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COVID-19 - Fonoaudiologia em emergências e catástrofes

A pandemia provocada pelo COVID-19 levou a Fonoaudiologia a enfrentar desafios inéditos. Esta carta relata a forma que determinado grupo de professores, alunos e fonoaudiólogos da linha de frente reagiram frente à nova demanda assistencial.

As emergências e/ou catástrofes podem ser definidas como “um evento natural, ou provocado pelo homem, que envolve um grande número de vítimas e gera dano às pessoas, estruturas e/ou ambiente”. No início de dezembro de 2019, foi detectada a ocorrência de casos de infecções de vias respiratórias, muitos deles com pneumonia, na região Sudeste da China, na cidade de Wuhan, Província de Hubei(11 Wu Z, McGoogan JM. Characteristics of and important lessons from the Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) Outbreak in China: Summary of a Report of 72 314 cases from the Chinese Center for Disease Control and Prevention. JAMA. 2020;323(13):1239-42. http://dx.doi.org/10.1001/jama.2020.2648. PMid:32091533.
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,22 Zhu N, Zhang D, Wang W, Li X, Yang B, Song J, et al. A Novel Coronavirus from Patients with Pneumonia in China, 2019. N Engl J Med. 2020;382(8):727-33. http://dx.doi.org/10.1056/NEJMoa2001017. PMid:31978945.
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). Em seguida, foi identificado o agente etiológico, mais tarde nomeado SARS-CoV-2 (Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus(22 Zhu N, Zhang D, Wang W, Li X, Yang B, Song J, et al. A Novel Coronavirus from Patients with Pneumonia in China, 2019. N Engl J Med. 2020;382(8):727-33. http://dx.doi.org/10.1056/NEJMoa2001017. PMid:31978945.
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,33 Ellul MA, Benjamin L, Singh B, Lant S, Michael BD, Easton A, et al. Neurological associations of COVID-19. Lancet Neurol. 2020;19(9):767-783. https://doi.org/10.1016/S1474-4422(20)30221-0.
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). Este novo betacoronavírus, com ancestral em morcegos, causa doença respiratória que pode levar à morte, denominada COVID-19 (Coronavirus Disease) pela Organização Mundial da Saúde. Diante da rápida disseminação do SARS-CoV-2(44 Duncan S, Gaughey JM, Fallis R, McAuley DF, Walshe M, Blackwood B. Interventions for oropharyngeal dysphagia in acute and critical care: A protocol for a systematic review and meta-analysis. Syst Rev. 2019;8(1):283. http://dx.doi.org/10.1186/s13643-019-1196-0. PMid:31747971.
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) e da significativa mortalidade por COVID-19, especialmente em pacientes de mais idade(22 Zhu N, Zhang D, Wang W, Li X, Yang B, Song J, et al. A Novel Coronavirus from Patients with Pneumonia in China, 2019. N Engl J Med. 2020;382(8):727-33. http://dx.doi.org/10.1056/NEJMoa2001017. PMid:31978945.
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,55 Matar N, Smaily H, Cherfane P, Hanna C. Profiling of oropharyngeal dysphagia in an acute care hospital setting. Ear Nose Throat J. 2020:1-5. http://dx.doi.org/10.1177/0145561320917795. PMid:32242742.
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), foi imperativo o desenvolvimento de estratégias para estudo do vírus e da doença. Na maioria dos estados brasileiros, os hospitais de médio e grande porte formaram grupos multiprofissionais que pudessem dar respostas rápidas e guiar as estratégias de vigilância, diagnóstico, tratamento e prevenção da COVID-19.

Como integrantes da Divisão de Fonoaudiologia de um hospital público de grande porte em São Paulo, Capital, tivemos a oportunidade de desenvolver um projeto para o gerenciamento da pandemia, que envolveu pacientes, alunos e profissionais da nossa área. O projeto foi executado na forma:

