RESUMO
Objetivo avaliar a percepção do contraste de vozeamento/sonoridade em laringectomizados totais, com fala traqueoesofágica, em relação à qualidade acústica da fonação alaríngea.
Métodos participaram 34 juízes que avaliaram audiogravações de três laringectomizados totais com fala traqueoesofágica,(ALA) - qualidade de fonação superior-ALAa; intermediária-ALAb e inferior-ALAc - e um com fonação laríngea (LAR). As amostras de fala avaliadas apresentaram pares de vocábulos (pata/bata; tata/data; cata/gata) que foram apresentados ao grupo de juízes para tarefas de identificação auditiva de 79 estímulos. Para avaliar a consistência intrajuízes, foram repetidos 10% dos estímulos da amostra, de forma aleatorizada. Os dados foram tratados de modo a gerar matrizes de confusão e índices de similaridade auditiva da percepção das consoantes plosivas vozeadas e não vozeadas dos quatro falantes. A partir de 34 respostas recebidas, 21 foram validadas, com base nos critérios de consistência (50% das repetições apresentadas).
Resultados amostras dos falantes com qualidade de fonação superior e intermediária geraram similaridade no padrão de respostas, com maiores índices de confusões na percepção de consoantes não vozeadas como vozeadas, enquanto as emissões do falante com qualidade de fonação inferior geraram maiores confusões de percepção das consoantes, tanto no vozeamento, quanto no ponto de articulação. Amostras do falante com fonação laríngea revelaram maior percepção de desvozeamento da consoante bilabial.
Conclusão a percepção do contraste de vozeamento em falantes traqueoesofágicos revelou-se relacionada à qualidade acústica dessa modalidade específica de fonação.
Palavras-chave:
Laringectomia; Voz alaríngea; Fonética; Percepção auditiva; Voz
ABSTRACT
Purpose To evaluate the perception of voicing contrast in total laryngectomized speakers, tracheoesophageal speech users, in relation to the acoustic quality of alaryngeal phonation.
Method Participants were 34 judges who evaluated audio recordings of three speakers with alaryngeal phonation - ALA (Superior phonation quality - ALAa; intermediate - ALAb and inferior - ALAc) and one with laryngeal phonation (LAR). The speech samples evaluated present pairs of words pata/bata; tata/data; cata/gata that were presented to the group of judges for auditory identification tasks.To assess intra-judge consistency, 10% of the sample stimuli were repeated in a randomized manner. The data were treated in order to generate confusion matrices and auditory similarity indices of the perception of the voiced and unvoiced plosive consonants of the 04 speakers. Of a total of 34 responses received, 21 had their responses validated, based on consistency criteria (50% of the repetitions presented).
Results The ALAa and ALAb speakers received a similar pattern of responses, with higher rates of confusion of voiceless consonants being perceived as voiced, while the emissions from the ALAc speaker generated greater confusion in the perception of consonants both in the voicing and place of articulation features. The voiceless bilabial consonants produced by LAR speakers were the most perceptible.
Conclusion The perception of voicing contrast in alaryngeal speakers was related to the acoustic quality of this phonation.
Conclusion
The perception of voicing contrast in alaryngeal speakers was related to the acoustic quality of this phonation.
Keywords:
Laryngectomy; Speech alaryngeal; Phonetics; Auditory perception; Voice
INTRODUÇÃO
A neoplasia de laringe gera um impacto socioemocional na vida do paciente(1-3). O câncer manifesta-se pelo crescimento desordenado de células atípicas em determinada parte do corpo(4). O diagnóstico tem início com um sintoma de rouquidão, podendo ser intermitente e, gradativamente, passar a constante, com combinação de sintomas de dispneia e/ou disfagia intensa, além de nódulos cervicais(5).
O exame clínico e a aplicação do sistema de classificação de tumores malignos (TNM) permitem o estadiamento da lesão, que será fundamental para definir as diretrizes do tratamento em suas modalidades cirúrgica, radioterápica e quimioterápica, além de suas combinações(6,7). Se necessária a retirada total do órgão, impactos consideráveis são estimados nos planos da comunicação oral e respiração, além do plano psíquico(8,9).
