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Presença de animais associada ao risco de transmissão da leishmaniose visceral em humanos em Belo Horizonte, Minas Gerais

Animal presence and the risk for transmission of visceral leishmaniasis in Belo Horizonte, Brazil

Resumos

Analisou-se o risco de se contrair leishmaniose visceral (LV) e a presença de animais em residências de Belo Horizonte/MG, em 2006. O estudo de caso-controle foi feito por meio de visitas domiciliares, aplicação de questionário e registro de imagens da residência. A estimativa de risco foi mensurada por comparação de condições de moradia entre dois grupos: 1- constituído por 82 casos humanos de LV ocorridos em 2004 e 2- 164 controles (vizinhos dos casos). Os domicílios pertencentes ao grupo 1 foram os que apresentaram os maiores percentuais de presença de animais. Observou-se, pela análise univariada, que a presença de patos, roedores, pássaros e galinhas aumenta o risco de ocorrer LV em 4,18; 1,81; 1,57; e 1,47 vezes, respectivamente. Para os proprietários de cães, o aumento no risco de contrair LV é equivalente a 2,17 vezes e está relacionado ao número de cães no domicílio. O risco de contrair LV é maior 1,87 vezes para moradores com um cão e 3,36 vezes para moradores com dois cães, quando comparados a pessoas que não possuem esses animais.

leishmaniose visceral; fator de risco


This study evaluated the animal presence in dwellings and the risk for transmission of visceral leishmaniasis (VL) in Belo Horizonte, Brazil, 2006. A case-control study was conducted by means of dwelling visits, direct interviews, and image register in the houses. The risk estimates were produced comparing the dwelling condition between two groups: 1) 82 human cases of VL recorded in 2004; and 2) 164 controls (neighbors of the first). The cases presented a higher proportion in the animal presence compared to controls. Using an unconditional logistic regression, it was selected the presence of ducks with an OR of 4.18 (CI 95% - 0.74 to 23.32); rodents with an OR of 1.81 (CI 95% - 0.96 to 3.39); birds with an OR of 1.56 (CI 95% - 0.90 to 2.69), and chicken with an OR of 1.47 (CI 95% - 0.74 to 2.90). The owners of dogs were 2.17 more likely to have VL than those who did not have dogs, and this estimate increased with the number of dogs in the house. For those who had only one dog, the OR was 1.87, while for those who owned two dogs at home, the OR increased to 3.36; when compared to people who did not own those animals.

visceral leishmaniasis; risk factors


MEDICINA VETERINÁRIA

Presença de animais associada ao risco de transmissão da leishmaniose visceral em humanos em Belo Horizonte, Minas Gerais

Animal presence and the risk for transmission of visceral leishmaniasis in Belo Horizonte, Brazil

B.K.A. BorgesI; J.A. SilvaII,* * Autor para correspondência (corresponding author) E-mail: jasilva@vet.ufmg.br ; J.P.A. HaddadII; E.C. MoreiraII; D.F. MagalhãesII; L.M.L. RibeiroI; V.O.P. FiúzaIII

IAluna de pós-graduação – EV-UFMG – Belo Horizonte, MG

IIEscola de Veterinária – UFMG Caixa Postal 567 30123-970 – Belo Horizonte, MG

IIIGerência de Controle de Zoonoses - PBH – Belo Horizonte, MG

RESUMO

Analisou-se o risco de se contrair leishmaniose visceral (LV) e a presença de animais em residências de Belo Horizonte/MG, em 2006. O estudo de caso-controle foi feito por meio de visitas domiciliares, aplicação de questionário e registro de imagens da residência. A estimativa de risco foi mensurada por comparação de condições de moradia entre dois grupos: 1- constituído por 82 casos humanos de LV ocorridos em 2004 e 2- 164 controles (vizinhos dos casos). Os domicílios pertencentes ao grupo 1 foram os que apresentaram os maiores percentuais de presença de animais. Observou-se, pela análise univariada, que a presença de patos, roedores, pássaros e galinhas aumenta o risco de ocorrer LV em 4,18; 1,81; 1,57; e 1,47 vezes, respectivamente. Para os proprietários de cães, o aumento no risco de contrair LV é equivalente a 2,17 vezes e está relacionado ao número de cães no domicílio. O risco de contrair LV é maior 1,87 vezes para moradores com um cão e 3,36 vezes para moradores com dois cães, quando comparados a pessoas que não possuem esses animais.

