terciário (central) são raros (2). Internacionalmente, a deficiência de iodo é a causa predominante de HC transitório (1). Nos países iodo-suficientes, a disgenesia tireóidea (DT) decorrente de defeitos embriológicos é a razão principal de HC, responsável por 85% ou mais das crianças afetadas (3). A disgenesia pode decorrer de agenesia glandular (25% a 35% dos casos), definida como ausência de tecido tireóideo detectável; ectopia (40% a 60%), com tecido tireóideo encontrado desde a base da língua até o mediastino ou hipoplasia (aproximadamente 5%), onde a glândula de tamanho reduzido se situa em posição cervical normal. Os defeitos de síntese hormonal acontecem em 10-15% de crianças com HC (aproximadamente 1 em 30.000 recém nascidos), mas esta prevalência pode ser maior em grupos étnicos com paridade elevada, alto grau de casamentos consangüíneos e em gêmeos ou indivíduos aparentados. O sexo feminino é duas a três vezes mais afetado que o masculino. Fatores genéticos, ambientais e auto-imunes têm sido considerados na etiologia do HC, mas na maioria dos casos a causa da disgenesia tireóidea permanece obscura.

Disgenesia tireóidea

A tireóide é a primeira glândula endócrina que surge durante o desenvolvimento embrionário. Sua organogênese tem início a partir de espessamento endodérmico (divertículo tireóideo) mediano no assoalho da faringe primitiva. Este divertículo move-se caudalmente e posiciona-se em situação cervical final por volta da 7a. semana de gestação. As células foliculares, responsáveis pela biossíntese hormonal, derivam, quase exclusivamente, do primórdio tireóideo. Sua diferenciação começa quando a migração se completa, sugerindo que esta última e aquela distinção funcional podem ser eventos mutuamente exclusivos. Evidências correntes sugerem que os fatores de transcrição TTF-1, TTF-2 e PAX-8 são indispensáveis à evolução glandular, seja do ponto de vista migratório como proliferativo (4). Estes se expressam preferencialmente em tireócitos e interagem com promotores da tireoglobulina (Tg), tireoperoxidase (TPO), TSH e seu receptor (TSHR) e/ou outros genes. Alterações em qualquer um deles podem ser responsáveis pela disgenesia tireóidea, conforme esquematizado na figura 1. Nos casos de disormonogênese, os defeitos são acompanhados por bócio e, freqüentemente, têm como fatores causais mutações nos genes codificadores para Tg e TPO (5). Durante a embriogênese tireóidea, os genes codificadores para aqueles fatores de transcrição expressam-se no início da formação e durante a migração glandular, enquanto os genes específicos para a diferenciação celular (TSH, TSHR e TPO) expressam-se mais tardiamente.


Fator 1 de transcrição tireóidea (TTF1)

O primeiro gene que se manifesta durante a constituição da tireóide é aquele codificador para o TTF1, cujo locus genético humano, denominado TITF1, se localiza no cromossomo 14q13. Codifica proteína nuclear com 42kDa, que interage com o DNA alvo através de seqüência definida constituída de 61 aminoácidos, conhecida como homeobox. No camundongo, o fator de transcrição equivalente Ttf1, expressa-se adicionalmente em tecidos cerebrais, hipófise anterior e pulmão (7). A influência do gene no passos iniciais do desenvolvimento tireóideo foi demonstrada em camundongos homozigotos Ttf1-/-, isto é, com ambos os alelos comprometidos. Os experimentos resultaram em animais com ausência total de tecido tireóideo e hipófise anterior, assim como alterações graves no cérebro e no desenvolvimento pulmonar (8). Portanto, parece razoável acreditar que mutações no gene TITF-1 podem afetar a formação glandular (provocando agenesia tireóidea) ou a migração das células primordiais (causando ectopia).

Todavia, dois estudos recentes envolvendo 76 crianças com HC por disgenesia tireóidea não foram capazes de localizar mutações no gene do TTF-1, indicando que estas alterações não parecem ser causa freqüente do distúrbio (9,10). Registro subsequente demonstrou que um paciente com HC e síndrome de dificuldade respiratória severa exibiu deleção heterozigótica de cerca de 13cM, incluindo o locus TTF-1 completo (11). Todavia, como a deleção era muito grande, é admissível relacionar aquele fenótipo à ausência de outros genes presentes na área afetada.

