Acessibilidade / Reportar erro

Diagnóstico do ceratocone baseado no Orbscan com o auxílio de uma rede neural

Detection of keratoconus based on a neural network with Orbscan

Resumos

OBJETIVO: Desenvolver uma rede neural artificial para classificar em normal ou portador de ceratocone os pacientes submetidos ao exame do Orbscan II TM. MÉTODOS: Foi realizado um estudo retrospectivo envolvendo 98 exames de 59 pacientes. Utilizando o programa Java Neural Network 1.1 foi criada uma rede neural artificial para classificar os exames entre os dois grupos (normais e portadores de ceratocone). Foram utilizados 73 exames para treinamento e validação da rede, e 25 para testar o seu funcionamento. RESULTADOS: Dos 73 exames utilizados no treinamento da rede, 59 eram normais e 14 mostravam alterações relacionadas ao ceratocone. O método utilizado para treinamento da rede foi o "backpropagation". A taxa de aprendizado utilizada foi de 0,2, e a taxa de tolerância de erro 0,05. Dos 25 exames utilizados para a avaliação da eficácia da rede, 19 eram normais, e 6 apresentavam ceratocone. Após o treinamento a rede apresentou sensibilidade e especificidade de 83 e 100%, respectivamente. CONCLUSÃO: A rede neural artificial representa uma opção útil e viável para auxiliar na classificação de exames realizados com o Orbscan II TM.

Ceratocone; Dilatação, patológica; Córnea; Redes neurais (computação); Campos visuais


PURPOSE: To evaluate an artificial neural network in order to correctly identify Orbscan II TM tests of patients with normal and keratoconus corneas. METHODS: A retrospective analysis included 98 Orbscan II TM tests of 59 subjects and an artificial neural network was created and trained based on the Java Neural Network 1.1 software. Seventy-three tests (59 normal tests and 14 keratoconus examinations) were applied to train the neural network and 25 eyes were used to test the method (19 normal eyes and 6 cases of keratoconus corneas). RESULTS: Backpropagation method was performed to train the neural network to 5% error and 0.2 learning rate. The trained neural network presented sensibility and specificity of 83 and 100% respectively. CONCLUSION: Artificial neural network can accurately help clinicians to classify keratoconus in Orbscan II TM tests.

Keratoconus; Dilatation, pathologic; Cornea; Neural networks (computer); Visual fields


SUPERFÍCIE OCULAR

ARTIGO ORIGINAL

Diagnóstico do ceratocone baseado no Orbscan com o auxílio de uma rede neural

Detection of keratoconus based on a neural network with Orbscan

Murilo Barreto SouzaI; Fabrício Witzel de MedeirosII; Danilo Barreto SouzaIII; Milton Ruiz AlvesIV

IMédico Docente da Disciplina de Informática Médica do Curso de Medicina da Faculdade de Tecnologia e Ciências - Salvador (BA) - Brasil

II Médico Pós-graduando nível Doutorado da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo da USP - São Paulo (SP) - Brasil

IIIMédico Oftalmologista

IVDoutor e Professor Livre Docente pela Faculdade de Medicina da USP (SP). Chefe do Setor de Córnea e Doenças Externas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP - São Paulo (SP) - Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Murilo Barreto Souza Rua Alberto Pondé, nº 109, Apto. 503 - Savador (BA) CEP 40296-250 E-mail: murilobsouza@gmail.com

RESUMO

OBJETIVO: Desenvolver uma rede neural artificial para classificar em normal ou portador de ceratocone os pacientes submetidos ao exame do Orbscan IITM.

MÉTODOS: Foi realizado um estudo retrospectivo envolvendo 98 exames de 59 pacientes. Utilizando o programa Java Neural Network 1.1 foi criada uma rede neural artificial para classificar os exames entre os dois grupos (normais e portadores de ceratocone). Foram utilizados 73 exames para treinamento e validação da rede, e 25 para testar o seu funcionamento.

RESULTADOS: Dos 73 exames utilizados no treinamento da rede, 59 eram normais e 14 mostravam alterações relacionadas ao ceratocone. O método utilizado para treinamento da rede foi o "backpropagation". A taxa de aprendizado utilizada foi de 0,2, e a taxa de tolerância de erro 0,05. Dos 25 exames utilizados para a avaliação da eficácia da rede, 19 eram normais, e 6 apresentavam ceratocone. Após o treinamento a rede apresentou sensibilidade e especificidade de 83 e 100%, respectivamente.

CONCLUSÃO: A rede neural artificial representa uma opção útil e viável para auxiliar na classificação de exames realizados com o Orbscan IITM.

