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A amiodarona e a tireóide

Amiodarone and the thyroid

Resumos

A amiodarona é uma droga rica em iodo, amplamente utilizada em cardiologia clínica para o tratamento de arritmias cardíacas. O uso crônico da amiodarona está associado a uma série de efeitos colaterais, destacando-se entre eles alterações na função tireoidiana e no metabolismo dos hormônios tireoidianos, levando a indução de hipotireoidismo ou de tireotoxicose. Diversos mecanismos, incluindo distúrbios na auto-regulação tireoidiana em resposta ao excesso de iodo, fatores imunológicos e a citotoxicidade provocada pela droga, estão envolvidos na gênese da disfunção tireoidiana induzida pela amiodarona. Cerca de 50% dos indivíduos em uso crônico de amiodarona desenvolvem alguma anormalidade na função tireoidiana, o que ressalta a necessidade da monitoração das concentrações séricas dos hormônios tireoidianos e do TSH nestes pacientes.

Tireóide; Amiodarona; Tireotoxicose


Amiodarone is an iodine-rich drug widely used for the management of cardiac arrhythmias. During long-term amiodarone therapy drug toxicity may occur and a substantial proportion of amiodarone-treated patients develop either hypothyroidism or thyrotoxicosis. Several mechanisms are involved in amiodarone-induced thyroid dysfunction: defective thyroid auto-regulatory mechanism in presence of excessive iodine offer, immunological factors and cytotoxicity. Approximately 50% of patients taking amiodarone present abnormal thyroid function. Therefore, for adequate clinical follow up of these patients, it is critical a careful monitoring of thyroid hormones and TSH, before and during treatment.

Thyroid; Amiodarone; Thyrotoxicoss


REVISÃO

A amiodarona e a tireóide

Amiodarone and the thyroid

Renata Pavan; Alexandre M.X. de Jesus; Léa M.Z. Maciel

Divisão de Endocrinologia, Departamento de Clínica Médica, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP), Ribeirão Preto, SP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Léa Maria Zanini Maciel Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - USP Av. Bandeirantes 3.900 14049-900 Ribeirão Preto, SP Fax: (16) 633-1144 e.mail: lmzmacie@fmrp.usp.br

RESUMO

A amiodarona é uma droga rica em iodo, amplamente utilizada em cardiologia clínica para o tratamento de arritmias cardíacas. O uso crônico da amiodarona está associado a uma série de efeitos colaterais, destacando-se entre eles alterações na função tireoidiana e no metabolismo dos hormônios tireoidianos, levando a indução de hipotireoidismo ou de tireotoxicose. Diversos mecanismos, incluindo distúrbios na auto-regulação tireoidiana em resposta ao excesso de iodo, fatores imunológicos e a citotoxicidade provocada pela droga, estão envolvidos na gênese da disfunção tireoidiana induzida pela amiodarona. Cerca de 50% dos indivíduos em uso crônico de amiodarona desenvolvem alguma anormalidade na função tireoidiana, o que ressalta a necessidade da monitoração das concentrações séricas dos hormônios tireoidianos e do TSH nestes pacientes.

Descritores: Tireóide; Amiodarona; Tireotoxicose

ABSTRACT

Amiodarone is an iodine-rich drug widely used for the management of cardiac arrhythmias. During long-term amiodarone therapy drug toxicity may occur and a substantial proportion of amiodarone-treated patients develop either hypothyroidism or thyrotoxicosis. Several mechanisms are involved in amiodarone-induced thyroid dysfunction: defective thyroid auto-regulatory mechanism in presence of excessive iodine offer, immunological factors and cytotoxicity. Approximately 50% of patients taking amiodarone present abnormal thyroid function. Therefore, for adequate clinical follow up of these patients, it is critical a careful monitoring of thyroid hormones and TSH, before and during treatment.