Palavras-chave: leishmaniose visceral, fator de risco

ABSTRACT

This study evaluated the animal presence in dwellings and the risk for transmission of visceral leishmaniasis (VL) in Belo Horizonte, Brazil, 2006. A case-control study was conducted by means of dwelling visits, direct interviews, and image register in the houses. The risk estimates were produced comparing the dwelling condition between two groups: 1) 82 human cases of VL recorded in 2004; and 2) 164 controls (neighbors of the first). The cases presented a higher proportion in the animal presence compared to controls. Using an unconditional logistic regression, it was selected the presence of ducks with an OR of 4.18 (CI 95% - 0.74 to 23.32); rodents with an OR of 1.81 (CI 95% - 0.96 to 3.39); birds with an OR of 1.56 (CI 95% - 0.90 to 2.69), and chicken with an OR of 1.47 (CI 95% - 0.74 to 2.90). The owners of dogs were 2.17 more likely to have VL than those who did not have dogs, and this estimate increased with the number of dogs in the house. For those who had only one dog, the OR was 1.87, while for those who owned two dogs at home, the OR increased to 3.36; when compared to people who did not own those animals.

Keywords: visceral leishmaniasis, risk factors

INTRODUÇÃO

Nas Américas, a leishmaniose visceral (LV) é encontrada desde os Estados Unidos até o norte da Argentina. Casos em humanos concentram-se na América latina, ocorrendo desde o México até a Argentina. No Brasil, a doença se tornou endêmica e de grande importância para a saúde pública, já que ocorrem surtos com certa frequência (Monteiro et al., 1994).

A epidemiologia da LV vem se alterando através do tempo. Inicialmente, a doença possuía um perfil rural, de transmissão peridomiciliar, e, por serem as crianças as mais acometidas, foi denominada "calazar infantil". A urbanização da LV parece ter ocorrido devido a mudança de comportamento do vetor, em consequência das modificações socioambientais, tais como o desmatamento e o processo migratório. O desmatamento reduziu a disponibilidade de animais que eram fonte de alimentação para o díptero transmissor Lutzomyia longipalpis, assim, o cão e o homem aparecem como as alternativas mais acessíveis, e o processo migratório trouxe para a periferia das cidades populações humana e canina originárias de áreas rurais onde a doença era endêmica (Barata et al., 2005).

A prevalência da LV em cães, seu principal reservatório doméstico, é significativa, com ocorrência de casos assintomáticos ou oligossintomáticos, o que dificulta, muitas vezes, o cumprimento das normas do Ministério da Saúde, que preconiza o recolhimento e a eutanásia dos animais soropositivos (Badaró e Duarte, 1996; Genaro, 2000).

Em Belo Horizonte, a LV tem mantido um caráter endêmico desde a notificação, em 1994, do primeiro caso da doença no homem. A Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) tem desenvolvido ações de controle da LV, tais como, rápido diagnóstico e tratamento das pessoas doentes, inquérito sorológico em cães e recolhimento para eutanásia dos soropositivos, controles entomológicos por meio da borrifação de domicílios (com histórico de casos humanos e caninos da LV ou que estejam próximos a residências com tais ocorrências). Além disso, tem promovido o incentivo à pesquisa e a programas de educação em saúde, no sentido de expandir o conhecimento não só no âmbito acadêmico-científico, mas também em caráter popular. Porém, tais ações ainda não minimizaram o número de casos humanos e caninos na cidade. Historicamente, em Belo Horizonte, as taxas de letalidade da população humana chegaram a atingir média de 13% no período de 1994-2004 (Borges, 2006; Leishmaniose..., 2006).

O conhecimento mais apurado das associações entre doença e seus fatores determinantes tem auxiliado no direcionamento e na priorização de estratégias no controle de muitas enfermidades. No caso da LV, os fatores de risco podem estar associados ao vetor, aos hospedeiros potenciais e ao meio ambiente, em um sinergismo urbano complexo (Rego, 2001).

