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“Trocas nos sinais”: caracterização de processos fonológicos ocorridos durante a aquisição de Libras por pré-escolares surdos

RESUMO

Objetivo

Descrever as características dos processos fonológicos encontrados na língua de sinais de pré-escolares surdos.

Métodos

Participaram da pesquisa 15 crianças surdas, com idade entre 3 e 7 anos. A coleta de dados ocorreu por meio de filmagem da aplicação do Instrumento de avaliação fonológica da língua de sinais brasileira: FONOLIBRAS, que propõe nomear, em Libras (Língua Brasileira de Sinais), 50 figuras. Foi realizada transcrição em SignWriting e os sinais de Libras com processos fonológicos foram classificados quanto ao tipo, parâmetro e mão(s) envolvida(s). Por fim, os dados receberam tratamento estatístico.

Resultados

Todas as crianças surdas apresentaram produção de sinais com variações linguísticas, em relação ao padrão adulto, ou seja, processos fonológicos, confirmando que é um fenômeno natural do desenvolvimento infantil também nas línguas de sinais. O tipo mais frequente foi assimilação, também estando presentes substituição, epêntese, elisão e metátese. O parâmetro configuração de mão foi o mais afetado e a ocorrência maior, na mão passiva.

Conclusão

De que modo os processos fonológicos fazem parte da aquisição das línguas de sinais, podendo ser naturalmente suprimidos, ou não, é um assunto que merece a atenção dos profissionais que atuam na área da surdez, de modo a aperfeiçoar o desenvolvimento da comunicação dos usuários destas línguas.

Palavras-chave:
Desenvolvimento da linguagem; Fonética; Surdez

ABSTRACT

Purpose

To describe the characteristics of the phonological processes found in deaf preschoolers’ sign language.

Methods

Fifteen deaf children aged 3 to 7 years participated in the study. Data collection was conducted by filming the application of the FONOLIBRAS test, which requires participants to name 50 figures in Libras (Brazilian sign language). Transcription was performed on SignWriting; Libras signals with phonological processes were classified by type, parameter, and hand(s) involved. Finally, the data received statistical treatment.

Results

All deaf children showed signs of linguistic variation in relation to the adult pattern, that is, phonological processes, confirming that these processes are a natural phenomenon of child development in sign languages ​​as in spoken languages. The most frequent process was assimilation, while replacement, epenthesis, elision, and metathesis were also present. The hand configuration parameter was the most affected. The occurrence was greater in the passive hand.

Conclusion

As phonological processes are part of the acquisition of sign languages and can be naturally suppressed or not, these phenomena deserve the attention of professionals who work in the area of deafness in order to optimize the communication development of users of these languages.

Keywords:
Language development; Phonetics; Deafness

INTRODUÇÃO

Nas línguas de sinais, é possível observar algo semelhante ao fenômeno popularmente chamado nas línguas orais de “trocas na fala” e, em linguagem técnica, processos fonológicos.

Numa visão mais abrangente, processo fonológico é qualquer mudança observada no nível fonológico das línguas, que pode resultar em modificação ou variação linguística(11 Diniz HG. A história da língua de sinais brasileira (libras): um estudo descritivo de mudanças fonológicas e lexicais [tese]. Florianópolis (SC): Universidade Federal de Santa Catarina; 2010. ). Ocorre a modificação, quando substitui, naturalmente, ao longo do tempo, uma forma antiga por uma mais atual, e a variação, quando ajusta a fatores estilísticos, fatores sociais ou fatores linguísticos do próprio indivíduo(22 Schembri A, Mckee D, Mckee R, Pivac S, Johnston T, Goswell D. Phonological variation and change in Australian and New Zealand Sign Language: the location variable. Lang Var Change. 2009;21(2):193-231. http://dx.doi.org/10.1017/S0954394509990081.
http://dx.doi.org/10.1017/S095439450999...
).