Keywords: Thyroid; Amiodarone; Thyrotoxicosis

A AMIODARONA FOI INTRODUZIDA na medicina clínica em meados de 1960 como agente anti-anginoso. Posteriormente, estudos de seus efeitos eletrofisiológicos consagraram seu uso como agente antiarrítmico (1,2), sendo de ampla utilização, especialmente nas arritmias refratárias aos tratamentos ditos convencionais (3). Entretanto, o uso de amiodarona está relacionado a uma série de efeitos colaterais tais como: fotossensibilidade, microdepósitos em córneas, toxicidade pulmonar, hepatotoxicidade, neuropatia periférica, hipotireoidismo e tireotoxicose (4).

O propósito do presente artigo é revisar os efeitos do uso crônico de amiodarona sobre a função tireoidiana, e sugerir uma conduta adequada no diagnóstico e tratamento das disfunções tireoidianas induzidas pela droga.

Farmacologia da Amiodarona

A amiodarona é um derivado diiodinado do benzofuran, com estrutura molecular muito semelhante à dos hormônios tireoidianos, em especial pela presença de dois átomos de iodo (figura 1). O iodo corresponde a cerca de 37% do peso molecular do composto, dos quais 10% é desiodado no organismo para a forma livre. Portanto, cada 200mg de amiodarona contém cerca de 75mg de iodo orgânico (5). Considerando a administração de doses habituais da droga, entre 200 e 600mg/dia, verifica-se uma liberação de 7,5 a 22,5mg de iodo inorgânico/dia (4), o que corresponde a uma carga de iodo muito maior do que a recomendada pela Organização Mundial de Saúde, que é de 150 a 200mg/dia (6,7).


A amiodarona é uma droga altamente lipofílica que possui ampla distribuição tecidual (8), o que ocorre também com seu principal metabólito ativo, a desetilamiodarona. Uma de suas principais características é a sua meia-vida longa, excedendo 100 dias (5). É metabolizada por diferentes vias; entretanto, a dealquilação, que dá origem à desetilamiodarona, é a principal delas. Aproximadamente 66-75% da amiodarona é eliminada pela bile e pelas fezes (9).

Mecanismos de Ação da Amiodarona na Fisiologia Tireoidiana

Ainda que se reconheça que a amiodarona exerce vários efeitos sobre a fisiologia tireoidiana, bem como sobre o metabolismo periférico dos hormônios tireoidianos, seus mecanismos de ação ainda não foram completamente elucidados. Além da evidente sobrecarga de iodo imposta pela droga, estudos demonstraram que a amiodarona inibe a atividade das desiodases, reduzindo a conversão periférica de T4 em T3 (10).

A amiodarona é capaz de inibir a atividade das enzimas 5' iodotironinas desiodases nos tecidos periféricos, especialmente no fígado. A maioria dos indivíduos em uso de amiodarona exibe um aumento nas concentrações séricas de T3 reverso e de T4, que são os principais substratos das desiodases, ao mesmo tempo em que se documenta uma redução do T3 sérico, produto da 5' desiodação do T4 (11). As concentrações séricas de TSH apresentam um aumento transitório no início do uso da droga, enquanto a fração livre do T4 pode estar elevada em um terço dos indivíduos (1).

Adicionalmente, a amiodarona e seus metabólitos exercem um efeito citotóxico direto sobre o tecido tireoidiano. Esta citotoxicidade se mostra independente do efeito tóxico da liberação excessiva de iodo promovida pela droga, e parece ser agravada pelo mesmo (12).