Descritores: Ceratocone/diagnóstico; Dilatação, patológica; Córnea; Redes neurais (computação); Campos visuais

ABSTRACT

PURPOSE: To evaluate an artificial neural network in order to correctly identify Orbscan IITM tests of patients with normal and keratoconus corneas.

METHODS: A retrospective analysis included 98 Orbscan IITM tests of 59 subjects and an artificial neural network was created and trained based on the Java Neural Network 1.1 software. Seventy-three tests (59 normal tests and 14 keratoconus examinations) were applied to train the neural network and 25 eyes were used to test the method (19 normal eyes and 6 cases of keratoconus corneas).

RESULTS: Backpropagation method was performed to train the neural network to 5% error and 0.2 learning rate. The trained neural network presented sensibility and specificity of 83 and 100% respectively.

CONCLUSION: Artificial neural network can accurately help clinicians to classify keratoconus in Orbscan IITM tests.

Keywords: Keratoconus/diagnosis; Dilatation, pathologic; Cornea; Neural networks (computer); Visual fields

INTRODUÇÃO

O aumento da complexidade da prática médica, juntamente com a crescente incorporação de novas tecnologias, estimulou o desenvolvimento de diversos sistemas de apoio ao diagnóstico(1).

Nos últimos anos a inteligência artificial vem sendo utilizada como uma ferramenta de auxílio em diversas especialidades médicas, incluindo a oftalmologia(2-3). Dentre as metodologias utilizadas para o desenvolvimento de sistemas de apoio, as redes neurais artificiais têm despertado grande interesse devido às suas características(1).

O termo rede neural artificial (RNA) faz referência a modelos matemáticos idealizados como modelos simplificados do funcionamento cerebral(4). A RNA consiste em unidades de processamento (análogos aos neurônios), interconectadas entre si (semelhante às sinapses neurais), através das quais é possível realizar o processamento paralelo de informações(4) . Devido a estas características, a RNA é capaz de simular alguns aspectos do sistema nervoso biológico, permitindo a realização de tarefas cognitivas de forma mais eficaz do que as obtidas através do processamento serial(4).

As unidades de processamento de uma RNA são distribuídas em diferentes camadas(5). As unidades da camada inicial consistem nas variáveis envolvidas no problema e são definidas pelo investigador seguindo a relação de importância dessas variáveis no questionamento proposto. As unidades da camada final correspondem às respostas a serem preditas pela rede. A existência e o número de unidades em camadas intermediárias são determinados de acordo com a tarefa a ser desempenhada pela rede(5). Os dados utilizados para alimentar a primeira camada da rede são propagados para as camadas subseqüentes(4). Cada unidade a partir da segunda camada recebe os dados das unidades da camada anterior e após a soma ponderada destes dados, transfere o resultado através de uma função para as unidades da camada seguinte(5). Este processo é repetido até que a última camada, que representa a resposta final, seja alcançada(4).

Para que uma RNA forneça resultados adequados ela deve ser treinada(4). Durante este processo, dados reais referentes à primeira e última camadas são apresentados à rede simultaneamente. Os dados apresentados à primeira camada são propagados até a última camada e o resultado final fornecido pela rede é então comparado com o resultado real(5). De acordo com a diferença observada entre o resultado fornecido pela rede e o resultado real os pesos das conexões entre as unidades são modificados, buscando tornar as respostas finais mais semelhantes às respostas desejadas(4-5). Durante o treinamento de uma RNA este processo é continuamente realizado, e os dados podem ser apresentados em ciclos repetidos até que uma taxa de erro aceitável seja alcançada(5).

As redes neurais, após um processo de "aprendizado" adequado, podem relacionar dados complexos de uma equação e predizer seu resultado final corretamente(5-6). Quando uma RNA completa o seu treinamento, as relações entre as variáveis iniciais e a resposta final são memorizadas como uma matriz, e a rede pode ser utilizada com sucesso mesmo com dados não apresentados previamente, sendo esta característica conhecida como capacidade de generalização(4).

O presente estudo tem como objetivo o desenvolvimento de uma RNA para classificar entre normais ou portadores de ceratocone, exames realizados com o Orbscan IITM (Bausch & Lomb).

MÉTODOS

Foi realizado um estudo retrospectivo através da revisão de prontuários, utilizando-se dados provenientes de exames realizados com o Orbscan IITM, atendidos no consultório particular de um dos autores, no período de janeiro de 2006 a dezembro de 2007. Foram coletados dados provenientes de 98 olhos de 59 pacientes. A coleta dos dados do estudo foi aprovada pela Comissão de Ética em Pesquisa.

