Acessibilidade / Reportar erro

Do ouvido ao narrado: interlocução terapeuta-sujeito com afasia em atividade com história em quadrinhos

RESUMO

Objetivo

Analisar a interlocução terapeuta-sujeito com afasia no processo de interpretação e organização de história em quadrinhos.

Métodos

Estudo transversal, de natureza qualitativa. Os dados coletados foram de situações enunciativas audiogravadas e apresentadas descritivamente por quadros de interlocução (A1-T1) e (A2-T2), registrando atividade com Histórias em Quadrinhos (HQ), realizada em encontro do Grupo Interdisciplinar de Convivência da instituição, do qual participaram sujeitos com e sem afasia. Analisou-se a interlocução entre duas terapeutas em formação (T1 e T2) e dois sujeitos com afasia (A1 e A2).

Resultados

As interlocuções entre A1-T1 e A2-T2, ocorridas durante o processo de organização das HQ, evidenciaram posicionamentos diferentes das terapeutas, no que tange ao ouvido e ao narrado. A1 foi reconhecida por T1 como sujeito de linguagem, à medida que a terapeuta promoveu a disjunção, ou seja, encaminhou A1 à condição de locutor; o mesmo fato não ocorreu com A2 e T2, pois o primeiro não foi reconhecido como sujeito de linguagem, já que T2 manteve-se em conjunção, não conferindo lugar de fala a A2.

Conclusão

A enunciação benvenistiana configura-se como recurso teórico-metodológico para análise e intervenção clínica junto a sujeitos com afasia. O contexto de convivência grupal impõe-se como lócus de cuidado e formativo para as diferentes áreas de atenção às pessoas com afasia, articulando, interdisciplinarmente, aspectos da enunciação à prática terapêutica.

Palavras-chave:
História em quadrinhos; Afasia; Estudos de linguagem; Enunciação; Transtorno Específico de Linguagem

ABSTRACT

Purpose

To analyze the therapist-subject with aphasia interlocution in the process of interpretation and organization of comics.

Methods

Cross-sectional study of a qualitative nature. The data are from audio-recorded enunciative situations and presented descriptively by interlocution charts (A1-T1) and (A2-T2), registering activity with Comics, held at a meeting of the Interdisciplinary Group of Coexistence (GIC) in which subjects with and without aphasia participate. The interlocution between two therapists in training (T1 and T2) and two subjects with aphasia (A1 and A2) is analyzed. Results: The interlocutions between A1-T1 and A2-T2, which occurred during the process of organization of the comic, show different positions of the therapists regarding the ear and the narrated. A1 is recognized by T1 as a subject of language as the therapist promotes disjunction, that is, it directs A1 to the condition of speaker; the same does not occur with A2 and T2, because the former is not recognized as a subject of language, since T2 remains in conjunction, not giving A2 speaking space.

Conclusion

Benvenistian enunciation is configured as a theoretical and methodological resource for analysis and clinical intervention with subjects with aphasia; the context of group coexistence imposes itself as a locus of care and training for the different areas of attention to people with aphasia, articulating, interdisciplinary, aspects of enunciation to therapeutic practice.

Keywords:
Comics; Aphasia; Language studies; Enunciation; Specific Language Disorder

INTRODUÇÃO

Este estudo discutiu a interlocução entre dois sujeitos com afasia e duas terapeutas (em formação), durante a realização de uma atividade no Grupo Interdisciplinar de Convivência (GIC) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). O GIC se caracteriza como espaço destinado à promoção da saúde e cuidado integral de sujeitos com afasia por profissionais da fonoaudiologia, letras, psicologia e terapia ocupacional, entre outros(11 Fedosse E, Silva EB, Santos FC, Figueiredo ES. Grupo interdisciplinar de convivência: uma intervenção em saúde ancorada na neurolinguística discursiva. Estud lingua(gem). 2019;17(1):23-36. http://doi.org/10.22481/el.v17i1.5296.
http://doi.org/10.22481/el.v17i1.5296...
), bem como oportuniza atividades educativas de, com e sobre linguagem. Note-se, aqui, a opção ético-política por referir “sujeito com afasia” ao invés de “sujeito afásico”.