Mecanismos Moleculares

Observa-se que o uso da amiodarona modifica a dinâmica dos hormônios tireoidianos. A inibição da 5' desiodação, a sobrecarga de iodo, a citotoxicidade, e também uma inibição da captação do T3 e do T4 pelos tecidos periféricos promovidos pela droga, explicam, em parte, seus efeitos (4). Entretanto, independente das alterações da função tireoidiana, a amiodarona induz, na célula cardíaca, efeitos semelhantes àqueles produzidos pelo hipotireoidismo: bradicardia, prolongamento do potencial de ação e redução do consumo de oxigênio (6). Estes efeitos não podem ser explicados apenas pelos mecanismos de ação já descritos para a droga. Desta forma, vários estudos foram desenvolvidos no sentido de se verificar possíveis mecanismos pelos quais a amiodarona promoveria um estado celular semelhante ao encontrado no hipotireoidismo. Foi então demonstrada a interferência da amiodarona na ligação do T3 às diferentes isoformas de T3R em diversos tecidos, tais como a hipófise anterior (13), o fígado (14,15) e o miocárdio (16-19), bem como, verificou-se que a amiodarona interfere na expressão de diversos genes dependentes de hormônio tireoidiano, tais como: 1) o do TSH e do hormônio de crescimento na hipófise anterior (20,21), 2) o do receptor de LDL em hepatócitos (22,23), e 3) o da Ca2+-miosina-ATPase (10), da MHC (24) e da SERCA 2 (25) no miocárdio. Adicionalmente, observou-se que estes efeitos da amiodarona eram reversíveis com a administração de hormônio tireoidiano (7).

Distúrbios da Função Tireoidiana Induzidos pela Amiodarona

Embora as alterações evidenciadas nas concentrações séricas dos hormônios tireoidianos atinjam cerca de 50% dos indivíduos em uso crônico de amiodarona, a grande maioria se apresenta clinicamente em eutireoidismo. Curiosamente, entretanto, o uso crônico da droga pode determinar tanto hipotireoidismo como tireotoxicose (26).

O aparecimento de disfunção tireoidiana induzida pela amiodarona tem baixa prevalência e parece estar relacionada a fatores predisponentes que incluem o conteúdo de iodo da dieta, a presença de história pessoal e/ou familiar de doença tireoidiana e a presença de anticorpos anti-tireoidianos previamente ao uso da droga (6). Adicionalmente, parece resultar da falência das adaptações homeostáticas normais à sobrecarga de iodo (9).

O hipertireoidismo pelo uso de amiodarona ocorre com uma freqüência de 1,5 a 9,6%, e parece ser mais comum em áreas deficientes em iodo, enquanto o hipotireoidismo, tem uma incidência variando entre 5 e 32% e é mais freqüente em regiões nas quais a ingestão de iodo parece suficiente. Assim, o hipertireoidismo é mais encontrado na Europa, enquanto o hipotireoidismo é mais freqüente nos Estados Unidos (América) (3).

Não existem dados publicados no Brasil sobre a incidência de disfunções tireoidianas induzidas pela amiodarona. Em uma casuística de 159 pacientes cardiopatas (73M e 84F) em uso crônico de amiodarona em seguimento no ambulatório da Divisão de Cardiologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo - USP, observou-se que em 54,1% dos casos a amiodarona não alterou a função tireoidiana. Entre os 45,9% de pacientes com alguma disfunção tireoidiana, mesmo que subclínica, ficou evidente uma maior prevalência no sexo feminino, tanto de hipotireoidismo como de hipertireoidismo, com uma razão entre os sexos feminino:masculino de 4:1 e 1,6:1, respectivamente. Entretanto, outras variáveis analisadas tais como idade, dose e duração do tratamento com amiodarona e presença de anticorpos anti-peroxidase e anti-tireoglobulina, não se correlacionaram com o aparecimento da disfunção tireoidiana.

Do total de pacientes avaliados, 55 (34,6%) apresentaram testes de função tireoidiana compatível com hipotireoidismo subclínico (43 pacientes, 27% do total de casos estudados) ou declarado (12 pacientes, 7,6% do total de casos estudados). Em 18 pacientes (32,7%) foi firmado o diagnóstico de hipertireoidismo, sendo subclínico em 9 pacientes (5,7% do total de casos estudados) e declarado em outros 9 casos (5,7% do total de casos estudados).

