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Revendo os estigmas tiroidianos na Síndrome de Turner

EDITORIAL

Revendo os estigmas tiroidianos na Síndrome de Turner

Magnus R. Dias da Silva

Professor Adjunto, Departamento de Bioquímica, Universidade Federal de São Paulo-SP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Magnus R. Dias da Silva Departamento de Bioquímica - INFAR Universidade Federal de São Paulo Rua Três de Maio, 100 04044-020 São Paulo, SP E-mail: magnus.bioq@epm.br

AS RAZÕES GENÉTICAS PELAS quais tantas pacientes com Síndrome de Turner (ST) sofrem de disfunção tiroidiana autoimune permanecem desconhecidas. O trabalho de Medeiros et al (1), neste fascículo, apontam para a correlação do discutível papel da ultra-sonografia (USG) de tiróide no diagnóstico e seguimento destes casos (estudados retrospectivamente) apesar da clara deficiência deste método de imagem para avaliar função tiroidiana.

É imensamente curiosa a observação sugerida pelos autores de que a USG de tiróide foi o método mais sensível para detecção de disfunção tiroidiana na faixa etária pediátrica, correlacionando-se em especial com o achado de tiromegalia em 21/24 das pacientes estudadas. Os métodos de imagem não acrescentam na avaliação de função, exceto no nódulo com suspeita de hiperfunção. Vejo esta sugestão com bastante cautela e reitero a opinião de que assumir mais um estigma laboratorial tiroidiano ainda é muito cedo e inconsistente com os achados recentes da literatura médica.

Pacientes com Síndrome de Turner apresentam incidência de disfunção tiroidiana, em especial a tiroidite de Hashimoto, maior do que a classicamente conhecida entre mulheres adultas (2). É importante ressaltar que outras cromossomopatias também apresentam maior propensão à disfunção autoimune de tiróide, como a Síndrome de Down.

Não é também incomum outras doenças autoimunes associadas à cromossomopatia, tais como a artrite reumatóide, vitiligo, doença celíaca, diabetes, miastenia e hepatite (3). Em elegante estudo longitudinal, El-Mansoury et al (4). avaliaram 91 pacientes com ST comparadas com 228 mulheres aleatoriamente selecionadas da população normal e pareadas para idade e demonstraram uma constatação comum entre os mais diversos ambulatórios especializados do mundo, o de que 37% das portadoras da ST evoluíram com hipotiroidismo ao cabo de 5 anos. Surpreendentemente o estudo sueco não encontrou correlação dos achados de autoimunidade entre familiares de 1º grau dos indivíduos com ST com o hipotiroidismo diagnosticado. Esta observação reflete o quanto estamos distante de entender as causas genéticas possivelmente envolvidas.

A monossomia 45X e/ou suas variantes mosaicas pode exercer um efeito permissivo à autoimunidade, embora essa hipótese ainda não esteja seguramente demonstrada cientificamente. Apesar desta predisposição às disfunções autoimunes clinicamente conhecida por todos nós, outros fatores de herança genética autossômica devem contribuir para a deflagração da doença. Ao contrário do que ocorre na situação de haploinsuficiência do gene SHOX (short stature homeobox), que pode explicar a maioria das desproporções ósseas, ou ainda, quando da associação da monossomia clássica 45X com a doença cardíaca congênita e a deficiência auditiva encontradas na ST (5). O estudo sueco não encontrou correlação entre a percentagem de células com cariótipo 45X determinado por FISH e o número de casos com disfunção tiroidiana. Além disso, valores positivos elevados de anticorpo anti-peroxidase tiroidiana (TPO) estavam igualmente distribuídos entre grupos de diversas variantes cariotípicas (4). Infelizmente os aspectos genéticos de estratificação dos grupos em cariótipos não foram abordados no trabalho de Medeiros et al.

Portanto, o risco de desenvolvimento de doença tiroidiana parece ser uma evolução esperada para todas as pacientes com ST independentemente do cariótipo. A medida dos anticorpos anti-tiróide poderia sinalizar antecipadamente o futuro aparecimento da disfunção, no entanto eles frequentemente surgem mais tardiamente na adolescente. Na vida adulta, a presença de auto-anticorpos é observada em até 50% das pacientes com ST.