Na literatura, a ênfase das pesquisas costuma recair sobre os processos fonológicos do tipo variação, que ocorrem na infância, mais especificamente nas línguas orais-auditivas.

Ainda que o interesse da presente pesquisa sejam os processos fonológicos ocorridos nas línguas visomotoras, a trajetória de estudos nesta área, mesmo que em outra modalidade, contribuiu como ponto de partida.

Sobre as definições e possíveis causas dos processos fonológicos na infância, na Teoria Gerativa Clássica, ainda sem nomenclatura específica, tal manifestação foi descrita como um “problema no funcionamento fonológico de um ou mais traços distintivos […]”(33 Matzenauer-Hernandorena CL. Teorias fonológicas e aquisição fonológica. Estudos Linguísticos [Internet]. 2002 [citado em 2017 set 5];31(1). Disponível em: http://www.gel.org.br/estudoslinguisticos/volumes/31/htm/mesaredo/MR01.htm
http://www.gel.org.br/estudoslinguistic...
).

Na Teoria Gerativa Natural, Stampe foi o precursor no uso do termo “processo fonológico” e definiu:

[...] é uma operação mental que se aplica à fala para substituir, em lugar de uma classe de sons ou sequência de sons que apresentam uma dificuldade específica comum para a capacidade de fala do indivíduo, uma classe alternativa idêntica em todos outros sentidos, porém desprovida da propriedade difícil (44 Lamprecht RR. Aquisição fonológica do português: perfil de desenvolvimento e subsídios para terapia. Porto Alegre: Artmed; 2004. :41).

Utilizando o termo “estratégias de reparo”, Lamprecht definiu:

[...] estratégias adotadas pelas crianças para adequar a realização do sistema-alvo – a língua falada pelos adultos do seu grupo social - ao seu sistema fonológico, ou seja, refere-se àquilo que as crianças realizam em lugar do segmento e/ou da estrutura silábica que ainda não conhecem ou cuja produção não dominam(44 Lamprecht RR. Aquisição fonológica do português: perfil de desenvolvimento e subsídios para terapia. Porto Alegre: Artmed; 2004. :28).

Segundo a Teoria Autossegmental, é a “[...] troca de um segmento por outro que já integre o sistema da criança [...]”(33 Matzenauer-Hernandorena CL. Teorias fonológicas e aquisição fonológica. Estudos Linguísticos [Internet]. 2002 [citado em 2017 set 5];31(1). Disponível em: http://www.gel.org.br/estudoslinguisticos/volumes/31/htm/mesaredo/MR01.htm
http://www.gel.org.br/estudoslinguistic...
).

Na visão da Teoria da Otimalidade, trata-se de um ordenamento inadequado da hierarquia de restrições da língua-alvo(55 Lamprecht RR. Diferenças no ranqueamento de restrições como origem de diferenças na aquisição fonológica. Let Hoje. 1999;34(3):65-82. ).

Estudos apontam que a quantidade de processos fonológicos ou estratégias de reparo é diretamente proporcional ao grau de dificuldade de aquisição e produção das mínimas unidades linguísticas envolvidas, bem como ao grau de desvio fonológico presente(66 Ghisleni MRL, Keske-Soares M, Mezzomo CL. O uso das estratégias de reparo, considerando a gravidade do desvio fonológico evolutivo. Rev CEFAC. 2010;12(5):766-71. http://dx.doi.org/10.1590/S1516-18462010005000030.
http://dx.doi.org/10.1590/S1516-1846201...
,77 Wiethan FM, Mota HB. Emprego de estratégias de reparo para os fonemas fricativos no desvio fonológico. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2012;17(1):572-8. http://dx.doi.org/10.1590/S1516-80342012000100007.
http://dx.doi.org/10.1590/S1516-8034201...
).