Convém destacar que, com tal denominação, inspirada nas proposições da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência(22 Brasil. Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. Diário Oficial da União [Internet]; Brasília; 26 ago. 2009 [citado em 2022 Ago 15]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
) - que incorpora na base da definição das deficiências a associação de fatores biológicos e socioculturais -, marca-se o fato de que, antes das manifestações afásicas (decorrentes de comprometimentos biológicos), há uma pessoa que carrega a história e a cultura de seu tempo e de si mesma. Assim, afasta-se da adjetivação do sujeito (afásico), atitude própria de saberes disciplinares normativos, mas, sim, destaca-se a condição das pessoas com linguagem em condição de afasia e ressalta-se uma concepção de linguagem e de sujeito na perspectiva da linguística enunciativa(33 Flores V. A enunciação escrita em Benveniste: notas para uma precisão conceitual. D.E.L.T.A. 2018;34(1):395-417. https://doi.org/10.1590/0102-445041033947774307.
https://doi.org/10.1590/0102-44504103394...
), especialmente no que diz respeito à relação universal-particular.

A propósito do dito acima, a dimensão patológica da linguagem deve ser abordada diante da organização singular do sujeito que enuncia. Assim, o motor e o sensorial estão relacionados com a posição que o sujeito ocupa na língua(44 Flores V. Benveniste e o sintoma de linguagem: a enunciação do homem na língua. Letras. 2006;(33):99-118. http://dx.doi.org/10.5902/2176148511925.
http://dx.doi.org/10.5902/2176148511925...
). Dada singularidade, é considerada, através do postulado enunciativo, que a subjetividade se expressa por meio da transformação da língua em discurso(33 Flores V. A enunciação escrita em Benveniste: notas para uma precisão conceitual. D.E.L.T.A. 2018;34(1):395-417. https://doi.org/10.1590/0102-445041033947774307.
https://doi.org/10.1590/0102-44504103394...
). Essa transformação é condicionada pelo ato enunciativo e, deste modo, o estudo sobre a interlocução terapeuta-sujeito com afasia é embasado no reconhecimento dos diferentes e simultâneos processos performados na enunciação, que resultam na dimensão do discurso. Há de se situar a escuta como instância mediadora fundamental para a sustentação da enunciação, visto que a subjetividade é condicionada pela intersubjetividade(55 Silva CLC. Subjetividade, socialidade e historicidade na arte do problema em Benveniste: prospecções de Gérard Dessons. Ling Ensino. 2020 Set;3(23):616-27. http://dx.doi.org/10.15210/rle.v23i3.17793.
http://dx.doi.org/10.15210/rle.v23i3.177...
).

Ter em vista o aparelho formal da enunciação como fundamento da teoria enunciativa possibilita articular diferentes movimentos, tais como os de conjunção e disjunção, que remetem à reversibilidade enunciativa e à transcendência/subjetividade do eu, respectivamente. Tais movimentos são ancorados na condição intersubjetiva do diálogo, em que não há um “eu” sem um “tu” e possibilitam a análise de acordo com os turnos enunciativos, ou seja, a depender de qual sujeito, no diálogo, está exercendo a função de locutor, é possível analisar, também, de que modo o locutor performa sua função, seja enunciando, seja se abstendo, seja promovendo a reversibilidade enunciativa, entre outras.

É com base na premissa de que o conceito de enunciação é, ao mesmo tempo, universal e particular(44 Flores V. Benveniste e o sintoma de linguagem: a enunciação do homem na língua. Letras. 2006;(33):99-118. http://dx.doi.org/10.5902/2176148511925.
http://dx.doi.org/10.5902/2176148511925...
), que se potencializa a investigação sobre o funcionamento da linguagem em condição de afasia, visto que as especifidades do uso individual da língua remetem ao funcionamento do aparelho formal de enunciação, sempre situado em um tempo e espaço determinados pelo próprio ato enunciativo, sendo possível, por meio do recorte das situações enunciativas, analisar os processos presentes na interlocução entre locutor e alocutário - do narrado e do ouvido -, bem como a instauração da (inter)subjetividade.