Tireotoxicose Induzida pela Amiodarona

A tireotoxicose induzida pela amiodarona tem fisiopatologia algo mais complexa e ainda não completamente esclarecida. Ocorre mais freqüentemente em homens e em áreas deficientes em iodo, e também não está relacionada com as doses, diária ou acumulada, de amiodarona. Pode acometer o tecido tireoidiano normal ou com anormalidades prévias (6,7).

São descritas duas formas principais de tireotoxicose induzida pela amiodarona, que diferem quanto à etiologia e ao tratamento. A tireotoxicose induzida pela amiodarona, do tipo I, é conseqüência do fenômeno de Jod-Basedow. A sobrecarga de iodo acelera a síntese de hormônios tireoidianos em indivíduos com doença de Graves ou com bócios tóxicos latentes, ou seja, fornece substrato para a síntese hormonal em tecido tireoidiano autônomo. Indivíduos com dieta insuficiente em iodo podem desenvolver o fenômeno de Jod-Basedow, o que explica a maior prevalência de hipertireoidismo induzido pela amiodarona em áreas de deficiência de iodo (26). A tireotoxicose induzida pela amiodarona, do tipo II, ocorre em tecido tireoidiano normal como resultado de um efeito tóxico direto da amiodarona (12) causando uma tireoidite sub-aguda destrutiva com liberação dos hormônios tireoidianos pré-formados para a circulação. (4,7).

Para o diagnóstico diferencial entre as tireotoxicoses dos tipos I e II (tabela 1), a captação de iodo radioativo pode ser de grande valia, uma vez que na do tipo I, o tecido tireoidiano autônomo exibe avidez pelo iodo, e na do tipo II o tecido tireoidiano lesado exibe uma captação de iodo baixa ou até mesmo ausente (26). Adicionalmente, a tireotoxicose induzida pela amiodarona, do tipo II, apresenta um aumento expressivo dos mediadores do processo inflamatório, especialmente de interleucina-6, enquanto que na do tipo I este aumento é apenas moderado ou mesmo ausente (27,28). Finalmente, a ecografia com Doppler da tireóide pode ser útil, uma vez que se apresenta dentro da normalidade ou com hiperfluxo na tireotoxicose induzida pela amiodarona, do tipo I, e um padrão heterogêneo e com sinais de hipofluxo, na do tipo II (28,29). Na prática, o diagnóstico diferencial entre as tireotoxicoses induzidas pela amiodarona, dos tipos I e II, é complexo e formas mistas podem ocorrer quando características das tireotoxicoses dos tipos I e II coexistem (7).

Clinicamente, os sintomas de hipertireoidismo podem estar ausentes devido à ação anti-adrenérgica da amiodarona, e ao seu efeito inibidor da conversão de T4 em T3 (4,11). Devem ser considerados suspeitos de aparecimento de tireotoxicose induzida pela amiodarona, aqueles pacientes que exibirem piora da doença cardíaca de base ou aparecimento ou recorrência de taquicardia ou fibrilação atrial no decorrer do tratamento com droga (7,11).

O tratamento da tireotoxicose induzida por amiodarona constitui um desafio. Nas formas leves da doença, 20% dos casos podem entrar em remissão espontânea (30). Entretanto, na maioria das vezes, o tratamento é necessário levando-se em consideração os efeitos deletérios dos hormônios tireoidianos sobre a doença cardíaca de base destes pacientes.