Desta forma, de um modo geral, pode-se concluir que os processos fonológicos manifestados na infância costumam ser relacionados às restrições oriundas de imaturidade na capacidade necessária para reproduzir o padrão adulto, resultando em simplificações fonético-fonológicas, permitindo uma produção aproximada do sistema linguístico alvo.

Em outras palavras, a criança comunica-se, ainda que não tenha atingido plena maturidade. Consequentemente, seu vocabulário apresentará modificações/simplificações no significante (forma) do signo (palavra ou sinal), comparado ao padrão adulto.

Os processos fonológicos podem ser classificados em(88 Teixeira ER. Os processos de simplificação fonológica na descrição do desenvolvimento de crianças falantes do português em situações aquisicionais típicas e atípicas. Prolíngua. 2015;10(1):79-92. ):

  • Processos de substituição: manifestados no eixo paradigmático dos contrastes das unidades sublexicais. Referem-se à composição dos traços. A simplificação ocorre através da substituição de membros de uma classe por membros de outra classe natural* * Classe natural “[...] é o conjunto de segmentos que compartilham traços semelhantes e sofrem regras fonológicas comuns [...]”( 9: 27). No exemplo, tanto o fonema /s/, quanto o /t/, são produzidos por contato da língua na região alveolar e não ocorre vibração nas pregas vocais, mas diferenciam-se pelo traço relativo à sustentação de sopro, /s/ é [+contínuo] e /t/ é [-contínuo]. . Exemplo: “sapo” por “tapo”;

  • Processos modificadores estruturais: manifestados no eixo sintagmático das sequências das unidades sublexicais. Referem-se à combinação dos fonemas para formação das unidades morfológicas e lexicais. Exemplo: “árvore” por “rávore”;

  • Processos sensíveis ao contexto: manifestados nos eixos paradigmático e sintagmático, influenciados por fatores contextuais. Referem-se às substituições de traços ou segmentos por outros mais parecidos com o contexto fonológico próximo. Exemplo: “chupeta” por “pepeta”.

Retornando a atenção para a língua de sinais, a Teoria da Fonologia Natural defende que processos fonológicos são inatos, naturais e universais (1010 Lima LM, Queiroga BAM. Aquisição fonológica em crianças com antecedentes de desnutrição. Rev CEFAC. 2017;9(1):13-20. http://dx.doi.org/10.1590/S1516-18462007000100003.
http://dx.doi.org/10.1590/S1516-1846200...
). Sendo assim, podem ser encontrados tanto em línguas de modalidade oral-auditiva, quanto em línguas de modalidade visuoespacial(1111 Carvalho S, Moita M, Mineiro A. As palavras e os gestos que nos “tornam” humanos. Cadernos de Saúde. 2013;6:13-5. ).

Nas línguas de sinais, tais mudanças no nível fonético-fonológico se manifestam sob a forma de alteração em um ou mais parâmetros constitutivos do sinal(11 Diniz HG. A história da língua de sinais brasileira (libras): um estudo descritivo de mudanças fonológicas e lexicais [tese]. Florianópolis (SC): Universidade Federal de Santa Catarina; 2010. ). Ou seja, pode-se afirmar que um sinal contém processo(s) fonológico(s) quando se observa, em relação à língua-alvo, diferenças articulatórias manifestadas em configuração de mão, ponto de articulação, movimento, orientação, número de mãos e/ou marcações não manuais.

Sobre os registros na literatura a respeito da ocorrência de processos fonológicos nas línguas de sinais, Liddel e Johnson foram, provavelmente, os primeiros autores que se dedicaram a esse estudo, no caso, em relação à língua de sinais americana (ASL), e classificaram os processos em: epêntese do movimento, apagamento da preensão, metátese, geminação, assimilação, redução e perseveração e antecipação (1212 Liddell SK, Johnson RE. American sign language: the phonological base. Sign Lang Stud. 1989;64(1):195-277. http://dx.doi.org/10.1353/sls.1989.0027.
http://dx.doi.org/10.1353/sls.1989.0027...
).