Com o respaldo teórico da teoria enunciativa benvenistiana é que se ancora a proposta de análise enunciativa das situações vivenciadas na atividade com Histórias em Quadrinhos (HQs). Nesta atividade, foi proposto aos sujeitos com afasia (A1 e A2) que organizassem, a seu critério, recortes de uma HQ, enquanto eram assistidos por terapeutas em formação (T1 e T2). A partir disso, se realizou a análise da interlocução entre os pares enunciativos A1-T1 e A2-T2 a contar dos turnos enunciativos de cada locutor-alocutário, desde o início da organização dos recortes até sua finalização.

A aposta por uma interpretação enunciativa nos contextos de falas ditas sintomáticas é motivada(44 Flores V. Benveniste e o sintoma de linguagem: a enunciação do homem na língua. Letras. 2006;(33):99-118. http://dx.doi.org/10.5902/2176148511925.
http://dx.doi.org/10.5902/2176148511925...
), havendo a dupla dimensão dessa investida: a primeira, da ordem epistemológica, que integra à investigação linguística tudo o que é da ordem da linguagem - inclui-se, assim, a problemática das afasias; a segunda, da ordem metodológica, que considera o olhar para o sintoma uma oportunidade de ampliar o conhecimento sobre o funcionamento da linguagem em sua amplitude de expressão. Esse potencial proporciona dispositivos analíticos produtivos no processo de avaliação e intervenção quando voltados a cenas evidenciadas no funcionamento do GIC, na presença de sujeitos com e sem afasia em exercício pleno da linguagem(11 Fedosse E, Silva EB, Santos FC, Figueiredo ES. Grupo interdisciplinar de convivência: uma intervenção em saúde ancorada na neurolinguística discursiva. Estud lingua(gem). 2019;17(1):23-36. http://doi.org/10.22481/el.v17i1.5296.
http://doi.org/10.22481/el.v17i1.5296...
).

Convém esclarecer que o GIC se configura como um projeto de extensão sob o nome Grupo Interdisciplinar de Convivência: trânsitos de linguagem, educação em saúde e promoção de processos formativos, visando ao cuidado integrado de adultos e idosos com lesão encefálica adquirida (LEA) - (especialmente a sujeitos com afasia), por meio de encontros semanais. Os encontros do GIC visam proporcionar acompanhamento interdisciplinar aos sujeitos com afasia, promovendo ações de educação em saúde para os participantes, além de ampliar os conhecimentos sobre a linguagem na formação de profissionais considerando a diversidade das áreas envolvidas, tais como fonoaudiólogos (graduandos e pós-graduandos), terapeutas ocupacionais, psicólogos e linguistas.

A respeito da dinâmica do GIC, destacam-se três momentos: 1) a roda de novidades, na qual, sentados em círculo, todos os participantes compartilham o que lhes for oportuno noticiar ao grupo, incluindo fatos de âmbito pessoal, noticiário local, nacional e/ou mundial; assuntos vão do futebol à política, por exemplo; 2) a hora do lanche; 3) atividade específica, objetivando o uso produtivo da linguagem - verbal e não verbal - e dos demais processos cognitivos, sempre contextualizando as atividades com as necessidades de saúde e vivências do grupo(11 Fedosse E, Silva EB, Santos FC, Figueiredo ES. Grupo interdisciplinar de convivência: uma intervenção em saúde ancorada na neurolinguística discursiva. Estud lingua(gem). 2019;17(1):23-36. http://doi.org/10.22481/el.v17i1.5296.
http://doi.org/10.22481/el.v17i1.5296...
). Foi nesse terceiro momento do encontro, após a roda de novidades e hora do lanche, que se situou o objeto desta pesquisa, quando se realizou uma atividade com história em quadrinhos, gênero textual que apresenta uma relação de semioses estabelecida entre verbal e não verbal, texto e desenho que precisam ser relacionados para a construção de sentido(66 Dondis D. Sintaxe da linguagem visual. 3. ed. Luiz Camargo J, tradutor. São Paulo: Martins Fontes; 2007. 236 p.).

Desse modo, o objetivo desta pesquisa foi analisar a interlocução terapeuta-sujeito com afasia no processo de interpretação e organização de história em quadrinhos.