Na singular condição de perda total da laringe, o mecanismo vibratório de pregas vocais será substituído por outro padrão de vozeamento/sonoridade, o qual poderá impactar, em maior ou menor grau, aspectos segmentais e prosódicos, que tendem a comprometer a inteligibilidade da fala alaríngea. A prótese traqueoesofágica conta com dispositivo de uma válvula unidirecional que permite ao paciente direcionar o ar pulmonar expiratório para o esôfago. À medida que o ar passa para a parte superior do esôfago, o segmento faringoesofágico é colocado em um padrão vibratório, para emissão do discurso(9-13).
Tal mecanismo produz uma fonação de boa qualidade, devido ao uso de ar pulmonar, proporcionando uma voz com nível elevado de loudness quando comparada à fonação esofágica(1). Os valores de medidas acústicas de frequência fundamental (f0) média e de intensidade habitual média de tais emissões correspondem a valores considerados adequados para a comunicação oral(12).
A análise acústica é um instrumento utilizado pelas Ciências Fonéticas para o estudo da fala, caracterizando-se como um importante recurso para a investigação da qualidade vocal na fala de laringectomizados totais, usuários de prótese traqueoesofágica(13). A teoria acústica da produção da fala(14,15), que congrega o modelo linear fonte e filtro, concebe a produção da fala a partir da geração de uma (ou mais) fonte (s) de energia e a modificação desta por um filtro.
Os estudos de aspectos acústicos da produção de consoantes oclusivas por falantes alaríngeos com prótese traqueoesofágica concentraram as análises, em sua maioria, em medidas de duração, de maneira que outras medidas acústicas importantes para a compreensão da implementação do contraste de vozeamento não foram amplamente enfocadas. Em termos de percepção do contraste de vozeamento dos sons oclusivos e fricativos, foram desenvolvidos estudos que, por meio da identificação de sons-alvo na posição inicial de palavras, revelaram a dificuldade dos ouvintes leigos em identificar corretamente os sons consonantais solicitados, tipicamente reconhecendo sons não vozeados como vozeados(16-29).
A qualidade vocal, por sua vez, é um fenômeno perceptivo e, consequentemente, a avaliação perceptiva é considerada o padrão ouro de avaliação clínica. As desvantagens apontadas para a avaliação perceptiva residem em possíveis divergências entre os ouvintes sobre a qualidade vocal, especialmente em função da sua formação e experiência. Tais demandas levam os pesquisadores a adotarem critérios de confiabilidade inter e intraexaminadores em suas pesquisas(26).
Em pesquisa(27) com base na avaliação fonética por meio do roteiro Vocal Profile Analysis Scheme – VPAS(28) em casos de restrições anatômicas por laringectomia subtotal, em grupos de falantes divididos por períodos de pós-operatório recente e tardio, dentre os achados no período pós-operatório recente, destacaram-se os ajustes de qualidade vocal de lábios, de mandíbula e de corpo de língua com extensão diminuída e constrição faríngea. Além disso, os ajustes de hiperfunção do trato vocal e laríngea apresentaram-se em todos os pacientes. Na dimensão da dinâmica vocal, foram descritos pitch habitual elevado, pitch e loudness com extensão diminuída e suporte respiratório inadequado.
Os desvios de percepção auditiva gerados pela fonação alaríngea são reconhecidos clinicamente, reforçando a necessidade de um estudo que analise o impacto da qualidade de vocal da atividade fonatória dessa população que possa futuramente gerar avanço nos conhecimentos percepção da fala. Além disso, estimulam a discussão e o refinamento de recursos terapêuticos para esta população, especialmente no tocante à habilidade comunicativa dos sujeitos submetidos à laringectomia total.
Tal achado reforça a relevância da pesquisa que enfoca o contraste de vozeamento/sonoridade da produção das consoantes oclusivas no grupo de falantes alaríngeos, possibilitando a investigação de mecanismos de compensação da fala que utilizam.
Levando em consideração algumas características acústicas da fala traqueoesofágica apresentadas na literatura, como pitch e loudness reduzidos, acompanhadas de um alto grau de rugosidade/aspereza e por fim, a sonorização de consoantes oclusivas não vozeadas/surdas, o presente estudo explorou o impacto da laringectomia total e da qualidade da fonação alaríngea da fala traqueoesofágica, na percepção das consoantes oclusivas do português brasileiro, focando no impacto que tal sonoridade diferenciada pode gerar nos ouvintes. Para tanto, pautou-se em estudo prévio da produção das consoantes oclusivas do português brasileiro, no tocante à implementação do contraste de vozeamento(13), e nos preceitos teóricos da Fonética Acústica e Perceptiva, com base na integração de mecanismos de percepção e de produção sonora(29).
