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Calorias são calorias?

EDITORIAL

Calorias são calorias?

Luiz Cesar Póvoa

Sócio Honorário da SBEM, Professor Titular de Endocrinologia da PUC/UFRJ, Diretor de Ensino e Pesquisa do IEDE, Membro Titular da Academia Nacional de Medicina

Endereço para correspondência Endereço para Correspondência Luiz Cesar Póvoa Rua Visconde Silva, 52 22281-090 Rio de Janeiro, RJ

HÁ CERCA DE 4 DÉCADAS, a mídia começou a trazer a público milagres sobre "dietas sadias". Coincidentemente, ou talvez por causa desta coincidência, deu-se um enorme aumento na incidência de obesidade e suas co-morbidades. Nesta época, aparece o livro de Teller com o título "Calorias não engordam", pioneiro no campo da literatura leiga acerca das dietas hipoglicídicas.

No entanto, o primeiro livro escrito sobre as mesmas foi em 1863 por William Banting (1796-1878), marceneiro de renome, que publicou um opúsculo com a dieta que fazia, criando, assim, a "dieta de Banting"; são quase 150 anos de observação que permitiu, de certa forma, uma avaliação epidemiológica, tendo, inclusive, criado, na língua inglesa, o verbo to bant, sinônimo de emagrecer, muito utilizado no princípio do século passado. Aos 30 anos, tendo começado a engordar, fez exercícios, dietas com comidas leves, spas em Seamington, Cheltenham e Harrogale, além de banhos turcos que o levavam à exaustão. Aos 66 anos, pesando mais de 100kg e medindo cerca de 165cm, escreveu que não podia amarrar os sapatos, falar lhe cansava, doíam-lhe as juntas, descia escadas com dificuldade e achava estar ficando surdo. Em agosto de 1862, procurou o otorrinolaringologista famoso, Dr. William Harvey, que, recém chegado de Paris, havia ouvido uma conferência de Claude Bernard que atribuía ao fígado a secreção de uma substância açúcar-símile que, eventualmente, poderia ser nociva e aumentava o peso das pessoas. Quando Dr. Harvey examinou Banting, associou a surdez à obesidade e deu-lhe uma dieta com restrição de bolos, tortas, doces e açúcar, tão em moda na época. Tal orientação fez com que Banting, ao Natal, pesasse 80kg e, após um ano, chegou aos 60kg. Tendo perdido cerca de 40kg (quase 1kg por semana) e a cintura diminuindo em cerca de 36cm, sentia-se magnificamente bem, melhorando de todas as queixas, inclusive da surdez, e ficou tão feliz que amealhou, junto à família e amigos, 5000 libras esterlinas, iniciando um fundo para manutenção do Middlesex County Convalescente Hospital, priorizando o estudo da Nutrição. Como era de se esperar, seus livros e folhetos sobre a "Banting diet" passaram a ser ridicularizados e distorcidos.

Dr. Harvey, fellow do Royal College of Surgeons, passou a ter problemas com os colegas, problemas estes, ao nosso ver, existentes até hoje, pois é um tratamento que apresenta resultados, porém faltam elementos convincentes para explicá-los. Programas com pequenas alterações, modificando o conteúdo de gorduras, foram feitos pelos Dr. Felix Niemeyer (Stutgart), Dr. Yan Freden (Upsalla) e Dra. Helen Denswore (USA), tendo resultados semelhantes.

Em 1906, um fato histórico contribuiu para a avaliação da dieta. Um antropólogo de Harvard, Stefanssen, famoso por ter cruzado o Ártico sozinho por ter se perdido de uma expedição, viveu com os esquimós durante o inverno e se alimentou de carne e peixe durante todo o período. Voltou anos após com outro antropólogo, Dr. Anderson, para um trabalho do Museu Americano de História Natural, e ficaram 4 anos vivendo com o padrão alimentar dos esquimós, nada sentindo. Em 1928, internaram-se no Bellevue Hospital de New York, para um estudo clínico controlado orientado pelo Dr. Eugene Dubois, médico chefe e professor da Cornell, com 5 perguntas a serem respondidas:

1.A retirada dos vegetais causa escorbuto ?

2.Dieta somente de carnes causa doenças por deficiência?

3.Haverá deficiência de minerais e de cálcio em particular?

4.Haverá efeitos deletérios em coração, vasos e rins ?

5.Haverá crescimento de bactérias patológicas no intestino ?

Os resultados do estudo de um ano foram publicados no Journal of Biological Chemistry com a seguinte resposta para os 5 itens – Não.

Em 1933, um estudo clínico feito na Royal Infirmary, em Edimburgo, mostrou que, com dietas de 800 a 2700Kcal, observa-se que a perda de peso diária era a seguinte:

a) € Carboidratos / Gorduras Ø - 49g

b) € Carboidratos / Proteínas Ø - 122g

c) Ø Carboidratos / Proteínas € - 183g

d) Ø Carboidratos / Gorduras € - 205g

Isto permitiu que os autores afirmassem que as perdas são inversamente proporcionais ao conteúdo de carbohidratos na alimentação (Lyon e Dunlop).

Em 1955, Albert Pennington (USA) reafirmava que a perda de peso parecia ser inversamente proporcional a ingesta de material glicogênico. Em outras palavras, quanto mais a alimentação aumentasse a produção de insulina, menor era a perda. Concluía, o autor, que a dieta recomendada é caloricamente irrestrita com o baixo teor de carboidratos, alto em gordura e moderado em proteínas.

Pouco após, os Drs. Alan Kexwick e Gaston Pawan, em uma observação no Middlesex Hospital em Londres, demonstraram resultados semelhantes em estudos controlados.