MÉTODOS

Estudo de natureza qualitativa(77 Minayo MC. Pesquisa Social. Teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes; 2001. 80 p.), pois teve a preocupação de abordar aspectos particulares da enunciação, em detrimento de generalizações sobre a linguagem, ou seja, analisou relações intersubjetivas que não comportam quantificações. Trata-se de uma pesquisa transversal, à medida que analisou recortes da relação terapeuta em formação-sujeito com afasia, em contexto grupal de oficina de escrita, aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEP), da UFSM, sob parecer 4.704.763 (CAAE: 46539421.8.0000.5346). Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE).

Os dados foram apresentados descritivamente, considerando o ouvido e o narrado de cada parceiro enunciativo (A1-T1 e vice-versa; A2-T2 e vice-versa). Foram extraídos de situações enunciativas em atividade com HQ, realizada no encontro do GIC em 22 de maio de 2022. Primeiramente, será descrita a situação enunciativa do dado a ser analisado, seguida da produção verbal terapeuta-sujeito-terapeuta e vice-versa. Nesta apresentação, buscou-se explicitar os turnos enunciativos de cada locutor-alocutário, ou seja, do narrado e do ouvido de cada parceiro enunciativo diante de cada movimento interlocutório vivido, desde a separação dos recortes da HQ, até a finalização de sua ordenação. Ambas as situações enunciativas foram dispostas em quadros separados (Quadro 1 e Quadro 2), sendo que cada linha representa um turno e o posicionamento enunciativo correspondente de cada parceiro enunciativo (ouvido-narrado). Em seguida, apresentaram-se as imagens das respectivas organizações dos recortes da HQ realizadas por A1 e A2. Como critério de análise, considerou-se a intersubjetividade nesse ir e vir, categorizando os diferentes movimentos enunciativos: conjunção e disjunção(88 Silva CLC, Oliveira GF. Nos rumores da língua: a escuta entre as enunciações falada e escrita da criança. CONLET. 2021;16(25):166-90. http://dx.doi.org/10.22456/2594-8962.116837.
http://dx.doi.org/10.22456/2594-8962.116...
).

Quadro 1
Interlocução A1-T1
Quadro 2
Interlocução A2-T2

Inspirada na perspectiva enunciativa(88 Silva CLC, Oliveira GF. Nos rumores da língua: a escuta entre as enunciações falada e escrita da criança. CONLET. 2021;16(25):166-90. http://dx.doi.org/10.22456/2594-8962.116837.
http://dx.doi.org/10.22456/2594-8962.116...
), ocorre o processo de aquisição da linguagem por meio dos movimentos de conjunção e disjunção, sendo pertinentes ao estudo das afasias. Segundo a autora, a conjunção é marcada pela reversibilidade/pessoalidade da relação interlocutória, formando uma unidade constitutiva na temporalidade do discurso, enquanto a disjunção é caracterizada pela transcendência/subjetividade do eu, apontando para a separação do sujeito-outro no discurso, que se inscreve subjetivamente na linguagem, fato que o possibilita responsabilizar-se pela constituição de si e do outro na enunciação(88 Silva CLC, Oliveira GF. Nos rumores da língua: a escuta entre as enunciações falada e escrita da criança. CONLET. 2021;16(25):166-90. http://dx.doi.org/10.22456/2594-8962.116837.
http://dx.doi.org/10.22456/2594-8962.116...
).

Analisaram-se dados dos sujeitos com afasia (A1 e A2) em interlocução com respectivas terapeutas em formação, nominadas de parceiros enunciativos (T1, acadêmica do quinto semestre de Fonoaudiologia e T2, acadêmica do oitavo semestre de Terapia Ocupacional). A primeira participa do GIC desde o primeiro ano do curso e a segunda é recém-participante do GIC. Pode-se dizer que há diferença no entendimento da natureza das afasias e no desenvolvimento de atividades com sujeitos com afasia em função do tempo de convivência com eles.

A1 é uma mulher, solteira, de 36 anos, que sofreu, há dez anos, um acidente automobilístico, resultando em traumatismo cranioencefálico na região temporoparietal e frontal. Atualmente, após um longo período de reabilitação (com fisioterapia, fonoaudiologia e terapia ocupacional), A1 tem mobilidade preservada, mas não voltou a dirigir. É independente em suas atividades instrumentais de vida diária e prática, mas não voltou ao trabalho. Sua produção oral é fluente, mas lentificada, com tendência a pausas curtas, poucas repetições e algumas parafasias fonêmicas. Sua expressão gestual é preservada e restrita. A compreensão oral é mais preservada. Quanto à linguagem escrita, respeita a ordenação sintática, com alguns desvios gramaticais e ortográficos; também escreve lentamente após certa latência para iniciar um texto.