  1. 1

    Assistência fonoaudiológica imediata aos pacientes com COVID-19. Sabíamos que a condição clínica agravada do paciente com COVID-19 exigiria a internação em unidades de terapia intensiva. A pandemia aumentaria o número de pacientes que necessitariam de traqueostomia, intubação orotraqueal e ventilação mecânica prolongada. Esses procedimentos são comuns nas unidades de terapia intensiva e poderiam levar aos danos, supra e infraglóticos, que implicam o comprometimento da deglutição dos pacientes(66 Phua J, Weng L, Ling L, Egi M, Lim C-M, Divatia JV, et al. Intensive care management of coronavirus disease 2019 (COVID-19): Challenges and recommendations. Lancet Respir Med. 2020;8(5):506-517. https://doi.org/10.1016/ S2213-2600(20)30161-2.
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    7 Medeiros GC, Sassi FC, Mangilli LD, Zilberstein B, Andrade CR. Clinical dysphagia risk predictors after prolonged orotracheal intubation. Clinics. 2014;69(1):8-14. http://dx.doi.org/10.6061/clinics/2014(01)02. PMid:24473554.
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    -88 Lima MS, Sassi FC, Medeiros GC, Ritto AP, Andrade CRF. Preliminary results of a clinical study to evaluate the performance and safety of swallowing in critical patients with COVID-19. Clinics. 2020;75:e2021. http://dx.doi.org/10.6061/clinics/2020/e2021. PMid:32555948.
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    ). Assim, a disfagia era prevista para grande parte dos pacientes com COVID-19, mas não sabíamos como seria o comportamento clínico dos pacientes. Embora não soubéssemos se haveria a nossa entrada imediata na UTI/COVID, nos preparamos para avaliar e tratar os pacientes que a equipe nos encaminhasse. Esse preparo incluiu os seguintes parâmetros de segurança: atenderíamos aos pacientes adultos (≥18 anos), em estabilidade clínica e respiratória, com pontuação na Escala de Coma Glasgow de ≥14 pontos; usaríamos os protocolos validados: SOFA, ASHA NOMS e PARD. Se não fosse viável aplicá-los integralmente, faríamos o que fosse possível;

  2. 2

    Formação emergencial dos alunos da graduação; especialização e residência da FONO-HCFMUSP para o possível atendimento aos pacientes com COVID-19. Não sabíamos se haveria a necessidade de aumentar o número de fonoaudiólogos na linha de frente dos atendimentos. O nosso corpo profissional disponível seria insuficiente, caso houvesse aumento exponencial da demanda. Iniciamos na segunda semana de março de 2020 a formação realizada à distância, com supervisão e suporte contínuos. Todos os alunos da graduação e em formação lato senso foram treinados para a prática ativa, se necessário. A formação de base COVID foi pautada no Protocolo de Manejo Clínico da COVID-19, na atenção especializada do Ministério da Saúde. Todos os alunos do 1º ao 3º ano foram treinados para a triagem rápida de pacientes e seguimento dos pacientes com disfagia pós-alta hospitalar, com supervisão direta. Os alunos do 4º e 5º anos foram treinados para o atendimento fonoaudiológico da disfagia, avaliação e condutas, com supervisão direta. Os alunos lato senso tiveram seus treinamentos antecipados e direcionados à disfagia;

  3. 3

    Formulação de um curso a distância para alunos e profissionais da Fonoaudiologia, para o preparo de fonoaudiólogos para situações de emergências e catástrofes, que pontuará o nosso compromisso profissional para a disseminação das boas práticas clínicas, com o seguinte programa:

  • Formação histórica, epidemiológica, clínica e de responsabilidade social sobre a atuação fonoaudiológica em catástrofes;

  • Determinação das características das avaliações e intervenções fonoaudiológicas clínicas em situações de multivítimas e catástrofes, quando a grande maioria dos doentes necessitará de cuidados intensivos;

  • Formação específica para avaliar a capacidade em receber e tratar um número anormalmente elevado de doentes que acorrem, subitamente, ao Serviço de Urgência;

  • Formação de base para o trabalho em momento crítico que interrompe a rotina hospitalar e o impacto no atendimento às vítimas;

  • Formulação de um plano fonoaudiológico capacitado para ações diferenciadas frente ao número de vítimas esperadas e à capacidade da Unidade de Primeiro Atendimento para atendê-las com recursos próprios (funcionários de plantão na UPA), recursos internos (funcionários de plantão em outras áreas da instituição), ou recursos externos (funcionários fora do horário de plantão, retaguardas e suporte de outras instituições ou órgãos governamentais).

Segue o depoimento da fonoaudióloga Maíra Santilli de Lima, nossa primeira profissional a ser incluída na linha de frente aos pacientes na UTI/COVID.