Diversos fatores de risco para a LV já foram apontados pela literatura, porém as lacunas a serem preenchidas estão na ausência de pesquisas que procurem identificar de forma específica situações e atitudes de risco no município de Belo Horizonte, acrescida da quantificação do peso de cada condição, isolada ou em conjunto, responsável pela franca expansão da doença na cidade. O objetivo deste estudo é analisar situações e atitudes de risco praticadas por moradores de Belo Horizonte/MG e associá-las aos casos de LV.

MATERIAL E MÉTODOS

Realizou-se um estudo longitudinal caso-controle retrospectivo, no município de Belo Horizonte, que está localizado na zona metalúrgica de Minas Gerais, entre os meridianos 43° e 45°. Possui uma área de 335,5Km2, altitude de 858m e clima predominantemente tropical. Seu índice de precipitação pluvial é de 200mm anuais, com a concentração de chuvas no período de novembro a março (80-85%), e temperatura média anual de 20,5° com pequena variação de estações (Brasil, 2006).

O estudo foi realizado em Belo Horizonte, devido à rápida expansão da LV na cidade, e teve a colaboração da Secretaria Municipal de Saúde da Prefeitura de Belo Horizonte (SMSA-PBH) por meio de recursos humanos e apoio logístico, além da disponibilidade de dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) referentes aos casos de LV em humanos ocorridos em 2004 no município.

A população de Belo Horizonte está estimada em 2.420.000 habitantes, distribuídos em 612.838 imóveis (Brasil, 2000; Belo Horizonte, 2005). Com relação à população canina, estima-se que existam na cidade 270.677 cães (Belo Horizonte, 2000), o que perfaz uma relação de 0,44 cão por imóvel e uma razão de um animal para 8,24 habitantes.

Administrativamente, Belo Horizonte encontra-se dividida em nove regionais, tendo estas autonomia financeira e gerencial segundo a PBH. O estudo englobou todas as regionais em sua amostra.

O estudo foi realizado em duas etapas: levantamento dos dados de campo e análise dos dados, executadas entre os meses de janeiro a setembro de 2006. Antes do início do trabalho de campo, fez-se um estudo piloto para teste do questionário com 20 moradores (que não fizeram parte da amostra do trabalho), para que fossem observadas variáveis como tempo de entrevista e forma adequada de abranger o assunto.

No universo de 144 casos humanos de LV registrados em 2004 pela SMSA-PBH, estimou-se uma amostra de mínimo equivalente a 76 casos para que se tivesse 95% de intervalo de confiança. Considerando-se a possibilidade de perdas de dados em caso de conhecimento insuficiente por parte do entrevistado, planejou-se uma amostra de 80 casos e 160 controles, totalizando, assim, 240 domicílios. O cálculo da amostragem foi feito utilizando-se o software Epi-info versão 6.0, com intervalo de confiança (IC) superior a 95% para a amostra proposta. A amostra final ultrapassou o esperado, totalizando 246 domicílios visitados, aumentando o IC para próximo de 99%.

Para o trabalho de campo, utilizou-se equipe composta por, no mínimo, dois entrevistadores (sendo um deles responsável pela pesquisa) treinados para coleta de sangue e preenchimento do questionário.

Antes da entrevista, a cada morador era apresentado um Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE), no qual estavam descritos os objetivos da pesquisa, a liberdade para realização de perguntas durante a visita e o compromisso dos pesquisadores para com o anonimato dos entrevistados. O TCLE era lido pelos entrevistadores somente quando os moradores declararam incapazes de realizar tal leitura. A execução do inquérito epidemiológico ocorreu em todos os domicílios em que houve concordância por escrito do morador, sendo este maior de 18 anos. Em situações de recusa ou de domicílio fechado, houve substituição do caso a ser pesquisado por outro da lista do SINAN. Em se tratando dos domicílios-controles, a substituição foi pela unidade domiciliar seguinte.

