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Cirurgião acadêmico: ciência e arte tributo ao professor Salomão Kelner

EDITORIAL

Cirurgião Acadêmico: Ciência e Arte

Tributo ao Professor Salomão Kelner

Mais de dois mil e trezentos anos separam Hipócrates do nascimento da ovelha Dolly. Nesse intervalo ocorreram a Revolução Científica (a partir do século XVII), a Revolução Bacteriológica (a partir do século XIX), a Revolução Tecnológica (século XX), mas é importante sublinhar que o progresso da medicina nos últimos 50 anos foi maior do que em todo restante da história da humanidade e o ritmo destes avanços tende a acelerar ainda mais no futuro próximo.

O aprendizado avança com velocidade extraordinária, dissemina-se simultaneamente por todos os cantos do planeta. Estima-se hoje que cerca de 30 milhões de pessoas tenham acesso à informação médica através da Internet. A medicina e, particularmente, a cirurgia são evidentemente influenciadas pelas mudanças e progressos tecnológicos, científicos, econômicos, sociais, culturais e políticos da atualidade. O exercício da cirurgia, hoje, já não é o mesmo que foi praticado pelos nossos cirurgiões de 30 anos atrás. Nos últimos 10 anos, presenciou-se o crescimento espantoso das técnicas cirúrgicas minimamente invasivas e inicia-se a era da cirurgia robótica onde, utilizando-se técnicas altamente sofisticadas através do computador, cria-se a realidade virtual, o que permite ao cirurgião manipular um robô e realizar uma cirurgia em um paciente que esteja do outro lado do planeta. O cirurgião moderno vai precisar conhecer terapia genética, novas drogas para o câncer que atuam em nível celular, diminuindo a resistência das células tumorais do trato digestivo, vai precisar adequar a técnica cirúrgica mais ou menos agressiva de forma que se obtenham resultados melhores utilizando a terapia genética ou radioterapia de alta precisão. Os transplantes de órgãos tornaram-se rotineiros, obrigando o cirurgião a estar atualizado em imunologia, patologia e bioquímica.

Na atualidade, a humanidade assiste a um período de grande desenvolvimento técnico-científico. Nada disto pode ser desprezado, embora seja necessário fazer uma profunda reflexão para que se possa usar os produtos e serviços advindos desse desenvolvimento com prudência e temperança, pois somente assim poder-se-ão formar adequadamente as futuras gerações de médicos. Infelizmente, todos estes recursos tecnológicos implicam o distanciamento do médico e de seu paciente, uma desumanização da profissão e uma fragmentação da medicina em centenas de especialidades médicas, minimizando-se o conceito de harmonia entre o corpo e a alma. E muito mais grave, o preço desta alta tecnologia proporcionou o surgimento da Medicina do lucro, excluindo de seus préstimos toda uma parcela da população incapacitada de oferecer retorno financeiro aos seus mentores e ferindo os preceitos da antiga Medicina Hipocrática.

Se havia uma união inseparável entre o Verdadeiro e o Bem, ciência e ética caminhavam juntas, na Grécia Clássica, hoje vivemos num mundo onde a cisão entre elas, iniciada durante a Revolução Científica, constitui uma realidade que traz consigo conseqüências nem sempre benéficas para a humanidade que atualmente vivencia a troca do Verdadeiro pelo verossímil ("semelhante à verdade; que parece verdadeiro"); do Bem pelo útil e do Belo pelo agradável.

Diante de todas estas mudanças, como se deve exercer a prática médica, especialmente a cirurgia? Uma citação do professor Salomão Kelner, extraída do Prefácio ao livro Ética, Moral e Deontologia Médicas de Andy Petroianu (2000), ajuda-nos a refletir sobre o futuro da ciência e arte hipocrática: "Que a nossa ética médico-cirúrgica nos faça altivos o suficiente para ousar e acreditar no progresso científico-tecnológico, mas nos faça humildes o necessário para duvidar e nos confrontar com a imprevisibilidade, devolvendo-nos a condição de médicos, humanos e sensíveis".

O professor tem um papel de grande responsabilidade no curso desta história. Preparar o cirurgião para enfrentar todo este aparato tecnológico é um desafio. No entanto, deve ser considerada uma batalha muito mais árdua dos professores de cirurgia adequar esta nova "medicina" com a antiga Medicina de Hipócrates.