A identificação dos diferentes tipos de tireotoxicose (tipos I ou II) oferece a base racional para a escolha do tratamento adequado. Na tireotoxicose do tipo I, o objetivo principal é bloquear a organificação do iodeto e a síntese dos hormônios tireoidianos. Uma vez que a tireóide saturada em iodo é mais resistente às tionamidas, doses maiores de metimazol (40-60mg/dia) ou propiltiouracil (PTU), 600-800mg/dia, freqüentemente são necessárias. Por outro lado, deve-se reduzir a entrada de iodo na glândula e depletar seu conteúdo em iodo para melhorar a eficácia terapêutica das tionamidas, o que é conseguido com o uso do perclorato de potássio - 1g/dia (31,32). A limitação para o uso do perclorato de potássio é a sua toxicidade, particularmente agranulocitose (ocorrência de 0,3%) e anemia aplástica, principalmente com doses superiores a 1g/dia, quando a incidência destas complicações aumenta para 16-18%, (33). A interrupção da administração do perclorato de potássio deve ocorrer quando o eutireoidismo for alcançado, geralmente após 6 semanas. Uso do perclorato por períodos curtos (8 dias) resulta em recorrência do hipertireoidismo (34).

A utilização de carbonato de lítio (900 - 1350mg/dia) por 4-6 semanas associado ao PTU tem sido relatada em número pequeno de pacientes (35), mas os resultados deste tratamento requerem confirmação em estudos controlados envolvendo maior número de casos.

Na tiroetoxicose do tipo II, a terapia com tionamidas, com ou sem perclorato de potássio, não é apropriada uma vez que ela corresponde a uma tireoidite destrutiva. Os esteróides são o tratamento de escolha pelos efeitos anti-inflamatórios, adicionados à inibição da atividade da 5´-desiodase que promovem. Os esteróides podem ser empregados em diferentes doses (15-80mg de prednisona ou 3-6mg de dexametasona/dia) (28,36-39), por cerca de 7 a 12 semanas. Recorrência pode ser observada em alguns pacientes após a retirada do corticóide, o que determina sua reinstituição imediata (37,38).

O tratamento com iodo radioativo (13II) geralmente não é possível, principalmente na tireotoxicose do tipo II, devido à captação suprimida ou baixa deste isótopo (40).

A diferenciação entre os tipos de tireotoxicose induzidos pela amiodarona é essencial para o tratamento, entretanto isto nem sempre é possível devido à existência de formas mistas com características dos tipos I e II (7). Sendo assim, a combinação de tionamidas, perclorato de potássio e glicocorticóides é freqüentemente mais efetiva.

Nos pacientes particularmente resistentes a terapia medicamentosa, a tireoidectomia representa uma alternativa necessária (41). Nesta situação, um controle rápido da tireotoxicose antes da cirurgia com ácido iopanóico por poucos dias (11), pode auxiliar, reduzindo, assim, os riscos da cirurgia em um paciente cardiopata.

O tratamento definitivo da doença tireoidiana será necessário na maioria dos casos da tireotoxicose do tipo I, enquanto que a maior parte dos pacientes com tireotoxicose do tipo II permanecerá eutireóidea ou poderá evoluir para hipotireoidismo, seja espontaneamente, seja após re-exposição ao iodo em excesso.

Uma questão importante a ser analisada diz respeito à manutenção ou não da terapia com amiodarona quando ocorre a tireotoxicose. Eaton e cols (30), relataram alguns casos de tireotoxicose nos quais os hormônios tireoideanos, apesar da manutenção da terapêutica com amiodarona, normalizaram-se, independentemente da administração de drogas anti-tireoidianas. A rigor, a suspensão da administração de amiodarona não garante que seu efeito sobre a tireóide seja suspenso, considerando-se que essa medicação apresenta uma longa meia vida no organismo (5). Entretanto, a maioria dos autores recomenda retirar a droga, quando possível, como ocorre em pacientes com arritmias cardíacas que não colocam em risco a vida do paciente (7,42).

Em conclusão, as seguintes recomendações devem ser feitas quando tireotoxicose por amiodarona for suspeitada:

Dosagem de TSH, T4 livre e T3 livre para confirmação da tireotoxicose.

Realizar ultra-som com Doppler da tireóide para tentar diferenciar a tireotoxicose dos tipos I e II (a dosagem da interleucina-6 poder ser útil em algumas situações).