No Brasil, Lodenir Karnopp foi uma das precursoras em estudos sobre o tema. Em 1994, ao investigar a aquisição de Libras (língua de sinais brasileira) em quatro crianças surdas, filhas de pais surdos, com faixas etárias entre 2 anos e 8 meses e 5 anos e 9 meses, observou que o maior índice de substituições ocorreu no parâmetro configuração de mão, comparando-se com movimento e ponto de articulação, e estas substituições foram sistemáticas(1313 Karnopp LB. Aquisição fonológica nas línguas de sinais. Let Hoje. 1997;32(4):147-62. ). Em 1999, ao realizar um estudo longitudinal sobre a aquisição fonológica de Libras por uma menina surda, com pais e irmãs surdas, confirmou maior ocorrência de substituições neste parâmetro(1414 Karnopp LB. Aquisição fonológica na língua brasileira de sinais: estudo longitudinal de uma criança surda [tese]. Porto Alegre (RS): Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; 1999. ).

Ao ser aplicado o “Instrumento de avaliação da consciência fonológica, parâmetro configuração, para crianças surdas utentes da Língua de Sinais Brasileira”, em 15 crianças surdas, com faixa etária entre 6 anos e 11 anos e 1 mês, encontrou-se que os sinais classificados como “denominação esperada modificada” (processos fonológicos) ocorriam menos frequentemente em crianças com maior período de exposição linguística à Libras(1515 Cruz CR, Lamprecht RR. Proposta de instrumento de avaliação da consciência fonológica, parâmetro configuração de mão, para crianças surdas utentes da Língua de Sinais Brasileira. Let Hoje. 2008;43(3):98-106. ).

Em observação longitudinal de produções espontâneas de uma criança surda, filha de pais surdos, entre 1 ano e 6 meses a 2 anos e 6 meses de idade, identificaram-se processos classificados como substituição, afetando, inclusive, mais de um parâmetro no mesmo sinal e mais da metade envolvia o parâmetro configuração de mão(1616 Bento NA. Os parâmetros fonológicos: configuração de mãos, ponto de articulação e movimento na aquisição da língua brasileira de sinais: um estudo de caso [dissertação]. Salvador, BA: Universidade Federal da Bahia; 2010. ).

Na ocasião da criação e aplicação do “Instrumento de avaliação fonológica da língua de sinais brasileira: FONOLIBRAS”, quatro crianças surdas, filhas de pais ouvintes, com faixa etária entre 6 e 12 anos, apresentaram processos fonológicos classificados como: epêntese, elisão, metátese e assimilação(1717 Costa RCR. Proposta de instrumento para a avaliação fonológica da língua brasileira de sinais: FONOLIBRAS [dissertação]. Salvador, BA: Universidade Federal da Bahia; 2012. ).

Em outra aplicação do “Instrumento de avaliação da consciência fonológica, parâmetro configuração, para crianças surdas utentes da Língua de Sinais Brasileiras”, detectou-se a presença de processos fonológicos na língua de sinais de uma menina surda com comorbidade neurológica, com idade de 5 anos e 10 meses, destacando-se que o parâmetro que teve mais mudanças, em relação à língua-alvo, foi configuração de mão(1818 Rizzon M, Vidor DCGM, Cruz CR. Avaliação de linguagem em um caso de associação entre surdez e paquigiria. Audiol Commun Res. 2013;18(3):220-30. http://dx.doi.org/10.1590/S2317-64312013000300012.
http://dx.doi.org/10.1590/S2317-6431201...
).

A ocorrência e o desaparecimento dos processos fonológicos devem obedecer a certa cronologia, logo, a persistência destes além da idade esperada configura atraso no processo de desenvolvimento e possível atipicidade(88 Teixeira ER. Os processos de simplificação fonológica na descrição do desenvolvimento de crianças falantes do português em situações aquisicionais típicas e atípicas. Prolíngua. 2015;10(1):79-92. ).