A2 é do gênero masculino, 58 anos, casado, pai de um casal de filhos e aposentado após um acidente vascular cerebral isquêmico, na região temporoparietal, ocorrido há sete anos. Apresenta hemiplegia à direita, com mobilidade comprometida; não usa dispositivo de apoio e tampouco dirige. Não voltou ao trabalho, embora seja independente em suas atividades instrumentais de vida diária e prática. Sua produção oral é não fluente, com tendência a perseverações fonoarticulatórias, omissões e prolongamentos fonéticos, repetições e muitas parafasias fonêmicas. A compreensão oral é mais preservada. Sua expressão gestual está comprometida pela hemiplegia. Escreve pouco (apresenta disgrafismo), tendendo a palavras de conteúdo.

As situações enunciativas foram audiogravadas durante a atividade de uma História em Quadrinhos (HQ), apresentadas aos sujeitos em recortes por quadros desorganizados, para que os organizassem significativamente (Figura 1). A coordenadora da atividade instruiu sobre a dinâmica do dia, explicando sobre os quadros em recortes embaralhados, orientando os participantes a montarem uma HQ que fizesse sentido para eles.

Figura 1
História em Quadrinhos original

RESULTADOS

Apresentam-se a seguir situações enunciativas entre A1-T1 e A2-T2 ocorridas durante o processo de organização das HQs pelos sujeitos com afasia. Convém esclarecer que, após esse momento, houve a exposição das histórias organizadas pelos participantes para o grande grupo. No entanto, destaca-se, aqui, o momento da organização individual.

Na interlocução entre A1-T1, é apresentada a situação enunciativa a partir do momento inicial de distribuição dos recortes e iniciando a descrição desde o que foi “ouvido” por A1, ou seja, a interpretação realizada da demanda inicial da atividade. Em seguida, o que foi ouvido por T1, demarcando a postura no cenário intersubjetivo de alocução por T1 (Quadro 1).

A partir do que foi narrado por A1, ou seja, produzido por A1 enquanto ato de produção de significação, o quadro segue com o ato interrogatório de T1 referente ao processo de organização da HQ realizada por A1, que explicou seu método e foi ouvida por T1 (Figura 2).

Figura 2
Montagem da História em Quadrinhos por A1

Na interlocução entre A2-T2, o quadro é apresentado da mesma maneira, separado em turnos enunciativos que buscaram explicitar as posições de locutor-alocutário (narrado-ouvido), com início por A2 atendendo à demanda da atividade proposta e iniciando sua organização (Quadro 2).

Notou-se um diferente posicionamento enunciativo de T1 e T2 nas variadas situações enunciativas, visto que T2 iniciou se colocando na função de locutor (linha 2), interferindo na produção de A2, sem que houvesse sido demandada pelo sujeito com afasia, enquanto T1 (Quadro 1), se absteve de se pronunciar durante o processo de organização. A mesma diferença foi notável quando T2 questionou se “a sequência apresentada tem sentido”, enquanto T1 pediu “esclarecimento sobre os critérios que motivaram à organização apresentada”. Enquanto T2 questionou o sentido apresentado, T1 pediu a A1 que explicasse seus critérios, havendo diferença no endereçamento da questão abordada e, também, nas formas por meio das quais essas questões poderiam ser respondidas por A1 e A2.

Por fim, A2 afirmou suas escolhas e organização e narrou a T2 sua explicação, mantendo coerência com sua interpretação inicial da atividade proposta, que resultou na organização exposta na Figura 3.

Figura 3
Montagem da História em Quadrinhos por A2

Notou-se que, tanto A1 quanto A2, receberam as mesmas instruções e os mesmos recortes, que resultaram em diferentes ordenações e com diferentes explicações sobre seus processos de significação. As ações de T1 e T2 se mostraram dissonantes; enquanto T1 se absteve de se pronunciar quando não demandada, T2 posicionou-se e demonstrou incômodo.