O presente estudo teve como objetivo geral avaliar a percepção do contraste de vozeamento/sonoridade em laringectomizados totais com fala traqueoesofágica, em relação à qualidade acústica da fonação alaríngea.
MÉTODOS
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – CEP-PUC/SP, sob o número CAAE 0940114.0.0000.5482.
O corpus da pesquisa foi composto por julgamentos perceptivos de audiogravações disponíveis no banco de dados do laboratório da instituição, constituído por amostras de fala de 17 sujeitos laringectomizados totais do gênero masculino que faziam uso da prótese traqueoesofágica fixa de baixa resistência unidirecional ao fluxo de ar da marca Provox® e cinco falantes laríngeos da mesma faixa etária e grupo sociais. O material foi coletado a partir de pesquisa anterior(15) e integrado ao banco de dados de qualidade vocal.
Os critérios de inclusão das amostras dos falantes alaríngeos referiram-se a: terem sido submetidos aos procedimentos cirúrgicos de laringectomia total por carcinoma espinocelular (CEC) de laringe e de confecção primária da fístula traqueoesofágica (FTE), com posterior inserção da prótese traqueoesofágica (PTE) e utilizarem FTE como meio predominante de comunicação.
Para o presente estudo foram selecionadas amostras de audiogravações de quatro falantes do gênero masculino, sendo três falantes alaríngeos e um falante laríngeo. Os três falantes alaríngeos (ALA) tiveram suas amostras previamente qualificadas em uma escala de qualidade da fonação especificada, por meio da análise acústica(13), optando-se pela seleção das amostras de um falante alaríngeo de qualidade de fonação superior (nomeado ALAa), um de qualidade intermediária (nomeado ALAb) e um de qualidade inferior (nomeado ALAc), a partir de parâmetros acústicos de duração, de frequência fundamental, de frequências e de transições formânticas de vogais, numa exploração dinâmica da fala, que contemplou análise de segmentos consonantais e de sons adjacentes vocálicos(13). As amostras do falante laríngeo (LAR) foram adotadas como referência de parâmetros do português brasileiro (PB) para a faixa etária em questão, respeitando-se os mesmos parâmetros sociofonéticos dos falantes alaríngeos.
A estruturação do corpus pautou-se na estrutura silábica e acentual mais frequente no português brasileiro (dissílabo paroxítono). Dessa forma, foram selecionados seis vocábulos dissílabos e paroxítonos, com a estrutura CVCV (consoante oclusiva – vogal – consoante oclusiva - vogal), com contrastes de vozeamento/sonoridade entre si – (pata e bata; tata e data; cata e gata), em três repetições efetuadas por cada falante, totalizando 79 amostras.
As amostras de audiogravações foram etiquetadas, editadas e anotadas no programa PRAAT, versão 6.2.17(30). As palavras-alvo das sentenças-veículo (contendo as combinações CVCV mencionadas) foram individualmente editadas, acrescentando-se um intervalo de silêncio de cinco segundos ao início e ao final de cada palavra. Tais estímulos de áudio foram convertidos em formato de vídeo para um canal do Youtube®, de onde foram associados a um formulário eletrônico (Google Forms), para a realização de enquete eletrônica (Teste de Percepção da Fala Alaríngea). Foram sorteados sete estímulos (10% do total) para apresentação de forma repetida e aleatorizada na ordem do teste, para análise da consistência intrajuízes.
A aplicação do teste foi realizada em formulário eletrônico, com a divulgação do convite para responder ao Teste de Percepção da Fala Alaríngea pelas redes sociais WhatsApp®, Instagram®, Facebook® e em eventos da área. Todos os participantes do teste de percepção expressaram sua concordância para o uso das respostas ao assinarem digitalmente o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), em que foram descritas as responsabilidades e orientações para a realização do teste.