O desenvolvimento fonológico atípico pode ser classificado em(1919 Ferreira-Gonçalves G. Representação fonológica em uma abordagem conexionista: formalização dos contrastes encobertos. Let Hoje. 2008;43(3):61-8. ):

  • Desenvolvimento atrasado: a produção identifica-se com estágios mais iniciais de aquisição;

  • Desenvolvimento variável: produção com sobreposição de estágios (atrasada ou adiantada, em relação à produção normal);

  • Desenvolvimento diferente: produção com processos não constatados na aquisição normal.

A investigação e a distinção de cada processo fonológico nas línguas de sinais, quanto à normalidade e à atipia, ainda são um desafio(1717 Costa RCR. Proposta de instrumento para a avaliação fonológica da língua brasileira de sinais: FONOLIBRAS [dissertação]. Salvador, BA: Universidade Federal da Bahia; 2012. ). Ou seja, ainda é necessário o estabelecimento de parâmetros sobre a aquisição fonético-fonológica das línguas de sinais, que especifiquem quais processos fonológicos fazem parte do desenvolvimento, até que idade costumam ocorrer (processos típicos x idade) e, ainda, quais não são comuns no desenvolvimento (processos atípicos).

O objetivo da presente pesquisa foi descrever as características dos processos fonológicos encontrados na língua de sinais de pré-escolares surdos.

MÉTODOS

Esta pesquisa é parte do projeto de dissertação de mestrado aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal Fluminense sob nº 57068916.6.0000.5243. Todos os responsáveis pelos sujeitos envolvidos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Este artigo teve, como foco, os processos fonológicos ocorridos durante a tarefa de nomeação realizada pelos alunos do setor de Educação Infantil de uma instituição de ensino para surdos.

Foram convidados a participar da pesquisa 25 alunos surdos das turmas EI 3, EI 4 e EI 5, de ambos os gêneros, filhos de pais surdos ou ouvintes, recém-chegados, ou não, na instituição, inclusive os que apresentavam deficiência múltipla.

Foram excluídos da amostra, os alunos cujos responsáveis não autorizaram a participação (um aluno), os que se recusaram a participar (três alunos), os que abandonaram o teste (três alunos) e os que faltaram nas datas programadas para a coleta de dados (três alunos), totalizando, então, uma amostra de 15 pré-escolares surdos (n=15).

A coleta de dados foi realizada nas dependências do próprio setor de Educação Infantil, no ano de 2016, nos meses de outubro (primeira coleta) e dezembro (segunda coleta), pois, no caso da dissertação, investigou-se o efeito do produto final, um minicurso de formação profissional continuada, que propôs aos professores a incorporação de estimulação cognitiva e psicomotora em suas aulas, visando aprimorar a aquisição de Libras de seus alunos. Contudo, no presente artigo, optou-se por apresentar somente os dados da primeira etapa (outubro/2016), de modo a demonstrar o comportamento natural deste grupo, ou seja, livre de tais intervenções específicas.

O instrumento de avaliação utilizado foi o teste FONOLIBRAS(1717 Costa RCR. Proposta de instrumento para a avaliação fonológica da língua brasileira de sinais: FONOLIBRAS [dissertação]. Salvador, BA: Universidade Federal da Bahia; 2012. ), que consiste em nomear 50 figuras, por meio da língua de sinais. O tempo de avaliação individual não ultrapassou 15 minutos.

Foram realizadas filmagens por meio de um celular Sony, modelo Xperia Z3, enquanto a pesquisadora interagia, mostrando o fichário de figuras para a criança.

Posteriormente, conforme previsto pelo autor do teste FONOLIBRAS, por causa das variações linguísticas sociais, os sinais da folha de respostas precisaram ser adequados a Libras utilizada naquela comunidade surda.

Os vídeos foram analisados e foi realizada transcrição das respostas dos alunos em SignWriting (utilizando-se o programa SW-Edit).