DISCUSSÃO

Refletir sobre o ouvido e o narrado, explicitados nos dados acima, remete aos movimentos enunciativos de conjunção e disjunção, visto que a enunciação implica “colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização”(33 Flores V. A enunciação escrita em Benveniste: notas para uma precisão conceitual. D.E.L.T.A. 2018;34(1):395-417. https://doi.org/10.1590/0102-445041033947774307.
https://doi.org/10.1590/0102-44504103394...
: 402), possível pelo princípio da intersubjetividade. O homem exprime sua subjetividade enquanto eu por oposição a tu. Benveniste(99 Valerio P. A linguagem e a experiência humana em serviço de teleatendimento. RDes. 2018;14(3):480-9. http://orcid.org/0000-0003-4664-9625.
https://doi.org/http://orcid.org/0000-00...
) ressalta que toda enunciação se dá em espaço e tempo determinados, por um ato individual da fala. Pode-se dizer, então, que o “eu” revela uma posição na enunciação - esta particular e irrepetível(99 Valerio P. A linguagem e a experiência humana em serviço de teleatendimento. RDes. 2018;14(3):480-9. http://orcid.org/0000-0003-4664-9625.
https://doi.org/http://orcid.org/0000-00...
).

A respeito da posição na enunciação, convém destacar que houve diferença entre os pares A1-T1 e A2-T2. As estruturas enunciativas evidenciadas nos dados aqui analisados remeteram à afirmação sobre o processo de aquisição e desenvolvimento da linguagem infantil(88 Silva CLC, Oliveira GF. Nos rumores da língua: a escuta entre as enunciações falada e escrita da criança. CONLET. 2021;16(25):166-90. http://dx.doi.org/10.22456/2594-8962.116837.
http://dx.doi.org/10.22456/2594-8962.116...
). Do conjunto da perspectiva enunciativa(33 Flores V. A enunciação escrita em Benveniste: notas para uma precisão conceitual. D.E.L.T.A. 2018;34(1):395-417. https://doi.org/10.1590/0102-445041033947774307.
https://doi.org/10.1590/0102-44504103394...
), destaca-se a “singularidade de cada locutor quando se apropria da língua para enunciar”(88 Silva CLC, Oliveira GF. Nos rumores da língua: a escuta entre as enunciações falada e escrita da criança. CONLET. 2021;16(25):166-90. http://dx.doi.org/10.22456/2594-8962.116837.
http://dx.doi.org/10.22456/2594-8962.116...
:170), evidenciando estruturas que comportam a presença do locutor e do alocutário. Pode-se considerar que, no contexto de convivência entre sujeitos com e sem afasia, tal singularidade pode não ser reconhecida, a depender do posicionamento do sujeito sem afasia. Se este considerar o sujeito com afasia como sujeito de linguagem, é permitida ao último a condição de se responsabilizar pela constituição de si e do outro na enunciação. No caso de A1 e T1, constatou-se o imediato reconhecimento de tal responsabilidade (Quadro 1 - linha 2), enquanto que entre A2 e T2, observou-se T2 negando a possibilidade de responsabilização de A2 quando ocupou a posição de locutor no seu lugar (Quadro 2 - linha 2).