Quanto aos 34 juízes participantes do estudo, a média de idade foi de 31 anos, mínima de 18 e máxima de 57. Por critério de conveniência, os participantes eram estudantes de Fonoaudiologia ou fonoaudiólogos, destes, dez com experiência em Fononcologia e dez com pós-graduação stricto sensu. Todos os participantes eram falantes nativos do português brasileiro, com autorreferência à normalidade da função auditiva.
O teste de percepção auditiva neste estudo foi um teste de reconhecimento de palavras ausentes de um contexto linguístico. Apresentou 79 estímulos com contrastes de vozeamento/sonoridade entre si (pata e bata; tata e data; cata e gata), distribuídos em ordem de apresentação aleatorizada, tanto com relação aos vocábulos apresentados, quanto aos falantes. O teste de reconhecimento de palavras não apresentou nenhum distrator, e nem limites para ouvir o estímulo auditivo antes da apresentação da resposta. O tempo médio previsto de duração da execução do teste de percepção foi de 15 minutos, informação veiculada previamente à sua execução, junto ao convite para participação.
Ao todo, 34 juízes responderam ao teste de forma completa e contemplaram os critérios iniciais para composição do grupo de juízes do Teste de Percepção da Fala Alaríngea. Foi estabelecida como critério de inclusão no grupo de respostas válidas a consistência de respostas em, pelo menos, quatro das sete repetições de estímulos apresentados. Ou seja, o juiz teria suas respostas validadas e tabuladas na íntegra apenas se revelasse consistência na resposta em um patamar superior a 50% das amostras repetidas. Ao final da primeira etapa de análise das respostas, 21 juízes tiveram suas respostas consideradas válidas para a análise de dados do Teste de Percepção da Fala Alaríngea.
Os dados foram tratados de forma a apresentar compor as matrizes de confusão, a partir das quais foram calculados os índices de similaridade das consoantes oclusivas. Tal metodologia de análise, bem como as discussões dos achados perceptivos foram pautadas em estudos da Fonética Perceptiva(29), tomando-se como base, incialmente, o cálculo relativo dos julgamentos perceptivos por consoante avaliada da matriz de confusão gerada, seguindo-se da aplicação do método de Shepard para cálculo da similaridade dos pares de consoantes eleitas: ([p] e [b]; [t] e [d]; [k] e [g]), adotando-se a razão entre os desvios de percepção produzidos entre os dois sons e as respostas corretas. A título de exemplo, apresenta-se a fórmula para cálculo de similaridade entre [p] e [b], em que Spb indica a similaridade entre [p] e [b], como base no cálculo da razão da soma dos desvios de percepção produzidos entre [p], sendo identificado como [b] (Ppb) e [b], sendo identificado como [p] (Pbp) pela soma dos acertos gerados para [p] (Ppp) e [b] (Pbb) (1) :
Os dados foram apresentados por meio das matrizes de confusão e valores de similaridade e discutidos com base na vertente perceptiva das Ciências Fonéticas.
RESULTADOS
Os resultados de percepção auditiva dos segmentos [p] e [b] / [t] e [d] / [k] e [g] nas respectivas palavras-chave apresentadas no Teste de Percepção da Fala Alaríngea (pata e bata; tata e data; cata e gata) são apresentados a partir de matrizes de confusão constituídas para cada um dos falantes alaríngeos (ALAa, ALAb e ALAc) e do falante laríngeo (LAR), respectivamente nas Tabelas 1, 2, 3 e 4.
Matriz de confusão dos julgamentos perceptivo-auditivos das produções do falante alaríngeo com qualidade de fonação superior quanto à implementação do contraste de vozeamento das consoantes oclusivas por um grupo de ouvintes com formação em Fonoaudiologia
Matriz de confusão dos julgamentos perceptivo-auditivos das produções do falante alaríngeo com qualidade de fonação intermediária quanto à implementação do contraste de vozeamento das consoantes oclusivas por um grupo de ouvintes com formação em Fonoaudiologia
Matriz de confusão dos julgamentos perceptivo-auditivos das produções do falante alaríngeo com qualidade de fonação inferior no tocante à implementação do contraste de vozeamento das consoantes oclusivas por um grupo de ouvintes com formação em Fonoaudiologia
Matriz de confusão dos julgamentos perceptivo-auditivos das produções do falante laríngeo no tocante à implementação do contraste de vozeamento das consoantes oclusivas por um grupo de ouvintes com formação em Fonoaudiologia
Os resultados de percepção auditiva são apresentados com base no cálculo da similaridade auditiva por pares de consoantes contrastivas em vozeamento/sonoridade para cada um dos falantes alaríngeos (ALAa, ALAb e ALAc) e do falante laríngeo (LAR) estudados, na Tabela 5.