Foram coletadas amostras de sangue em todos os cães encontrados nos domicílios no momento da entrevista domiciliar, perfazendo um total de 128 amostras provenientes de 106 residências. O sangue foi coletado, por punção na extremidade de uma das orelhas do cão, com o uso de lanceta metálica descartável e com impressão em papel filtro qualitativo 80g. As amostras, após secagem, foram armazenadas sob refrigeração (4°C) até a realização das análises sorológicas ELISA (enzyme linked immunosorbent assay) e RIFI (reação de imunofluorescência indireta). Os procedimentos para execução das técnicas sorológicas foram feitos de acordo com as orientações (bulas) que acompanham o kit para diagnóstico de Calazar Canino ELISA1 1 Laboratório Bio-Manguinhos - Fundação Oswaldo Cruz – Rio de Janeiro, Brasil. e o kit de reagentes RIFI - Leishmaniose visceral canina2 2 Laboratório Biogene Indústria e Comércio Ltda. – Recife, Brasil. .

As informações coletadas durante as visitas domiciliares e as do banco do SINAN foram codificadas e armazenadas utilizando-se o programa Stata versão 8.0 (Stata..., 1999).

Para o ajuste do modelo logístico final, utilizaram-se as análises estatísticas descritiva, univariada com ponto de corte p-valor equivalente a 0,20 e multivariada no nível de significância de 0,05 (Schlesselman, 1982; Medronho et al., 2004).

O estudo foi realizado de acordo com as diretrizes e normas que regem as pesquisas envolvendo seres humanos (Resolução 196/1996 do Conselho Nacional de Saúde) e foi aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais e da PBH.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Foram visitados 246 domicílios distribuídos nas nove Regionais Administrativas de Belo Horizonte, nos quais não se verificou recusa por parte dos entrevistados em preencher o questionário e permitir o registro de imagens dos domicílios.

A idade média dos entrevistados foi de 36,7 anos, e não houve diferença significativa entre gêneros.

Foi constatada a presença de cães no peridomicílio de 64,6% das residências dos casos, tanto no momento da entrevista como quando do diagnóstico da LV. Dessas residências, 39% tinham um cão, 18,3% tinham dois cães e 42,7% não possuíam cães. No grupo-controle, 43,91% tinham cães em casa, sendo que, desses, 33,5% tinham um cão e 6,7% tinham dois cães.

Em relação à idade dos cães, verificou-se, nos domicílios dos casos, maior número de cães com idade inferior a um ano que nas casas dos controles (12,2% e 13,4%, respectivamente). Esta predominância dos casos também ocorreu quando se tratou de cães com idade entre um a três anos (19,6%). A variável idade do cão não se mostrou significante nas análises uni e multivariada, possivelmente devido à pequena diferença estatística entre os dois grupos estudados (Tab. 1). Porém, tal resultado estatístico não desmerece a relevância desta variável, conforme demonstrado no trabalho de Silva (1997), que cita a importância do fator idade no aumento de sua vulnerabilidade à infecção por LV, por envolver em seu contexto o estado imune do animal.

Em relação ao local em que o cão permanece durante o dia e a noite, verificou-se que, tanto no grupo dos casos como nos controles, a maioria dos cães permanecia fora de casa nos dois turnos (Tab. 2).

Quanto à procedência do cão, observou-se que 48,8% dos animais pertencentes aos casos de LV eram do próprio bairro de suas residências, enquanto, nos controles, apenas 29,3% dos animais provinham do mesmo bairro.

Para o teste de ELISA, observou-se que, em 73,6% das residências, todos os cães foram considerados negativos para o teste; em 1,9%, existia pelo menos um cão positivo; em 5,7%, existia um cão suspeito. Em 18,9% das casas, não foi possível coletar o sangue do(s) animal(is). Para a reação de imunofluorescência indireta (RIFI), observou-se que, em 68,9% das residências, todos os cães foram considerados negativos para o teste; em 1,9%, existia pelo menos um cão positivo; em 10,4%, existia um cão suspeito e, em 18,9%, não foi possível coletar o sangue do(s) animal(is). O alto índice de cães não examinados (18,9% para ELISA e RIFI) se deve principalmente à recusa dos proprietários dos cães (78%) e, em menor escala, à dificuldade em dominar cães de grande porte (13%).