A trajetória pessoal, profissional e acadêmica do Professor Kelner é um exemplo da verdadeira vocação ao exercício da Cirurgia. Desde o início de sua carreira universitária em 1945, a convite do Professor Eduardo Wanderley Filho, então docente livre no exercício da Cátedra de Técnica Operatória e Cirurgia Experimental da Faculdade de Medicina da Universidade do Recife, seu compromisso com o paciente e com a formação de novos cirurgiões foram ideais perseguidos por toda sua vida acadêmica. Sensível em relação à condição humana e aos problemas sociais de nossa região, dedicou-se ao estudo do tratamento cirúrgico das varizes sangrantes de esôfago na Hipertensão Portal da Esquistossomose Mansônica, assunto de grande relevância social, uma vez que cerca de 150 mil pacientes no país são portadores de Hipertensão Portal e potenciais candidatos ao tratamento cirúrgico. Tornou o Serviço de Cirurgia de Universidade Federal de Pernambuco um centro de referência nacional em pesquisa de Esquistossomose, desenvolvendo técnica cirúrgica própria que atuava diretamente sobre as varizes e preservava o fluxo portal, apesar das críticas de outras escolas, que defendiam a técnica de descompressão portal, adotada pela maioria dos cirurgiões americanos para tratamento dos pacientes cirróticos. Prevaleceu seu espírito pioneiro e bom senso cirúrgico, honestidade científica e perseverança, corroborados pelos estudos das duas doenças demonstrando diferenças importantes na sua fisiopatologia e fortalecendo sua tese de uma cirurgia preconizada por brasileiros para uma doença que afligia nossa população. Mais uma vez, inovou, criou, formou e sedimentou uma Escola de Cirurgia com idéias próprias, humanizada e sensível. Preocupando-se sempre em reproduzir estes conhecimentos, sem esquecer o culto à memória de seus mestres e antecessores.

Quando assumiu, em 1966, por concurso, a Cadeira de Técnica Operatória e Cirurgia Experimental, depois chamada de Cirurgia Abdominal, após a morte precoce de seu amigo e mestre Eduardo Wanderley Filho fez, no discurso de posse em 29 de julho de 1966, as seguintes promessas: 1) Ensino para os alunos de Graduação; 2) Formação de cirurgiões gerais; 3) Formação de professores de Cirurgia e 4) Desenvolvimento da mentalidade de pesquisa. Durante os 20 anos que esteve à frente deste programa, honrou todas essas promessas e ultrapassou em muito seus sonhos. Foi corajoso e ousado ao implantar, em 1972, o Curso de Mestrado em Cirurgia numa região pouco privilegiada de recursos financeiros e com pouca tradição em pós-graduação. Como coordenador do Mestrado em Cirurgia, fez com que todos os integrantes do corpo Docente da Cirurgia Abdominal, com exceção de um professor que se dedicou a Cirurgia Plástica, obtivessem um Grau Acadêmico: Mestre, Doutor ou Docente Livre. Procurou sempre resgatar a dimensão ética e moral da medicina e transmiti-las aos seus discípulos fazendo-se a diferença entre um técnico altamente qualificado e um médico, na concepção grega da Medicina - ciência e arte.

Formou, assim, uma ESCOLA DE CIRURGIA, desenvolvendo paralelamente linhas de pesquisas relacionadas a doenças que afligiam nossa população carente e, portanto, contribuindo com o compromisso social de um Hospital Universitário.

Do legado deixado para a medicina pela Grécia Antiga, pelo menos duas figuras se sobressaem: Asclépio e Hipócrates, o deus e o pai da medicina, respectivamente. O primeiro, também chamado de Esculápio pelos romanos, era filho de Apolo, mas foi criado pelo centauro Quíron que lhe ensinou a arte de curar. O segundo nasceu em Cós, por volta de 460 a. C. e tornou-se líder da chamada Escola de Cós onde ministrou ensinamentos, ainda hoje válidos, sobre medicina, além disso Hipócrates, rompendo com as práticas supersticiosas e mágicas que até então dominavam a arte de curar, guia-se pelo que hoje é chamado de pensamento científico.

Honrando e perpetuando essa tradição, tive o privilégio de ser aluna próxima do Professor Salomão Kelner, este homem transcendente como os princípios hipocráticos, definidos com precisão nos aforismos: "A arte é longa, a vida é breve, a experiência é falha, a oportunidade é fugidia e o julgamento é difícil". Nada mais prazeroso do que curar, prevenir doenças, fazer o bem. Trata-se de uma profissão rara; em sendo também uma arte, nos faz artesãos. Um artesão não pode ser desprovido de alma, um mero técnico. Precisa ter habilidade na partilha das relações afetivas para construir uma relação respeitosa com seu paciente. Lutar contra as deformações do profissional médico deve ser uma preocupação constante do Professor e do Cirurgião.

Raquel Kelner Silveira

Aluna do Programa de Pós-Graduação

em Cirurgia - Nível Doutorado, CCS - UFPE

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Out 2002
  • Data do Fascículo
    2002
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