Índices de similaridades auditiva das consoantes oclusivas produzidas pelos falantes alaríngeos e pelo falante laríngeo a partir dos julgamentos perceptivo-auditivos por um grupo de ouvintes com formação em Fonoaudiologia
DISCUSSÃO
Na continuidade do estudo(13), buscou-se investigar as interferências do novo padrão fonatório na comunicação dos pacientes e estimular os fonoaudiólogos a adotarem condutas que colaborem para a superação de tais dificuldades, analisando a percepção das consoantes plosivas do português brasileiro na fala de laringectomizados totais com PTE.
Os dados do falante ALAa (qualidade superior de fonação alaríngea – Tabela 1) revelaram confusões no tocante à percepção do contraste de vozeamento, de maneira decrescente do par [p] e [b] em direção ao par [t] e [d] até o par [k] e [g], praticamente sem detecção de confusões perceptivas relativas ao ponto de articulação. Interessante observar que a percepção do contraste foi superior à medida em que ponto de articulação era posterior. Entende-se que, para a percepção, a integração de pistas acústicas e articulatórias é fundamental. Os dados de similaridade perceptiva por pares em contraste de vozeamento nas consoantes [p] e [b] revelaram-se mais próximas, seguidas de [t] e [d], apontando que, mesmo na vigência de condições superiores de qualidade de fonação alaríngea, há aspectos articulatórios a se valorizar no acompanhamento fonoaudiológico(13-16).
Os dados do falante ALAb (qualidade intermediária de fonação alaríngea - Tabela 2) revelaram confusões no tocante à percepção do contraste de vozeamento, de maneira decrescente do par [t] e [d] em direção ao par [k] e [g] até o par [p] e [b], similarmente a ALAa, praticamente sem detecção de confusões perceptivas relativas ao ponto de articulação. Esse falante apresentava como diferencial o fato de ter sido submetido à radioterapia. Sua faixa etária era muito próxima à do falante ALAa, sendo os dois de idades mais avançadas no grupo. Os dados de similaridade perceptiva por pares em contraste de vozeamento revelaram os menores índices de similaridade do grupo, com maior proximidade prevista para o par [t] e [d], novamente revelando padrões similares a ALAa(17-20).
Guardadas as particularidades, os falantes ALAa e ALAb apresentaram similaridade no padrão de respostas geradas no grupo de ouvintes. Os dados do falante ALAc (qualidade inferior de fonação alaríngea - Tabela 3) segregaram-no do grupo dos falantes alaríngeos, revelando que as confusões de percepção das consoantes não vozeadas (identificadas como vozeadas) superou o índice de acertos. Além disso, confusões relativas ao ponto de articulação, especialmente da consoante velar [g] foram geradas, de maneira que a quantidade de respostas agrupadas na categoria “outros” foi superior à dos demais falantes alaríngeos e ao falante laríngeo(21,22). Destaca-se que se tratava do paciente mais jovem no grupo de falantes alaríngeos, sem associação a tratamentos adjuvantes, como radioterapia ou quimioterapia.
Os dados de similaridade perceptiva por pares em contraste de vozeamento (Tabela 5) revelaram os maiores índices de proximidade auditiva para todos os pares de consoantes, especialmente para as mais anteriores [p] e [b]; e [t] e [d]. Destaca-se que os maiores valores gerais de similaridade foram revelados no falante em questão, apontando que, na vigência de condições inferiores de qualidade de fonação alaríngea, a capacidade de percepção do contraste de vozeamento/ sonoridade, e mesmo do ponto de articulação, foi afetada de maneira relevante, indicando a demanda por desenvolvimento de estratégias de acompanhamento clínico, para tornar a fala mais inteligível.