O curto intervalo de tempo entre a entrevista feita pela pesquisa e as visitas dos agentes do Centro de Zoonoses da PBH parece ter ocasionado a maioria das recusas, já que os proprietários não aceitaram uma segunda coleta em um intervalo de tempo tão curto. Esta situação, assim como o baixo índice de animais positivos encontrado neste estudo, demonstra o trabalho efetivo da PBH na realização dos exames sorológicos e na retirada de cães soropositivos, em áreas com histórico de LV em humanos.

Foi encontrada grande disparidade nos resultados dos exames caninos realizados antes da visita domiciliar. Nos casos, 22% dos cães presentes em seus domicílios estavam soropositivos, enquanto apenas 2,4% dos cães pertencentes ao grupo-controle estavam infectados. O cão, por seu potencial como reservatório da LV e a sua atratividade como fonte alimentar para o vetor, favorece a ocorrência de LV em humanos.

A existência de histórico de eutanásia de cães nas residências dos casos foi três vezes maior que nas moradias dos controles (25,9% e 7%, respectivamente). Nos casos, quando houve reposição canina, esta ocorria em sua maioria (54,5%) num período inferior a um ano (Tab. 3). Nos controles, a reposição foi pouco praticada, sendo 0,6% das substituições praticadas após um a dois anos da eutanásia canina. Este período de "descanso ambiental" garante maior margem de segurança ao animal que será introduzido na área, já que medidas especiais de controle serão efetuadas por um longo período após o diagnóstico de LV em cães ou em humanos. Este resultado demonstra a associação entre a presença de animais infectados e a ocorrência de casos humanos, o que aumenta a relevância da retirada dos animais soropositivos do ambiente.

Quanto à presença de animais domésticos ou silvestres, excluindo o cão, os maiores percentuais foram observados nos domicílios dos casos (Tab. 4).

Foi atribuído aos proprietários de cães um aumento no risco de contrair LV equivalente a 2,17 vezes, quando comparados aos indivíduos que não possuem o animal. Esta estimativa se torna mais preocupante ao se analisar o número de cães por residência. Moradores com um cão em suas residências têm aumento no risco de contraírem LV de 1,87 vezes, enquanto os proprietários de dois cães têm um incremento no risco de 3,36 vezes, quando comparados a pessoas que não têm estes animais.

A tendência crescente do risco perante a presença de cães vem confirmar a importância deste animal na epidemiologia da LV, seja como atrativa fonte alimentar para o vetor, seja pelo potencial de servir de reservatório do parasita. Esta associação entre a infecção humana e a presença de cães foi, também, verificada por Vexenat et al. (1994); Paranhos-Silva et al. (1998) e Costa e Vieira (2001), que atribuíram este aumento do risco ao intenso parasitismo dérmico desses protozoários nos cães.

Com uso de setores censitários, como unidade de comparação e técnicas de geoprocessamento, Oliveira et al. (2001) também notaram associação entre casos de LV em humanos e maior número de cães por domicílio. No entanto, Sabroza et al. (1992), Evans et al. (1992), Dietze et al. (1997) e Paula (2005) não verificaram essa associação, sendo a eutanásia de cães soropositivos questionável para estes autores. Cabello et al. (1995) acreditam que a transmissão da LV entre humanos deve ser mais bem investigada para se mensurar o potencial real do cão como reservatório da doença.

A variável "idade do cão" não foi significativa na análise univariada (p= 0,172), possivelmente devido à pequena diferença estatística entre os dois grupos estudados. Com isso, esta variável foi retirada da etapa multivariada.

Outro dado importante encontrado é a relação entre a presença do cão no intradomicílio com a ocorrência de LV em humanos. Pessoas que mantêm seus cães no intradomicílio durante o dia têm 1,63 vezes mais chances de ter LV que aquelas que mantêm seus animais no peridomicílio. Tal dado pode ser explicado pelo fato de a presença do cão atrair o vetor para o interior da residência, expondo, assim, os seres humanos. Esta exposição à infecção é intensificada para pessoas que mantêm seus cães no interior do domicílio no período noturno (OR =2,06), já que ocorrem simultaneamente o horário de alimentação do vetor e a concentração de pessoas no interior da moradia. Este dado está de acordo com os encontrados por Wijeyratne et al. (1994).