Todos os exames foram avaliados pelo mesmo investigador, e cada exame foi classificado entre dois grupos: exames normais ou exames com alterações compatíveis com ceratocone. Para o diagnóstico de ceratocone foram utilizados os critérios topográficos de Rabinowitz(7). Foram excluídos do estudo exames de pacientes submetidos previamente a procedimento cirúrgico ocular, e exames de pacientes portadores de outras alterações oculares envolvendo a córnea ou a superfície ocular, com exceção do ceratocone.

Além da classificação do exame, os seguintes dados foram coletados e utilizados para alimentar a RNA: poder ceratométrico médio, poder astigmático e irregularidade, para as zonas de 3 mm e 5 mm, "Best Fit Sphere" (BSF) anterior e posterior, astigmatismo simulado, e a diferença entre o ponto mais espesso e o ponto mais fino do mapa paquimétrico.

A rede neural foi construída utilizando-se o Java Neural Network Simulator versão 1.1, contendo 3 camadas (Figura 1).


A primeira camada foi composta de 10 unidades, correspondentes aos dados coletados dos exames analisados. A camada final foi composta por duas unidades, cada uma correspondendo a uma das duas possíveis classificações: exames normais ou exames apresentando ceratocone. Estas unidades finais poderiam fornecer valores variando de 0 a 1. Foi considerado como o diagnóstico da RNA aquele correspondente à unidade final fornecendo como resultado um valor acima de 0,5. No caso das duas unidades apresentarem valores acima de 0,5, foi considerado como resposta da RNA aquela unidade com maior valor. Valores abaixo de 0,5 fornecidos pelas duas unidades finais indicaram a ausência de classificação da RNA.

Foram testadas arquiteturas contendo de uma a dez unidades na camada intermediária, tendo sido escolhido como arquitetura final aquela que ofereceu os melhores resultados com a menor arquitetura (Figura 1).

O método para treinamento da rede foi o "backpropagation", utilizando-se uma taxa de aprendizado de 0,2 e uma taxa de tolerância de erro 0,05. Foram utilizados 73 casos para o treinamento e validação da rede, e 25 para testar o funcionamento. Foi permitido um número indefinido de ciclos durante o treinamento, até que a taxa de erro desejada fosse alcançada.

RESULTADOS

A RNA foi treinada até atingir a meta proposta, uma taxa de erro de 0,05. Dos 73 exames utilizados para treinamento e validação da rede, 59 representavam exames normais e 14 exames com sinais de ceratocone. Entre os exames utilizados para testar o funcionamento 19 encontravam-se classificados no grupo de exames normais, e 6 entre os portadores de ceratocone.

Os resultados fornecidos pela rede no grupo de teste foram comparados com o diagnóstico clínico original fornecido por um dos investigadores.

A RNA classificou corretamente todos os 19 exames normais, e incorretamente apenas um dos 6 casos com diagnóstico de ceratocone, obtendo uma sensibilidade de 83% e uma especificidade de 100% (Tabela 1).

DISCUSSÃO

A diferenciação entre indivíduos normais e portadores de ceratocone através da interpretação de exames complementares é um procedimento de vital importância, principalmente quando considerado o advento da cirurgia refrativa e as complicações relacionadas a ela, como a ectasia pós-LASIK(8).

Apesar de, na maioria das situações, a interpretação destes exames não suscitar dúvidas para o especialista, situações de difícil julgamento para o oftalmologista são comuns(9). Assim, é justamente neste cenário que os sistemas de auxílio ao diagnóstico podem auxiliar, aumentado a precisão da interpretação dos exames(10).

Para que uma RNA forneça resultados satisfatórios ela deve passar por um processo de treinamento ou "aprendizado", durante o qual os pesos das conexões são ajustados para um desempenho adequado(5). As redes neurais, após este processo, podem trabalhar dados complexos de uma equação e predizer seu resultado final com alto grau de precisão(4-5).

Em relação aos diversos métodos para desenvolvimento de apoio ao diagnóstico, a RNA oferece grandes vantagens(1,4). Como o seu mecanismo de aprendizado é baseado unicamente nos dados fornecidos, não é necessária nenhuma informação sobre relações ou regras entre eles(11). Além disso, ela é capaz de detectar características não explícitas nos dados utilizados para o seu desenvolvimento(4). Este fato porém enfatiza a importância da quantidade e da qualidade dos dados utilizados para o treinamento, uma vez que é a partir deste aporte inicial de informações que a rede vai ser condicionada a predizer a resposta final(5,10).

Apesar do número limitado de casos utilizados para treinamento e validação da rede, foi possível alcançar um desempenho satisfatório. O exame incorretamente classificado provavelmente reflete o pequeno número de exemplos compatíveis com ceratocone entre os dados utilizados para o treinamento. Além deste fato, o grande número de ciclos necessários para o treinamento também sugere a necessidade de um maior número de casos para um treinamento mais eficaz, uma vez que o número excessivo de ciclos pode comprometer a capacidade de generalização da RNA(4).