“Quando os primeiros pacientes com Covid começaram a ser admitidos no HC, no início de março, ficamos um pouco desconfortáveis, porém mantivemos normalmente nossos atendimentos para os demais pacientes e a nossa rotina de sempre. Com isso, começamos a nos atentar mais para as diretrizes de EPI que ficaram mais rigorosas e no passar do dias, os casos de COVID internados iam crescendo cada vez mais. Com a evolução da pandemia no Brasil, especificamente em São Paulo, vimos também as ruas mudando, o comércio fechando, pessoas já quase não eram mais vistas nas ruas, o medo do desconhecido rondava a todos. Como víamos nos estudos já existentes no início da pandemia no mundo, os pacientes ficavam muito tempo em IOTp e com isso imaginamos que os pedidos para avaliação da disfagia demorariam muito para chegar até nós. Mas não. Pouco tempo após a admissão desses primeiros pacientes, contrariando os estudos, os pacientes começaram a ser extubados mais rápido do que imaginávamos e então, sem que estivéssemos esperando, o primeiro pedido de avaliação fonoaudiológica chegou. Não sabíamos exatamente o que nos esperava, qual perfil desse paciente e como era a rotina dentro da UTI COVID. Eu particularmente, via no corredor ou no hall na frente dessas UTIs os funcionários entrando e saindo, todos super paramentados, sempre apressados e com uma expressão séria no olhar... algo que antes eu não havia visto nessas mesmas pessoas. Para mim aquilo parecia coisa de filme, de outro mundo. Lembrei muito das imagens na época em que víamos as notícias e imagens do surto de Ebola, ou até mesmo de filmes. E então chegou a hora do primeiro atendimento. Eu senti muito medo. Medo do desconhecido, medo de ficar doente, medo de ficar doente e grave, medo pelo meu noivo que mora comigo, medo pela minha família que estava super preocupada comigo. Meu pai e irmão ficaram quase 1 mês sem falar comigo por isso, diziam que eu devia pedir demissão, que não deveria me expor a isso. Mas não hesitei em momento algum. Na tentativa de tornar esses atendimentos mais rápidos e eficazes, pensamos em meios de tornar nossa avaliação mais rápida, objetiva e segura. Seguimos todos nossos protocolos já existentes, mas otimizamos as etapas, para tentar reduzir o número de atendimentos aos pacientes, e menor tempo de exposição ao vírus. A primeira paramentação foi a mais difícil. Medo de que alguma parte do corpo estivesse exposta, medo de fazer algo errado... lembro que demorava muito tempo me paramentando, pedia auxílio para os médicos e enfermeiros para verificarem se estava bem protegida. Mas ao entrar no quarto, vi que se tratava de um atendimento “normal”. Era um paciente “normal”, com o mesmo padrão clínico que um paciente extubado pós IOTp, com o adicional de uma doença respiratória, ou seja, algo que eu já lidava previamente. No decorrer dos dias e meses, as coisas foram se acertando, junto às equipes médicas, enfermagem, fisioterapia, nutrição, odonto, serviço social, psicologia e até mesmo dentro da nossa equipe. Fomos conseguindo passar confiança para os alunos amedrontados, que hoje tiram de letra esses atendimentos, conseguimos ampliar o número de funcionários em nossa equipe e passamos a ter como rotina o atendimento exclusivo aos pacientes com COVID. A paramentação antes tão demorada e insegura, hoje em dia é algo rotineiro, sem segredos, já incluso em nossa rotina e tão mais prática em relação ao início. Atendemos vários perfis de pacientes COVID. Os casos clássicos, com “apenas” às complicações do COVID, mas também os casos com doenças prévias que já afetavam à deglutição (câncer, doenças neurológicas e outras), atendemos desde bebês até idosos de mais de 90 anos. De certa forma, o tratamento de pacientes com COVID não foi diferente de tratar outros casos que já atendíamos. Continuamos com o julgamento e raciocínio clínico, os pensamentos críticos, e nos comunicando com a equipe multiprofissional como sempre fizemos. Encontramos os mesmos questionamentos de sempre, sobre indicação de GTT, dieta de conforto, risco de aspiração vs risco de desidratação/desnutrição, sempre analisando caso a caso. Passamos a enxergar a angústia de grande parte dos nossos pacientes. Muitos não tinham notícias dos outros familiares, ficando meses sem ver ninguém da família, em um quarto fechado, muitas vezes sozinho, sem acesso ao mundo externo, sem saber direito desta doença que tem assombrado a todos e está ali presente no corpo dele. Além de lidarmos com as questões de deglutição, motricidade, fala e voz, lidamos também com essas questões emocionais, que precisamos driblar da melhor maneira, para que o processo de reabilitação desse paciente não seja prejudicado por ele mesmo, sem que ele perceba. Tem sido uma experiência desafiadora, mas nossa equipe se uniu e sempre teve o apoio de nossa instituição, principalmente nas considerações de segurança do trabalho”.