As respostas foram classificadas, tal qual previsto pelo autor do teste, em: nomeação esperada, nomeação no mesmo campo semântico, nomeação ausente, ou sinal caseiro.

Quando ocorreram processos fonológicos nos sinais de Libras (nomeação esperada e nomeação no mesmo campo semântico), estes foram classificados em: assimilação, substituição, epêntese, elisão, ou metátese e especificados os parâmetros (configuração de mão, ponto de articulação, movimento, orientação e número de mãos** ** Por se tratar de tarefa de nomeação, o parâmetro expressão facial e/ou corporal não foi avaliado e “número de mãos”, também chamado de “arranjo de mãos”, apesar de ser menos reconhecido como parâmetro, foi incluído, pois, para fins deste estudo, foi bastante relevante. ) e a(s) mão(s) envolvida(s) (passiva, ativa ou ambas).

Para verificar a influência da variável gênero na produção de sinais de Libras com processos fonológicos, foi aplicado Teste t para amostras independentes e, para verificar a influência das variáveis idade e turma, foram aplicados testes ANOVA.

Os dados quantitativos foram dispostos em planilhas do software Excel e receberam tratamento de um profissional estatístico.

RESULTADOS

Com relação à influência da variável gênero na produção de sinais de Libras com processos fonológicos, verificou-se inexistência de evidências de que os pré-escolares do gênero feminino (média= 40,8 e desvio= 17,8) tenham apresentado mais desvios do que os pré-escolares do gênero masculino (média= 27,7 e desvio= 6,4) (p=0,111). Quanto à influência das variáveis idade e turma, constatou-se que não houve evidências de diferenças dos percentuais entre as idades (p=0,554), nem entre as turmas (p= 0,207) ( Tabela 1 ). Em outras palavras, não foi possível prever o desempenho diante das variáveis gênero, idade ou turmas às quais as crianças surdas pertenciam.

Tabela 1
Características dos sujeitos da amostra, com o respectivo desempenho

Sobre o comportamento do grupo (n=15) quanto ao percentual de sinais com processos fonológicos obteve-se média 35,53%, desvio padrão 15,50%, mínimo 14,89%, máximo 67,86% e mediana 35,00%, chamando a atenção o fato de que todos os sujeitos apresentaram processos fonológicos nos sinais ( Figura 1 ).

Figura 1
Distribuição do percentual de sinais de Libras com processo(s) fonológico(s) (n=15)

Foram encontrados processos fonológicos do tipo substituição, epêntese, elisão, metátese e assimilação ( Quadro 1 ).

Quadro 1
Classificação dos processos fonológicos, com respectivas definições e exemplos da amostra

Observou-se que o parâmetro configuração de mão foi o mais frequentemente afetado por processos fonológicos, seguido por ponto de articulação, movimento, orientação e, por último, número de mãos ( Figura 2 ).

Figura 2
Características dos processos fonológicos: parâmetro da língua de sinais envolvido

Por vezes, os sinais apresentaram mais de um tipo de processo fonológico, em mais de um parâmetro ( Quadro 2 ).

Quadro 2
Exemplos de sinais da amostra com mais de um tipo de processo fonológico, em mais de um parâmetro

O processo fonológico do tipo assimilação foi o mais frequente na produção dos sujeitos, seguido por substituição, epêntese, elisão e metátese ( Figura 3 ).

Figura 3
Características dos processos fonológicos: tipo

De um modo geral, os processos fonológicos ocorreram mais frequentemente na mão passiva, seguido por mão ativa e, menos frequentemente, em ambas as mãos ( Figura 4 ).