Apesar das evidências, em sua grande parte cientificamente corretas até então, foi o Dr. John Yudkin, professor de Nutrição e Dietética do Queen Elizabeth Hospital, da Universidade de Londres, que, confirmando os estudos, afirmou que uma dieta com teor ilimitado de gorduras e proteínas, porém com pouco ou nenhum carboidrato, era mais efetiva na perda de peso, até mesmo com a ingestão de 2.600 calorias, do que uma dieta hipocolórica clássica.

No ano 2000, 51 indivíduos foram avaliados por 6 meses em Durham, Carolina do Norte, tendo com este tipo de dieta perdido 10% do peso, e o colesterol baixado, em média, 10,5mg; 20 indivíduos que continuaram com a dieta perderam cerca de 11% do peso e o colesterol diminuiu, em média, 14mg.

William Banting foi, sem dúvida, o pai da dieta hipoglicídica, e a maioria dos dados históricos aqui citados foi retirada de uma monografia premiada com o Sophie Coe Prize 2002, no Simpósio Oxford de História da Alimentação, patrocinado por esta Universidade.

Continuo, no entanto, a ressaltar o papel de John Yudkin (1911-1995), que, tornando-se diabetologista, foi participante do UKPDS e manteve seus pontos de vista exteriozados em centenas de trabalhos e nos 12 livros que publicou.

O Centro de Nutrição de Populações Indígenas chama-nos a atenção para a tribo dos Massai, nômades que vivem nos atuais territórios do Quênia e Tanzânia, e somente alimentam-se de carne e leite e são muito altos e magros.

Também o Dr. Farid Alakbarov fez um estudo, Nutrition for Longevity, onde analisa a dieta da população do Azerbaijão, baseada em kebabs (carneiro, peixe ou galinha), com poucos vegetais e rica em laticínios. No censo de 1981, haviam 48,3 habitantes com 100 anos ou mais para cada 100.000, hoje certamente este número é maior, sendo a maior relação de centenários no mundo. Ao comentar este estudo, o Prof. Yudkin diz "no fat, but sugar leads to coronary heart disease". Após "Calorias não engordam", inúmeros outros livros populares foram editados, entre os quais poderíamos citar "Dieta Específica de Carboidratos", "Dieta da Idade da Pedra", "Poder da Proteína", "Dieta dos Astronautas", "Dieta dos Esquimós", "Vivendo sem Pão", "Coma Gorduras e Fique Magro" e, certamente tendo omitido muitas, chegamos à dieta do Dr. Atkins, que, consolidada em um programa mercadológico fantástico, tornou-se um "best seller" em suas diversas apresentações.

Talvez este sucesso não acadêmico tenha afastado as Universidades, por temor de terem seus resultados utilizados indevidamente. Foi, no entanto, ao nosso ver, uma omissão criticável.

Somente em 2003, as Academias se manifestaram de forma definida no New England Jornal of Medicine. Cary Foster e cols. fizeram um estudo randomizado em 63 pacientes que, fazendo uso da dieta hipoglicídica ou hipocalórica, concluíram que, nos primeiros 6 meses, a dieta hipoglicídica produziu uma perda de peso 4% maior que a hipocalórica clássica, não repetindo tal diferença em um ano. No entanto, chamou atenção o fato da dieta hipoglicídica ter corrigido melhor os fatores de risco cardiovascular.

No mesmo número, Samaha e cols. compararam a dieta hipoglicídica com a dieta hipolipídica em grandes obesos (IMC 43), com 39% de diabéticos, num total de 32 pacientes, e concluíram que, durante 6 meses, os pacientes emagreceram mais quando tinham redução de carboidratos do que com redução de lipídeos. Houve melhora na sensibilidade à insulina e dos níveis de triglicerídeos.

Neste mesmo ano, Bravata e cols. publicaram um artigo de revisão no JAMA sobre a eficácia e segurança das dietas hipoglicídicas, tendo analisado todos os estudos publicados em inglês no período de 01/01/1966 até 15/02/2003. Reviram 2.609 artigos e analisaram dados de 3.268 pacientes, concluindo que não existem evidências suficientes para recomendar ou combater este tipo de dieta, cujo resultado depende, em seu ponto de vista, do teor de calorias, ou seja, emagrecem os que comerem menos calorias.

Apesar dos números apresentados, este trabalho é retrospectivo e, como tal, com as interpretações subjetivas que este tipo de desenho permite.

No mesmo número, George Bray escreve um artigo com o título "Dietas hipoglicídicas – Realidades sobre a perda de peso", chamando atenção para os diversos pontos entre os quais destaca o seguinte: dois tipos de tratamento são indicado para obesidade – os cognitivos e os não cognitivos. Os cognitivos, tais como mudança de estilo de vida, dieta e exercícios, são fundamentais para a manutenção da perda de peso. Os não cognitivos incluem drogas, cirurgia e modificações ambientais, e não podem ser analisados isoladamente.

Esta pequena revisão, que não teve pretensões de ser um trabalho científico, mas nos adverte do perigo dos prejulgamentos, pois estamos em um momento em que precisamos de dados e não de novas opiniões sobre os pontos obscuros desta dieta que, sem dúvida, apresenta excelentes resultados em alguns pacientes, sendo ferramenta auxiliar importante para quem trata de obesidade - doença complexa, multifacetada e poligênica, onde não existe uma dieta ideal, permite-nos até mesmo especular se uma caloria é sempre uma caloria.

  • Endereço para Correspondência
    Luiz Cesar Póvoa
    Rua Visconde Silva, 52
    22281-090 Rio de Janeiro, RJ
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Jul 2004
    • Data do Fascículo
      Abr 2004
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