É no ato enunciativo que se instauram as posições de eu-tu. Nas palavras de Benveniste(55 Silva CLC. Subjetividade, socialidade e historicidade na arte do problema em Benveniste: prospecções de Gérard Dessons. Ling Ensino. 2020 Set;3(23):616-27. http://dx.doi.org/10.15210/rle.v23i3.17793.
http://dx.doi.org/10.15210/rle.v23i3.177...
), “é numa realidade dialética que engloba os dois termos [eu-tu] e os defina pela relação mútua que se descobre o fundamento linguístico da subjetividade”(55 Silva CLC. Subjetividade, socialidade e historicidade na arte do problema em Benveniste: prospecções de Gérard Dessons. Ling Ensino. 2020 Set;3(23):616-27. http://dx.doi.org/10.15210/rle.v23i3.17793.
http://dx.doi.org/10.15210/rle.v23i3.177...
:626). A condição de diálogo é o que torna possível a instauração do discurso, pois um “eu” só será “eu” diante de um “tu”. Sendo assim, a condição da subjetividade da linguagem é a intersubjetividade(55 Silva CLC. Subjetividade, socialidade e historicidade na arte do problema em Benveniste: prospecções de Gérard Dessons. Ling Ensino. 2020 Set;3(23):616-27. http://dx.doi.org/10.15210/rle.v23i3.17793.
http://dx.doi.org/10.15210/rle.v23i3.177...
). Nesse sentido, convém considerar os pares enunciativos A1-T1 e A2-T2 como realidade dialógica que se configura na enunciação. Assim, se é verdade que o movimento de disjunção, considerado em situação de aquisição da linguagem, encaminha a criança para sua inscrição subjetiva na linguagem, conferindo à separação eu/tu uma mobilização fundamental na área de aquisição(88 Silva CLC, Oliveira GF. Nos rumores da língua: a escuta entre as enunciações falada e escrita da criança. CONLET. 2021;16(25):166-90. http://dx.doi.org/10.22456/2594-8962.116837.
http://dx.doi.org/10.22456/2594-8962.116...
), também o é o fato de, no contexto de convivência e/ou processos terapêuticos junto a pessoas com afasia, haver a necessidade de ‘espaço’ garantido pelo sujeito sem afasia (familiares, amigos, entre outros) e, sobretudo, pelos terapeutas, pois será no movimento de disjunção que haverá a abertura para a manifestação da subjetividade na linguagem.

Diante da singularidade linguística, em ambas as situações enunciativas deste estudo, foi possível perceber marcas de subjetividade de A1 e A2 na organização da HQ, mesmo que os interlocutores A1-T1 e A2-T2 , inconscientes de suas atividades linguísticas e mesmo que seus trabalhos linguísticos não tenham produzido o efeito por eles eventualmente intencionados(1010 Coudry MIH, Possenti S. Avaliar discursos patológicos. Cad Est Ling 2012;5:99-109. http://dx.doi.org/10.20396/cel.v5i0.8636629.
http://dx.doi.org/10.20396/cel.v5i0.8636...
), houve (inter)subjetividade.

Na situação enunciativa do par A1-T1, destaca-se a iniciativa de A1 de interpretar a demanda do propositor da atividade, configurando o movimento de conjunção interpretativa que convocou A1 a enunciar. T1, por compreender que havia intersubjetividade, absteve-se de interferir no processo de montagem da HQ, o que induziu ao segundo movimento, neste caso, de disjunção, por dar abertura a A1 de organizar à sua maneira, sem que houvesse uma expressa interferência da norma sobre o processo de significação. No caso de A2-T2, também interpretou a demanda da atividade e iniciou sua organização. No entanto, A2 manteve-se em conjunção e interferiu, lendo em voz alta o conteúdo dos quadrinhos, sem que fosse solicitado por A2, ou seja, T2 sobrepôs sua interpretação, tentando conduzir o processo de significação de A2.

Pode-se afirmar que a posição dos sujeitos com afasia na interlocução foi relevante na construção dos seus enunciados, mas o posicionamento dos terapeutas (do ouvido e do narrado) também, interferindo colaborativamente, ou não, no encadeamento enunciativo dos sujeitos com afasia. Em outras palavras, na situação 1 apresentada, destacou-se a posição de T1, enquanto alocutário de A1, que, na linha 2, manifestou não interferir no processo de significação e, consequentemente, de ordenação da HQ, permitindo que A1 ocupasse a posição de locutor (disjunção) e, com isso, a de sujeito na língua(gem). Enquanto na situação 2, T2 ocupou a posição de locutor, manteve-se em conjunção, lendo em voz alta e, ainda, questionando se havia sentido na organização da HQ proposta por A2. T2 não acolheu a proposta, insistiu na reorganização de acordo com seu ponto de vista sobre a significação. Portanto, não oportunizou a autonomia de A2 (disjunção), não o reconhecendo como sujeito de língua(gem).