Equipe: Dra. Gisele Medeiros; Dra. Amanda Paglioto; Dra. Dicarla Magnani; Fga. Amanda Luna, Fga. Tayna Bandeira; Dra. Fernanda Chiarion Sassi; Dra. Ana Paula Ritto; Ms. Isabel Junqueira; alunos de graduação em Fonoaudiologia da FMUSP; alunos de especialização e residência; professores do Curso de Fonoaudiologia da FMUSP.

Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – São Paulo (SP), Brasil.

  • Trabalho realizado na Divisão de Fonoaudiologia, Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo – USP - São Paulo (SP), Brasil.
  • Financiamento: Nada a declarar.

Referências

  • 1
    Wu Z, McGoogan JM. Characteristics of and important lessons from the Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) Outbreak in China: Summary of a Report of 72 314 cases from the Chinese Center for Disease Control and Prevention. JAMA. 2020;323(13):1239-42. http://dx.doi.org/10.1001/jama.2020.2648 PMid:32091533.
    » http://dx.doi.org/10.1001/jama.2020.2648
  • 2
    Zhu N, Zhang D, Wang W, Li X, Yang B, Song J, et al. A Novel Coronavirus from Patients with Pneumonia in China, 2019. N Engl J Med. 2020;382(8):727-33. http://dx.doi.org/10.1056/NEJMoa2001017 PMid:31978945.
    » http://dx.doi.org/10.1056/NEJMoa2001017
  • 3
    Ellul MA, Benjamin L, Singh B, Lant S, Michael BD, Easton A, et al. Neurological associations of COVID-19. Lancet Neurol. 2020;19(9):767-783. https://doi.org/10.1016/S1474-4422(20)30221-0.
    » https://doi.org/10.1016/S1474-4422(20)30221-0
  • 4
    Duncan S, Gaughey JM, Fallis R, McAuley DF, Walshe M, Blackwood B. Interventions for oropharyngeal dysphagia in acute and critical care: A protocol for a systematic review and meta-analysis. Syst Rev. 2019;8(1):283. http://dx.doi.org/10.1186/s13643-019-1196-0 PMid:31747971.
    » http://dx.doi.org/10.1186/s13643-019-1196-0
  • 5
    Matar N, Smaily H, Cherfane P, Hanna C. Profiling of oropharyngeal dysphagia in an acute care hospital setting. Ear Nose Throat J. 2020:1-5. http://dx.doi.org/10.1177/0145561320917795. PMid:32242742.
    » https://doi.org/10.1177/0145561320917795
  • 6
    Phua J, Weng L, Ling L, Egi M, Lim C-M, Divatia JV, et al. Intensive care management of coronavirus disease 2019 (COVID-19): Challenges and recommendations. Lancet Respir Med. 2020;8(5):506-517. https://doi.org/10.1016/ S2213-2600(20)30161-2.
    » https://doi.org/10.1016/ S2213-2600(20)30161-2
  • 7
    Medeiros GC, Sassi FC, Mangilli LD, Zilberstein B, Andrade CR. Clinical dysphagia risk predictors after prolonged orotracheal intubation. Clinics. 2014;69(1):8-14. http://dx.doi.org/10.6061/clinics/2014(01)02 PMid:24473554.
    » http://dx.doi.org/10.6061/clinics/2014(01)02
  • 8
    Lima MS, Sassi FC, Medeiros GC, Ritto AP, Andrade CRF. Preliminary results of a clinical study to evaluate the performance and safety of swallowing in critical patients with COVID-19. Clinics. 2020;75:e2021. http://dx.doi.org/10.6061/clinics/2020/e2021 PMid:32555948.
    » http://dx.doi.org/10.6061/clinics/2020/e2021

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    17 Ago 2020
  • Aceito
    18 Set 2020
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