Fator 2 de transcrição tireóidea (TTF-2)

O fator TTF-2 é expresso na tireóide, na maior parte da endoderme do intestino anterior, na ectoderme craniofaríngea (envolvido na formação do pálato) e na bolsa de Rathke (implicada na formação da hipófise anterior) (12). Seu gene codificador humano (designado TITF2 ou FKHL15) situa-se no cromossomo 9q22 (13). Este fator é membro de uma grande família de proteínas atuantes como fatores reguladores em embriogênese e tumorigênese, que interagem com o DNA alvo mediante seqüência de 100 aminoácidos. Em roedores homozigóticos desprovidos do gene codificador para o TTF-2, o primórdio tireóideo não migra da cavidade faríngea e, eventualmente, desaparece resultando em HC (14). Consoante, foi demonstrada mutação homozigótica do TTF-2, associada ao HC em 2 irmãos que exibiam pálato fendido e disgenesia tireóidea (15). A proteína mutante exibia ligação comprometida ao DNA alvo e perda da função transcricional.

Fator de transcrição PAX-8

O PAX-8, um dos reguladores transcricionais da organogênese tireóidea, é também importante para expressão genética da Tg e TPO. Pertence à família de proteínas Pax presentes em mamíferos, que interagem com DNA através de domínios específicos (paired domain) essenciais à formação de vários tecidos, conforme sugerido por análises em roedores mutantes. Em particular, estão envolvidas na regulação dos passos iniciais do desenvolvimento de órgãos, definindo a especificação celular regional (16). O gene codificador humano situa-se no cromossomo 2q12-q14.

Em camundongos desprovidos do locus PAX-8, a tireóide encontra-se atrófica e sem organização folicular; a glândula compõe-se quase exclusivamente por células C, de origem neuroectodérmica e responsáveis pela produção de calcitonina. Além disso, camundongos mutantes homozigóticos PAX-8-/- exibem níveis circulantes reduzidos de hormônios tireóideos. O tratamento com tiroxina estende a sobrevida dos animais que, sem a medicação, morreriam em 1 semana (17).

Até o presente, as mutações inativadoras demonstradas em humanos foram monoalélicas (heterozigóticas), porém sem atuação dominante negativa comprovada (16). Ainda não foi esclarecido porque mutações monoalélicas no PAX-8 dão origem ao HC. Possivelmente, redução na expressão da proteína normal resultaria em produção hormonal insuficiente por fenômeno denominado haploinsuficiência. Esta diminuição poderia interferir na interação com competidores ou co-fatores. Neste caso, o fenótipo, além da influência das mutações, dependeria também de mutações em genes competidores/co-fatores. Esta possibilidade foi demonstrada com a proteína nuclear Ref-1, fator controlador da capacidade DNA-ligante do PAX-8 (18).

Em 1998, Macchia e cols. (19) identificaram duas entre 145 crianças com HC esporádico atribuído a disgenesia tireóidea, com mutações diferentes na região codificadora do gene PAX-8. Ambas exibiam níveis elevados de TSH; em uma (heterozigótica), com ectopia tireóidea, o T4 encontrava-se no limite inferior da normalidade e na outra (heterozigótica), com hipoplasia tireóidea, era subnormal. O pai, aparentemente, não era afetado. Muito recentemente, Congdon e cols. (20) estudaram 4 meninas naquela situação, portadoras de hipoplasia glandular. Concluíram que uma delas apresentava mutação heterozigótica no PAX-8. A mãe, embora com tireóide de tamanho normal, exibia igualmente transversão cromossômica heterozigótica no gene. Análises funcionais da seqüência codificadora defeituosa mostraram comprometimento do elemento de resposta, assim como ausência de transativação do promotor da TPO. Estes achados confirmam a relação do PAX-8 com o desenvolvimento tireóideo, como indicam que as mutações exibem penetrância ou expressividade variável (figura 2).


Receptor de TSH (TSHR)

Quando as células precursoras da tireóide atingem sua posição cervical final, começam a se diferenciar expressando genes responsáveis pela produção de hormônios tireóideos. O TSHR pertence à superfamília de receptores associados à proteína G, que exibem estrutura comum consistindo de sete segmentos transmembranosos, três alças extracelulares, três alças intracelulares, extremidade extracelular aminoterminal e intracelular carboxiterminal. Em humanos, seu gene codificador situa-se no cromossomo 14q31. O receptor é responsável pela intermediação das ações do TSH no crescimento, metabolismo e função celulares, com o objetivo final de síntese e secreção hormonais.