Durante o processo de desenvolvimento da RNA, apesar de estar previsto inicialmente a utilização de uma rede na qual cada unidade estivesse conectada apenas com as unidades das camadas adjacentes, observou-se que além das conexões já previstas, a existência de conexões entre unidades da primeira e última camada aumentava a capacidade da rede, e por este motivo foi optado pela arquitetura apresentada na figura 1.

O método de treinamento da rede neste estudo, o "backpropagation", é um dos mais utilizados(6,11). Neste método, a RNA realiza uma mudança nos valores das conexões entre as unidades de acordo com a taxa de erro observada para cada caso apresentado durante o treinamento(11). Uma vez treinada, a RNA produz sempre respostas iguais para as mesmas associações de variáveis, uma característica desejável em um sistema médico de auxílio diagnóstico(10).

Além da função abordada neste estudo, as redes neurais também apresentam outras potenciais aplicações em relação a ectasia corneana. O estabelecimento de prognóstico ou a classificação da gravidade da ectasia(10) representam outras possibilidades.

Os dados obtidos neste e em outros estudos prévios(10,12) realçam a utilidade das redes neurais artificiais como método de apoio para a classificação de exames relacionados a alterações da curvatura corneana como o Orbscan IITM.

CONCLUSÃO

A rede neural artificial representa uma opção útil e viável para auxiliar na classificação de exames realizados com o Orbscan IITM.

Fontes de auxílio à pesquisa: nenhuma

Trabalho realizado no Departamento de Oftalmologia e Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - São Paulo (SP) e na Faculdade de Tecnologia e Ciências - Salvador (BA).

  • 1. Ramesh AN, Kambhampati C, Monson JR, Drew PJ. Artificial intelligence in medicine. Ann R Coll Surg Engl. 2004;86(5):334-8.
  • 2. Edenbrandt L, Devine B, Macfarlane PW. Neural networks for classification of ECG ST-T segments. J Electrocardiol. 1992;25(3):167-73.
  • 3. Mutlukan E, Keating D. Visual field interpretation with a personal computer based neural network. Eye. 1994;8(Pt 3):321-3.
  • 4. Haykin S. Neural networks: a comprehensive foundation. Ontario: Prentice Hall;1998.
  • 5. Reed RD, II Marks RJ II, editors. Neural Smithing: Supervised Learning in Feedforward Artificial Neural Networks. Cambridge: The MIT Press; 1999. Chapter: Back-propagation. p.49-70.
  • 6. Bose NK, Liang P, editors. Neural network fundamentals with graphs, algorithms, and applications. New York: McGraw-Hill; 1996. Chapter: Multilayer networks. p.155-218.
  • 7. Rabinowitz YS. Videokeratographic indices to aid in screening for keratoconus. J Refract Surg. 1995;11(5):371-9.
  • 8. Sridhar MS, Rao SK, Vajpayee RB, Aasuri MK, Hannush S, Sinha R. Complications of laser-in-situ-keratomileusis. Indian J Ophthalmol. 2002;50(4): 265-82. Comment in: Indian J Ophthalmol. 2002;50(4):259-60.
  • 9. Twa MD, Parthasarathy S, Roberts C, Mahmoud AM, Raasch TH, Bullimore MA. Automated decision tree classification of corneal shape. Optom Vis Sci. 2005;82(12):1038-46.
  • 10. Maeda N, Klyce SD, Smolek MK. Neural network classification of corneal topography. Preliminary demonstration. Invest Ophthalmol Vis Sci. 1995; 36(7):1327-35.
  • 11. Souza MB, Tomikawa VO, Oliveira BF, Polati M. Uso da rede neural artificial no planejamento cirúrgico da correção do estrabismo. Arq Bras de Oftalmol. 2004;67(5):459-52.
  • 12. Smolek MK, Klyce SD. Current keratoconus detection methods compared with a neural network approach. Invest Ophthalmol Vis Sci. 1997;38(11):2290-9.
  • Endereço para correspondência:

    Murilo Barreto Souza
    Rua Alberto Pondé, nº 109, Apto. 503 - Savador (BA)
    CEP 40296-250
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Fev 2009
    • Data do Fascículo
      Dez 2008
    Conselho Brasileiro de Oftalmologia Rua Casa do Ator, 1117 - cj.21, 04546-004 São Paulo SP Brazil, Tel: 55 11 - 3266-4000, Fax: 55 11- 3171-0953 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: abo@cbo.com.br