Finalmente, no tocante aos dados do falante laríngeo LAR (Tabela 4), cabe reforçar que foi adotado como uma referência à percepção dos sons do português brasileiro na faixa etária em questão, e também como uma forma de se inserir estímulos mais familiares aos ouvintes e ajudam a dimensionar o grau de dificuldade imposto aos ouvintes no Teste de Percepção da Fala Alaríngea. Os dados revelaram interessante condição com relação à confusão de percepção, no sentido do desvozeamento de [b], algo mais típico da fala laríngea, especialmente na fala infantil. Algumas poucas confusões foram esboçadas com relação à percepção de vozeamento de [t] e de [k], entretanto, em magnitude inferior em relação aos falantes alaríngeos.
Da mesma forma, não foram detectadas confusões perceptivas relativas ao ponto de articulação. Os dados de similaridade perceptiva por pares em contraste de vozeamento revelaram que o par [p] e [b] apontou índice de similaridade, diferentemente de [t] e [d]; e [k] e [g], reforçando, portanto, que não apenas a condição de fonação alaríngea pode gerar confusões na percepção de fala de adultos da faixa etária em foco(23,24).
Diante do detalhamento apresentado, a hipótese esboçada de que a qualidade da fonação alaríngea possa interferir na percepção da implementação do contraste de vozeamento/sonoridade das consoantes oclusivas do português brasileiro foi confirmada pelos dados apresentados, ressaltando-se que há outros elementos que também podem influenciar a produção da fala de tais sujeitos, impactando a geração do sinal acústico e, consequentemente, afetar a percepção de ouvintes com experiência na escuta de dados de fala(25-27).
Tais fatores podem estar relacionados à idade e às consequentes alterações estruturais do aparelho fonador, além de possível quadro de presbiacusia, que também pode levar os falantes alaríngeos (e laríngeos, inclusive) a apresentarem dificuldades em controlar aspectos refinados da composição de gestos de fala. No fator idade, há que se destacar que falantes alaríngeos também podem apresentar sinais de presbifonia, pelos efeitos da senescência sobre o “novo aparelho fonador”.
Na dimensão teórica delineada, buscou-se não somente quantificar erros e acertos em direção a um alvo, mas qualificar e compreender a complexa relação de percepção e produção de fala numa população com características tão particulares. Tal abordagem permitiu romper com a classe dicotômica de produções de fala normal x alterada ou típica x atípica, caminhando para o reconhecimento de um detalhado mapeamento das relações de percepção e produção de fala alaríngea, em condições peculiares.
A abordagem aqui delineada visou não somente apontar “erros” de produção e de percepção de fala, mas entender como as esferas de produções e de percepção de fala se entrelaçavam em cada um dos falantes estudados(13). A continuidade de estudos em novos grupos de falantes poderá ajudar a reforçar os achados dessa etapa inicial de investigações.
Esta pesquisa debruçou-se sobre ouvintes especificados, representados por um grupo de juízes fonoaudiólogos formados e em formação. Em uma próxima etapa de pesquisas será interessante incluir o público leigo, como grupo de juízes (ouvintes), como forma de se dimensionar o impacto na comunicação diária dos falantes alaríngeos.
CONCLUSÃO
A percepção do contraste de vozeamento em falantes alaríngeos que utilizavam a prótese traqueoesofágica (PTE) revelou-se relacionada à qualidade acústica dessa modalidade específica de fonação.
Especificamente com relação à percepção da implementação do contraste de vozeamento em falantes alaríngeos que utilizam a prótese traqueoesofágica (PTE) em condições diferenciadas de qualidade da fonação alaríngea, foi possível detectar confusões perceptivas no sentido de vozeamento das consoantes oclusivas como não vozeadas em menor proporção nas qualidades superior e intermediária de fonação. Na condição de qualidade inferior de fonação, por sua vez, as confusões geradas tenderam a superar os acertos na dimensão do contraste de vozeamento.
Estudos de percepção de fala alaríngea são relevantes ao cenário da atividade clínica em Fononcologia, a partir do momento que colaboram para o impacto na percepção de fala das emissões que fogem ao padrão familiar de escuta diária.
-
Trabalho realizado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP – São Paulo (SP), Brasil.
-
Disponibilidade de dados:
Os dados de pesquisa estão disponíveis no corpo do artigo.
-
Financiamento:
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – bolsa de Produtividade em Pesquisa - CNPq-Pq, nº 311596/2022-3. Plano de Incentivo à Pesquisa – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PIPEq-PUC-SP, nº 21945.