No questionário, avaliaram-se a procedência do cão, pelo fato de o município de Belo Horizonte ter, relativamente, um histórico recente de LV (apenas 12 anos) e as incidências bem distintas entre as regionais administrativas. Esta variável não se mostrou significativa na análise univariada (p= 0,65), mas demonstrou que, em Belo Horizonte, a LV está em processo de homogeneização geográfica no que se refere aos animais infectados, enfatizando a importância do recolhimento e da eutanásia dos animais soropositivos para efetivo controle da doença.

Os valores de p dos exames sorológicos ELISA e RIFI não foram significativos, sendo os valores de p equivalentes a p = 0,256 com IC 95%= 0,90 e 1,45 para ELISA e p = 0,264 com IC 95% = 0,90 e 1,43 para RIFI.

A presença de animais nos arredores do domicílio foi pesquisada e observou-se que os animais que mais incrementaram o risco de ocorrer LV foram: patos (OR= 4,18 e IC 95%= 0,74 e 23,32), roedores (OR= 1,81 e IC 95%= 0,96 e 3,39), pássaros (OR= 1,56 e IC 95%= 0,90 e 2,69) e galinhas (OR= 1,47 e IC 95%= 0,74 e 2,90), o que demonstra o potencial das aves em atrair os flebótomos e a necessidade de maior atenção quanto a estas espécies no controle da doença. É interessante ressaltar que, entre as aves, as galinhas merecem destaque pela sua maior frequência nos domicílios, bem como pelo seu potencial de gerar um ambiente favorável à procriação de flebótomos devido aos resíduos orgânicos produzidos por estes animais. Estas observações estão de acordo com os resultados de Carvalho et al. (2000) e Souza (2005).

Segundo Travi et al. (1994) e Silva et al. (2005), o gambá representa grande risco para ocorrência de LV, por fazer a ligação entre os ambientes silvestre e doméstico. No modelo final deste estudo, a existência de gambás nas proximidades do domicílio se mostrou fator de proteção (OR = 0,19). Este resultado pode ser atribuído a praticamente inexistência do ciclo silvestre da LV em Belo Horizonte e à maior preferência do vetor por cães, que são os principais reservatórios da doença no município.

A variável "resultados anteriores" demonstrou potencial de diminuição do risco de ocorrência de LV em humanos equivalente a 5,61 vezes, o que pode ser explicado pelo fato de que, quando o exame do cão resulta em positividade, na maioria das vezes, o animal é retirado do convívio dos moradores para que sejam realizados os procedimentos de eutanásia. Este processo faz com que o tempo de exposição entre os moradores e os animais soropositivos seja menor, minimizando também o risco de LV em humanos.

CONCLUSÃO

A ocorrência e, consequentemente, a urbanização da LV em Belo horizonte tem sido influenciada por fatores relacionados às condições de criação de animais nos domicílios, em especial o cão. É necessário que se esclareça para a população o risco do convívio tão próximo e cada vez mais estreitado entre o homem e seus animais domésticos. Com isso, torna-se importante a educação em saúde tanto no que se refere aos conhecimentos dos ciclos e sintomatologia das zoonoses, quanto no que tange aos hábitos e às atitudes da população perante seus animais, para que sejam criados novos conceitos de convivência.

Recebido em 20 de outubro de 2008

Aceito em 31 de agosto de 2009

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  • *
    Autor para correspondência (corresponding author)
    E-mail:
  • 1
    Laboratório Bio-Manguinhos - Fundação Oswaldo Cruz – Rio de Janeiro, Brasil.
  • 2
    Laboratório Biogene Indústria e Comércio Ltda. – Recife, Brasil.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Nov 2009
    • Data do Fascículo
      Out 2009

    Histórico

    • Aceito
      31 Ago 2009
    • Recebido
      20 Out 2008
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