A participação do TSHR na diferenciação, função e crescimento foi inicialmente sugerida em camundongos da linhagem hyt (21), modelo experimental para HC autossômico recessivo. Estes roedores exibem mutação no 4º. segmento transmembranoso do receptor, que abole a resposta do AMPc ao TSH (22). A resistência ou insensibilidade ao TSH é definida como resposta reduzida ou ausente ao hormônio, biologicamente, ativo. É causada por alterações no receptor ou em nível pós-receptor. As mutações causadoras do defeito comprometem os dois alelos e o fenótipo caracteriza-se por concentrações circulantes elevadas de TSH e níveis normais ou baixos de HT (tabela 2).

A primeira mutação descrita no TSHR em paciente portador de HC foi descrita em 1995 (22). Trabalhos ulteriores registraram outros casos em indivíduos com hipoplasia glandular originários de, pelo menos, mais 13 famílias (24-29).

A base molecular do distúrbio foi esclarecida pela disponibilidade de células transfectadas, exprimindo o TSHR mutante em comparação ao normal (23). Na família estudada, três irmãs eutireóideas, com níveis séricos normais de HT, mas muito elevados de TSH (hipotireoidismo compensado), exibiam captação normal de iodeto em glândulas eutópicas morfologicamente normais. Duas mutações diferentes foram identificadas na sequência extracelular aminoterminal do receptor (cada um dos alelos comprometidos provinha de um dos pais - por isso denominados heterozigóticos compostos - portadores assintomáticos), provocando redução da sua afinidade ao TSH.

Não foram detectadas mutações no gene do TSHR em 2 irmãos japoneses (30), sugerindo que a resistência poderia resultar de defeitos em outro local, que não o receptor. Assim, a base molecular dessa forma de resistência ao TSH, dominantemente herdada, não está esclarecida. Os possíveis candidatos são fatores localizados em nível pós-receptor ou outros genes com influência sobre o desenvolvimento da tireóide. Esta possibilidade foi demonstrada em crianças sem grau de parentesco, portadoras de HC. Não foi possível relacionar a ocorrência de tireóide tópica hipoplásica a mutações no gene de TSHR e nem ao gene do TSH (31,32), denotando sua heterogeneidade genética.

Defeitos na síntese hormonal tireóidea

Cerca de 15% dos casos de HC são decorrentes de defeitos hereditários da hormonogênese tireóidea. Estes são provocados por mutações afetando a síntese, secreção ou reciclagem hormonais. Os afetados caracterizam-se pela presença de bócio e os mecanismos moleculares, na maioria deles, encontram-se descritos (5). Recentemente, as bases moleculares responsáveis por duas formas de HC disormonogenético, a saber, defeito no transporte de iodeto e a síndrome de Pendred (associada a uma freqüência estimada de 5-7,5% de surdez neurossensorial congênita).

Defeito no transporte ativo de iodeto

É causa rara de hipotireoidismo com bócio congênito. O padrão de transmissão genética parece ser autossômico recessivo. A acumulação ativa do íon na glândula é mediada por um simportador (carreador) protéico transmembranoso intrínseco Na+/I- (conhecido sob o epônimo NIS). Inicialmente, seu gene codificador foi isolado em roedores e, após, em humanos. Nestes, o gene (SLC5A5) localiza-se no cromossomo 19p13,2-p12 (33). Exibe 15 exons e codifica para uma proteína com 643 aminoácidos, encontrada primariamente na tireóide, mas também em mamas, cólon e ovário. A proteína apresenta 13 supostos segmentos transmembranosos (33), embora se admita a existência de 12 ou 14 (34).

Em nível molecular, mutações do gene/proteína que alteram aminoácidos são responsáveis pela captação comprometida de iodeto. Em dois pacientes distintos, mutações homozigóticas deram origem ao simportador inativo (35,36). Em outro caso, o afetado parecia ser heterozigótico composto para duas diferentes mutações. O alelo aberrante, derivado do pai, apresentava comprometimento codificando proteína inativa, enquanto o alelo materno exibia mutação que originava o NIS incompleto (37). No Japão, foram descritas várias outras famílias e duas novas mutações, que alteravam aminoácidos na proteína (38,39). Curiosamente, a mesma alteração genética resulta em heterogeneidade clínica fenotípica, indicando que outros fatores podem atuar como moduladores do efeito da mutação (40).