REFERÊNCIAS
- 1 Carrara de Angelis E, Lemos Barbosa Furia C, Figueiredo Mourão L, Paulo Kowalski L. A atuação da fonoaudiologia no câncer de cabeça e pescoço. São Paulo: Lovise; 2000.
- 2 Davatz GC. Reabilitação vocal e qualidade de vida em laringectomizados totais [dissertação]. São Carlos: Universidade de São Paulo; 2011.
- 3 Pinho SMR. Fundamentos em fonoaudiologia: tratando os distúrbios da voz. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan S.A; 2003.
- 4 da Silva Santos CC. Próteses fonatórias em doentes laringectomizados: o regresso da voz [dissertação]. Lisboa: Universidade de Lisboa; 2020.
- 5 Barros APB. Reabilitação na laringectomia total. In: da Silva Cleto ML. Fonoaudiologia em cancerologia. São Paulo: Fundação Oncocentro de São Paulo; 2000. p. 286.
-
6 UICC: Union for International Cancer Control. TNM Classification of Malignant Tumours [Internet]. 2024 [citado em 2024 Dez 3]. Disponível em: https://www.uicc.org/resources/tnm
» https://www.uicc.org/resources/tnm -
7 UICC: Union for International Cancer Control. About UICC [Internet]. 2024. [citado em 2024 Dez 3]. Disponível em: https://www.uicc.org/who-we-are/about-uicc
» https://www.uicc.org/who-we-are/about-uicc -
8 Cocuzza S, Maniaci A, Grillo C, Ferlito S, Spinato G, Coco S, et al. Voice-related quality of life in post-laryngectomy rehabilitation: tracheoesophageal Fistula’s Wellness. Int J Environ Res Public Health. 2020 Jun 26;17(12):4605. http://doi.org/10.3390/ijerph17124605 PMid:32604875.
» http://doi.org/10.3390/ijerph17124605 -
9 Dornelas do Carmo R, Camargo Z, Némr K. Relação entre qualidade de vida e auto-percepção da qualidade vocal de pacientes laringectomizados totais: estudo piloto. Rev CEFAC. 2006 Out;8(4):518-28. http://doi.org/10.1590/S1516-18462006000400013
» http://doi.org/10.1590/S1516-18462006000400013 -
10 McColl DA. Intelligibility of tracheoesophageal speech in noise. J Voice. 2006;20(4):605-15. http://doi.org/10.1016/j.jvoice.2005.09.005 PMid:16377128.
» http://doi.org/10.1016/j.jvoice.2005.09.005 - 11 Cristina de Oliveira Cardoso E. Avaliação acústica da fala alaríngea [dissertação]. Porto: PSuperior de Engenharia do Porto; 2019.
- 12 de Assis Moura Ghirardi AC. Laringectomizados usuários de prótese traqueoesofágica: princípios e métodos da prática fonoaudiológica [dissertação]. São Paulo: Universidade Católica de São Paulo; 2007.
- 13 dos Reis N. Estudo acústico da fala traqueoesofágica [tese]. São Paulo: Universidade Católica de São Paulo; 2018.
- 14 Fant G. Acoustic theory of speech production. 2nd ed. Paris: Mouton Hague Paris; 1970.
- 15 Barbosa PA, Madureira S. Manual de fonética acústica experimental: aplicações a dados do português. São Paulo: Cortez.
-
16 Doyle PC, Danhauer JL, Reed CG. Listeners’ perceptions of consonants produced by esophageal and tracheoesophageal talkers. J Speech Hear Disord. 1988 Nov;53(4):400-7. http://doi.org/10.1044/jshd.5304.400 PMid:3184901.
» http://doi.org/10.1044/jshd.5304.400 - 17 Doyle PC, Haaf RG. Perception of pre-vocalic and post-vocalic consonants produced by tracheoesophageal speakers. J Otolaryngol. 1989 Dez;18(7):350-3. PMid:2593219.
-
18 Miralles JL, Cervera T. Voice intelligibility in patients who have undergone laryngectomies. J Speech Lang Hear Res. 1995 Jun;38(3):564-71. http://doi.org/10.1044/jshr.3803.564
» http://doi.org/10.1044/jshr.3803.564 -
19 Searl JP, Carpenter MA, Banta CL. Intelligibility of stops and fricatives in tracheoesophageal speech. J Commun Disord. 2001 Ago;34(4):305-21. http://doi.org/10.1016/S0021-9924(01)00052-1 PMid:11508897.