Suspender a utilização da amiodarona sempre que possível.

Tratar a tireotoxicose do tipo I com tionamidas e perclorato de potássio, a tireotoxicose do tipo II com glicorticóides e as formas mistas com a terapia combinada.

Quando o paciente for refratário à terapia medicamentosa, submetê-lo a tireodectomia total precedida de curto período de tratamento com ácido iopanóico.

Uma vez que a contaminação iódica tiver sido resolvida, submeter o paciente com a tireotoxicose do tipo I à terapia com radioiodo, se a captação for adequada, ou à tireoidectomia.

Seguir o paciente com a tireotoxicose do tipo II, periodicamente, devido à possível ocorrência de hipotireoidismo.

Hipotireoidismo Induzido pela Amiodarona

O hipotireoidismo induzido pela amiodarona tem aparecimento mais precoce que o hipertireoidismo, e é muito mais freqüente em indivíduos que apresentam anticorpos anti-tireoidianos previamente ao início do uso da droga. Em indivíduos portadores de tireoidite de Hashimoto, a amiodarona pode alterar a história natural da doença e levar, mais precocemente, ao hipotireoidismo. Entretanto, foi demonstrado que a amiodarona não é responsável pelo aparecimento destes auto-anticorpos (43,44).

O risco para o desenvolvimento de hipotireoidismo é independente das doses diárias ou acumuladas de amiodarona, mas está fortemente relacionado à idade avançada, ao sexo feminino e à presença de doença tireoidiana auto-imune (26). A mais provável explicação para o desenvolvimento desta condição clínica seria uma incapacidade da tireóide em superar o efeito inibitório agudo (ou bloqueio adaptativo) que a sobrecarga de iodo proveniente da metabolização da droga exerce sobre a síntese e a liberação dos hormônios tireoidianos (efeito Wolff-Chaikoff), impedindo que a glândula reassuma uma síntese hormonal normal. Outro mecanismo patogênico parece estar relacionado ao dano celular induzido pelo excesso de iodo no folículo tireoidiano, que estaria se somando aos danos celulares promovidos pela presença prévia de auto-anticorpos (7).

As manifestações clínicas do hipotireoidismo induzido pela amiodarona não diferem daquelas encontradas nos pacientes portadores de hipotireoidismo de causas diversas (11). É interessante observar que os indivíduos em uso crônico de amiodarona são portadores de cardiopatia, e muitas vezes os sintomas de disfunção tireoidiana são atribuídos à patologia cardíaca.

O tratamento do hipotireodismo induzido pela amiodarona não apresenta a complexidade que caracteriza a tireotoxicose induzida pela droga.

Caso a amiodarona seja necessária para o tratamento da doença cardíaca, ela deverá ser mantida em associação com a reposição de L-T4. A concentração sérica de TSH será o parâmetro mais importante para monitorar a terapia, sendo aconselhável mantê-la no limite superior da normalidade, principalmente em pacientes cardiopatas graves.

Se houver possibilidade de descontinuação da droga, a remissão do hipotireoidismo poderá ocorrer particularmente em pacientes sem anormalidades tireoidianas, enquanto que esta evolução é menos provável em pacientes com tireoidite de Hashimoto (45).

Com o intuito de reduzir o tempo de manifestação do hipotireoidismo (46) recomenda-se um tratamento por curto período (10-30 dias), com perclorato de potássio (1g/dia). A base racional deste tratamento se deve à capacidade do perclorato de potássio de inibir a captação de iodo e, conseqüentemente, bloquear a entrada de iodo na glândula e, deste modo, diminuir o efeito inibitório do excesso do iodo intra-tireoidiano.

Recebido em 28/10/02

Revisado em 06/08/03

Aceito em 25/09/03

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Maio 2004
    • Data do Fascículo
      Fev 2004

    Histórico

    • Recebido
      28 Out 2002
    • Revisado
      06 Ago 2003
    • Aceito
      25 Set 2003
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