Um outro aspecto laboratorial importante e desafiador é identificar os níveis séricos de T4L nestas pacientes. Frequentemente nos deparamos com a instigante variabilidade dos valores normais de T4L na criança. Muitos fatores contribuem para esta variabilidade (intra-ensaio, anticorpos, etc), mas a influência da dinâmica do eixo somatotrófico em maturação possivelmente desempenha um papel relevante. Resta-nos como expoente inquestionável para avaliação das disfunções tiroidianas, quer seja clínica ou subclínica, a medida do TSH por técnica ultra-sensível em laboratório confiável. Não apenas o kit de TSH ultra-sensível utilizado, mas também a curva do ensaio, condicionamento e processamento da amostra por um técnico experiente são variáveis que devem ser levadas em consideração. Causou-me estranheza (tiroidológica) os achados de Medeiros et al. (1) quando dividem as pacientes em seis subgrupos. Partilho com o leitor desta revista que aquelas do grupo TSH normal com hormônios tiroidianos (HT) elevados, TSH normal com HT diminuídos, TSH pouco elevado com HT elevados e, TSH diminuído com HT diminuídos precisam ser reconduzidos para outros diagnósticos diferenciais, se tiver sido assegurado a qualidade do método e da dosagem do TSH utilizado.

É consenso mundial de que a medida do TSH é a medida laboratorial mais importante. Inclusive, só podemos falar em doença tiroidiana subclínica quando o TSH é de altíssima sensibilidade (6). A mais recente revisão publicada pela vertente endocrinológica da Nature Clinical Practice reitera a necessidade da avaliação tiroidiana basal por ocasião do diagnóstico de ST com TSH, T4L e TPO, seguida de reavaliações anuais da função (TSH e T4L) e a cada 3-5 anos nova dosagem de auto-anticorpos (TPO) (3). Não há necessidade de USG nem cintilografia tiroidiana.

Gostaria de reforçar a importância dos aspectos propedêuticos alertados pelo trabalho de Medeiros et al, incentivando a continuidade do estudo a ser feito da próxima vez de forma prospectiva e sob a égide dos guidelines especificos, assim como, provocar cientificamente outros centros no Brasil sabidamente com grande casuística para relatarem as suas mais diversas experiências clínicas e laboratoriais na condução da ST.

REFERÊNCIAS

1. Medeiros CCM, Lemos-Marini SHV, Filho MB, Camargo EE, Santos AO, Magna LA, et al. Evidências de doença tireóidea auto-imune crônica subclínica em portadoras da síndrome de Turner. Arq Bras Endocrinol Metab 2007;51:401-409.

2. Fleming S, Cowell C, Bailey J, Burrow GN. Hashimoto’s disease in Turner’s syndrome. Clin Invest Med 1988;11:243-6.

3. Gravholt CH. Clinical practice in Turner syndrome. Nat Clin Pract Endocrinol Metab 2005;1:41-52.

4. El-Mansoury M, Bryman I, Berntorp K, Hanson C, Wilhelmsen L, Landin-Wilhelmsen K. Hypothyroidism is common in Turner syndrome: results of a five-year follow-up. J Clin Endocrinol Metab 2005;90:2131-5.

5. El-Mansoury M, Barrenas ML, Bryman I, Hanson C, Larsson C, Wilhelmsen L, et al. Chromosomal mosaicism mitigates stigmata and cardiovascular risk factors in Turner syndrome. Clin Endocrinol (Oxf) 2007; Mar 23 (epub ahead of print).

6. Surks MI, Ortiz E, Daniels GH, Sawin CT, Col NF, Cobin RH, et al. Subclinical thyroid disease: scientific review and guidelines for diagnosis and management. JAMA 2004; 291:228-38.

  • Endereço para correspondência:
    Magnus R. Dias da Silva
    Departamento de Bioquímica - INFAR
    Universidade Federal de São Paulo
    Rua Três de Maio, 100
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Maio 2007
    • Data do Fascículo
      Abr 2007
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