» http://doi.org/10.1016/S0021-9924(01)00052-1 -
20 Jongmans P, Wempe TG, van Tinteren H, Hilgers FJ, Pols LC, van As-Brooks CJ. Acoustic analysis of the voiced-voiceless distinction in dutch tracheoesophageal speech. J Speech Lang Hear Res. 2010 Abr;53(2):284-97. http://doi.org/10.1044/1092-4388(2009/08-0252) PMid:20360458.
» http://doi.org/10.1044/1092-4388(2009/08-0252) - 21 Sleeth LE. Exploring intelligibility in tracheoesophageal speech. A descriptive analysis [dissertation]. Ontario: The University of Western; 2012.
- 22 Calzolari Soto N, de Carvalho Teles V, Erina Fukuyama É. Avaliação perceptivo-auditiva e acústica da voz traqueoesofágica. Rev CEFAC. 2005;7(4):496-502.
-
23 Miralles JL, Cervera T. Voice Intelligibility in patients who have undergone laryngectomies. J Speech Hear Res. 1995 Jun;38(3):564-71. http://doi.org/10.1044/jshr.3803.564 PMid:7674648.
» http://doi.org/10.1044/jshr.3803.564 -
24 Searl JP, Carpenter MA, Banta CL. Intelligibility of stops and fricatives in tracheoesophageal speech. J Commun Disord. 2001 Jul;34(4):305-21. http://doi.org/10.1016/S0021-9924(01)00052-1 PMid:11508897.
» http://doi.org/10.1016/S0021-9924(01)00052-1 -
25 Cleybe Hiole Vieira C, Madureira S. Fala esofágica: dados anatomofisiológicos e acústicos. In: Camargo Z, organizador. Fonética clínica: interações [Internet]. São José dos Campos: Pulso Editorial; 2022 [citado em 2024 Dez 3]. p. 159. Disponível em: https://cienciaaberta.org/download/coletanea-fonetica-clinica-interacoes/
» https://cienciaaberta.org/download/coletanea-fonetica-clinica-interacoes/ -
26 van As-Brooks CJ, Koopmans-van Beinum FJ, Pols LC, Hilgers FJ. Acoustic signal typing for evaluation of voice quality in tracheoesophageal speech. J Voice. 2006;20(3):355-68. http://doi.org/10.1016/j.jvoice.2005.04.008 PMid: 16185840.
» http://doi.org/10.1016/j.jvoice.2005.04.008 -
27 Barbosa Lemos Fúria C, Silva de Freitas A, Nery Teles Nogueira Silva G, Dornelas R, Camargo Z. Avaliação fonética de fala nos casos de restrições anatômicas: laringectomia subtotal. In: Camargo Z, editor. Fonética clínica: interações [Internet]. São José dos Campos: Pulso Editorial; 2022 [citado em 2024 Dez 3]. p. 159. Disponível em: https://cienciaaberta.org/download/coletanea-fonetica-clinica-interacoes/
» https://cienciaaberta.org/download/coletanea-fonetica-clinica-interacoes/ - 28 Laver J, Wirz S, Mackenzie J, Hiller S. A perceptual protocol for the analysis of vocal profiles. Edinburgh: Department of Linguistics; Edinburgh University; 1981. p. 139-55. (Work in Progress; no. 14).
-
29 Johnson K. Acoustic and auditory phonetics. Phonetica. 2004;61(1):56-8. http://doi.org/10.1159/000078663
» http://doi.org/10.1159/000078663 -
30 Boersma P, Weeninck P. Praat: doing phonetics by computer [Internet]. 2006 [citado em 2024 Dez 3]. Available from: https://www.fon.hum.uva.nl/praat
» https://www.fon.hum.uva.nl/praat
Editado por
-
Editor-Chefe:
Renata Mota Mamede Carvallo.
-
Editor Associado:
Leonardo Wanderley Lopes.
Disponibilidade de dados
Os dados de pesquisa estão disponíveis no corpo do artigo.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
11 Jul 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
03 Dez 2024 -
Aceito
07 Mar 2025