Figura 4
Características dos processos fonológicos: mão(s) envolvida(s)

DISCUSSÃO

Visto que os processos fonológicos apareceram na amostra de linguagem de todos os 15 sujeitos da pesquisa, pode-se afirmar que os dados confirmam tratar-se de algo universal, inato e natural(1010 Lima LM, Queiroga BAM. Aquisição fonológica em crianças com antecedentes de desnutrição. Rev CEFAC. 2017;9(1):13-20. http://dx.doi.org/10.1590/S1516-18462007000100003.
http://dx.doi.org/10.1590/S1516-1846200...
) e que estes processos são manifestados, também, no desenvolvimento linguístico de crianças surdas usuárias de língua de sinais (1111 Carvalho S, Moita M, Mineiro A. As palavras e os gestos que nos “tornam” humanos. Cadernos de Saúde. 2013;6:13-5. ).

Sobre fatores que influenciaram os resultados, apesar de ser esperado que crianças do gênero feminino, mais velhas e com maior grau de escolaridade, tenham melhor desempenho em linguagem, com menor quantidade de processos fonológicos do que seus pares do gênero masculino, mais novos e com menor grau de escolaridade, isto não se confirmou. Sendo assim, seria interessante investigar quais outros fatores poderiam influenciar o desempenho fonético-fonológico das crianças surdas, em fase de aquisição de língua de sinais.

Cabe lembrar que, dentre os sujeitos da pesquisa, havia tanto filhos de ouvintes, quanto de surdos usuários de Libras e, ainda, alunos recém-chegados, ou não, na instituição de ensino bilíngue. Consequentemente, somente tais variáveis já promovem enorme heterogeneidade de realidades linguístico-ambientais relativas à comunicação em Libras às quais foram e são expostas estas crianças.

Pesquisadores afirmaram que existe relação entre a experiência linguística inicial (o momento/idade de exposição ao idioma, a qualidade e a quantidade do estímulo linguístico), a memória de trabalho fonológica e os resultados de aquisição de linguagem(2020 Pierce LJ, Genesee F, Delcenserie A, Morgan G. Variations in phonological working memory: linking early language experiences and language learning outcomes. Appl Psycholinguist. 2017;38(6):1265-300. http://dx.doi.org/10.1017/S0142716417000236.
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). Portanto, uma limitação da presente pesquisa foi não ter previsto a necessidade de solicitar a autorização dos responsáveis para divulgar as variáveis que diziam respeito à experiência linguística e, assim, poder identificar se houve, ou não, correlação com o desempenho na articulação dos sinais.

Sobre as características dos processos fonológicos manifestados na amostra de pré-escolares surdos, confirmando os relatos da literatura científica (1313 Karnopp LB. Aquisição fonológica nas línguas de sinais. Let Hoje. 1997;32(4):147-62. ,1414 Karnopp LB. Aquisição fonológica na língua brasileira de sinais: estudo longitudinal de uma criança surda [tese]. Porto Alegre (RS): Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; 1999. ,1616 Bento NA. Os parâmetros fonológicos: configuração de mãos, ponto de articulação e movimento na aquisição da língua brasileira de sinais: um estudo de caso [dissertação]. Salvador, BA: Universidade Federal da Bahia; 2010. ,1818 Rizzon M, Vidor DCGM, Cruz CR. Avaliação de linguagem em um caso de associação entre surdez e paquigiria. Audiol Commun Res. 2013;18(3):220-30. http://dx.doi.org/10.1590/S2317-64312013000300012.
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), ocorreram mais dificuldades (mais processos fonológicos) no parâmetro configuração de mão. Este fato poderia ser justificado pelo elevado grau de desenvolvimento de habilidades cognitivas (percepção visual, atenção e memória) e psicomotoras (tônus, equilíbrio, lateralidade, noção do corpo, estruturação espaço-temporal, coordenação motora ampla e fina) requeridas para recepção e expressão deste parâmetro.