Síndrome de Pendred

Em 1896, Vaughan Pendred descreveu a síndrome caracterizada por surdez neurossensorial congênita e bócio (41). O bócio, de caráter multinodular, encontrado nos portadores, usualmente está associado a hipotireoidismo compensado de grau leve, embora possa ser franco. Os hormônios tireóideos estão, em geral, normais, com exceção do TSH sérico, que pode estar discretamente aumentado, enquanto a Tg sérica encontra-se, muitas vezes, elevada. A condição sine qua non é a ocorrência de descarga de radioiodo de, pelo menos, 15%, após administração oral de tiocianato ou perclorato. A audição nem sempre se encontra comprometida; quando isso ocorre está associada a deformidade coclear do tipo Mondini. O padrão de hereditariedade da síndrome é autossômico recessivo e, provavelmente, sua patogênese está vinculada a mutações do gene, localizado no cromossomo 7q (42-46). Codifica para proteína transmembranosa com 780 aminoácidos (86kDa), denominada pendrina e com epônimo PDS, relacionada aos carregadores de sulfato, embora capaz de atuar como transportadora de cloreto e iodeto (47). Contudo, ainda não foi elucidada a inter-relação da pendrina no desenvolvimento coclear e a função tireóidea.

Comentários finais

Esta revisão apresenta, segundo nosso ponto de vista, informações recentes sobre a base molecular do HC. A descoberta e caracterização do NIS e da pendrina, permitiram a identificação dos defeitos moleculares de duas formas clinicamente bem caracterizadas daquele distúrbio.

Por outro lado, a etiologia da disgenesia tireóidea (DT) encontra-se menos esclarecida. Foram identificadas alterações genéticas em apenas alguns casos. É possível que mutações dominantes causadoras de DT severa não sejam transmitidas devido à reduzida probabilidade dos portadores de HC gerarem descendentes. Entretanto, no futuro é provável que a incidência da DT aumente em virtude da detecção (e tratamento) precoce dos afetados pelos programas de triagem permitindo aos férteis transmitir a doença.

Até o presente, foram investigados apenas os genes TITF1, TITF2, PAX-8 e TSHR como possíveis causadores da DT. Contudo, a organogênese tireóidea é um processo complexo e outros genes se expressam durante a formação glandular. Por exemplo, a família de genes HOX está também implicada no desenvolvimento da região faríngea, pois alteração provocada do HOXA3 resultou em hipoplasia da glândula. O número de células foliculares e parafoliculares encontrava-se bastante reduzido e a organização da tireóide alterada, apesar da diferenciação celular completada. Roedores afetados exibem também ausência do timo. Por isso tem sido sugerido que o gene HOXA3 pode ser necessário para a manutenção da expressão do PAX1 naquele órgão (47). Além disso, conforme sugerido pela elevada incidência de casos esporádicos, é possível que a DT tenha origem multigênica.

Assim, na maioria deles, a base molecular da DT permanece obscura. A identificação e estudo de casos familiares será útil na definição adicional dos mecanismos da DT. De fato, estes estudos poderão fornecer evidências cruciais para o aconselhamento genético, segundo insinuado pela forma de herança dominante presente em algumas formas de HC.

Pacientes com DT podem ser aconselhados que apresentam a probabilidade de cerca de 0,01 (conforme a freqüência de mutações do PAX-8 registradas até o momento) de transmitir a doença a 50% dos descendentes, que deverão submeter-se obrigatoriamente à triagem neonatal do HC.

Adicionalmente, conforme mencionado, o tratamento prematuro dos portadores deste distúrbio previne o dano cerebral em conseqüência do déficit de hormônios tireóideos. O diagnóstico pré-natal das mutações envolvidas na patogênese da DT tornaria possível iniciar a terapia substitutiva ao nascimento, enquanto se aguarda os resultados da triagem.

Endereço para correspondência:

Geraldo Medeiros-Neto

Hospital das Clínicas

Av. Dr. Enéas C. Aguiar, 155 – 8ª. andar, bl. 3

05403-900 São Paulo, SP

Fax: (011) 211-5194

e.mail: medneto@uol.com.br

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jun 2001
  • Data do Fascículo
    Fev 2001

Histórico

  • Aceito
    10 Jan 2001
  • Recebido
    20 Out 2000
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