Quanto aos tipos de classificação de processos fonológicos, foram encontrados todos os descritos em Libras, tanto por Bento (substituição) (1616 Bento NA. Os parâmetros fonológicos: configuração de mãos, ponto de articulação e movimento na aquisição da língua brasileira de sinais: um estudo de caso [dissertação]. Salvador, BA: Universidade Federal da Bahia; 2010. ), quanto por Costa (epêntese, elisão, metátese e assimilação) (1717 Costa RCR. Proposta de instrumento para a avaliação fonológica da língua brasileira de sinais: FONOLIBRAS [dissertação]. Salvador, BA: Universidade Federal da Bahia; 2012. ). Uma vez que cabem na classificação proposta por Teixeira (processos de substituição, processos modificadores estruturais e processos sensíveis ao contexto)(88 Teixeira ER. Os processos de simplificação fonológica na descrição do desenvolvimento de crianças falantes do português em situações aquisicionais típicas e atípicas. Prolíngua. 2015;10(1):79-92. ), podem ser considerados complementares.

A maior incidência de processos fonológicos foi do tipo assimilação, o que pode ser justificado pela tendência da mão não dominante espelhar (imitar) a mão dominante, levando à preferência por sinais com parâmetros iguais nas duas mãos, uma tendência da coordenação motora infantil, chamada “cumplicidade ou solidariedade”(2121 Meier RP. Modalidade e aquisição da língua: estratégias e restrições na aprendizagem dos primeiros sinais. In: Quadros RM, Vasconcelos MLB, organizadores. Questões teóricas das pesquisas em línguas de sinais. Florianópolis: Arara Azul; 2006. p. 211-24. ). Em outras palavras, a assimilação aparece diante da necessidade de dissociar movimentos, modificando o sinal, para driblar este tipo de dificuldade.

Quanto à maior tendência para manifestar processos fonológicos na mão passiva, observada nos resultados, seria mesmo esperada, já que, frequentemente, corresponde à mão não dominante que, por definição, seria a preterida para ações mais complexas, portanto menos hábil.

CONCLUSÃO

Considerando que os processos fonológicos são manifestações observadas durante o desenvolvimento da aquisição de linguagem infantil nas línguas de sinais, e que podem ser naturalmente suprimidos, ou não, merecem atenção que vise nortear ações avaliativas, preventivas e remediativas para a aquisição plena, por parte dos usuários destas línguas.

Acredita-se que os resultados desta pesquisa contribuam para a ampliação do conhecimento sobre as línguas de sinais, mais especificamente no que diz respeito ao nível linguístico fonético-fonológico, servindo como base para futuros estudos e práticas na área da surdez.

AGRADECIMENTOS

Ao Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), pelo apoio concedido para realização desta pesquisa.

  • Trabalho realizado no Instituto Nacional de Educação de Surdos – INES – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
  • Financiamento: Nada a declarar.
  • *
    Classe natural “[...] é o conjunto de segmentos que compartilham traços semelhantes e sofrem regras fonológicas comuns [...]”( 99 Schardosim CR, Trombetta N. Fonologia: breve histórico dos estudos no Estruturalismo e Gerativismo. Revista E-scrita. 2012;3(2A):17-31. : 27). No exemplo, tanto o fonema /s/, quanto o /t/, são produzidos por contato da língua na região alveolar e não ocorre vibração nas pregas vocais, mas diferenciam-se pelo traço relativo à sustentação de sopro, /s/ é [+contínuo] e /t/ é [-contínuo].
  • **
    Por se tratar de tarefa de nomeação, o parâmetro expressão facial e/ou corporal não foi avaliado e “número de mãos”, também chamado de “arranjo de mãos”, apesar de ser menos reconhecido como parâmetro, foi incluído, pois, para fins deste estudo, foi bastante relevante.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Diniz HG. A história da língua de sinais brasileira (libras): um estudo descritivo de mudanças fonológicas e lexicais [tese]. Florianópolis (SC): Universidade Federal de Santa Catarina; 2010.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Nov 2018
  • Data do Fascículo
    2018

Histórico

  • Recebido
    05 Set 2017
  • Aceito
    20 Mar 2018
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