A partir dessa concepção enunciativa e do dado apresentado na situação 2, cabe compreender que o terapeuta deve ressignificar o papel do sujeito com afasia, mostrar que ele consegue produzir e interpretar linguagem (verbal e não verbal), demonstrar como ele pode se colocar nas interlocuções e, assim, favorecer a reconstrução intersubjetiva dos sujeitos (com e sem afasia) na e com a linguagem. É necessário esclarecer que T2 teve seu primeiro contato com sujeitos com afasia e participação no grupo de convivência, no dia desta atividade, ou seja, a inexperiência na prática e no desenvolvimento terapêutico sobre aspectos linguístico-cognitivos afetou diretamente a compreensão do seu papel como terapeuta frente à demanda de sujeitos com afasia.

Cabe ao terapeuta escutar o não narrado, conferindo espaço para o sujeito se apropriar da língua e, enquanto sujeito de sua linguagem, significar, ou seja, valorizar o funcionamento da língua em enunciação. Desse modo, ocupar uma posição de sujeito e reconhecer-se como sujeito é, a cada instante, transitar entre os movimentos de conjunção e disjunção. Essa combinação se constrói na enunciação e é sempre irrepetível, pois cada vez que o locutor se apropria da língua, promove um agenciamento único que faz emergir um sentido único(1111 Silva CLC, Oliveira GF, Diedrich MS. A teoria da linguagem de Émile Benveniste: uma abertura para os estudos em aquisição da linguagem. Fragmentum. 2020;56(1):259-80. http://dx.doi.org/10.5902/2179219447445.
http://dx.doi.org/10.5902/2179219447445...
).

CONCLUSÃO

Destaca-se, a partir da análise das duas situações enunciativas, o posicionamento dos terapeutas e dos sujeitos com afasia nas estruturas enunciativas durante o processo de organização das histórias. Salienta-se que, por meio dos movimentos de conjunção e disjunção, os terapeutas reconhecem (ou não) os sujeitos com afasia como um sujeito de língua(gem).

Confirma-se a apropriação dos conceitos de conjunção e disjunção no contexto da linguagem nas afasias, ratificando a contribuição enunciativa(33 Flores V. A enunciação escrita em Benveniste: notas para uma precisão conceitual. D.E.L.T.A. 2018;34(1):395-417. https://doi.org/10.1590/0102-445041033947774307.
https://doi.org/10.1590/0102-44504103394...
) no esclarecimento sobre o trabalho com e na linguagem junto a sujeitos com afasia, embasando-se na intersubjetividade como princípio fundamental da enunciação, permitindo identificar os diferentes movimentos que ocorrem na situação enunciativa e, com isso, reconhecer os sujeitos com afasia em seus processos de significação.

Ressalta-se, assim, a enunciação como recurso teórico-clínico no cuidado integrado de sujeitos com afasia e em contexto de convivência grupal. Evidencia-se, pois, o GIC como espaço formativo para as diferentes áreas de atenção às pessoas com afasia, articulando, interdisciplinarmente, aspectos da enunciação à prática terapêutica.

  • Trabalho realizado no Programa de Pós-graduação em Distúrbios da Comunicação Humana, Universidade Federal de Santa Maria - UFSM - Santa Maria (RS), Brasil.
  • Financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Fedosse E, Silva EB, Santos FC, Figueiredo ES. Grupo interdisciplinar de convivência: uma intervenção em saúde ancorada na neurolinguística discursiva. Estud lingua(gem). 2019;17(1):23-36. http://doi.org/10.22481/el.v17i1.5296
    » http://doi.org/10.22481/el.v17i1.5296
  • 2
    Brasil. Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. Diário Oficial da União [Internet]; Brasília; 26 ago. 2009 [citado em 2022 Ago 15]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm
  • 3
    Flores V. A enunciação escrita em Benveniste: notas para uma precisão conceitual. D.E.L.T.A. 2018;34(1):395-417. https://doi.org/10.1590/0102-445041033947774307
    » https://doi.org/10.1590/0102-445041033947774307
  • 4
    Flores V. Benveniste e o sintoma de linguagem: a enunciação do homem na língua. Letras. 2006;(33):99-118. http://dx.doi.org/10.5902/2176148511925
    » http://dx.doi.org/10.5902/2176148511925
  • 5
    Silva CLC. Subjetividade, socialidade e historicidade na arte do problema em Benveniste: prospecções de Gérard Dessons. Ling Ensino. 2020 Set;3(23):616-27. http://dx.doi.org/10.15210/rle.v23i3.17793
    » http://dx.doi.org/10.15210/rle.v23i3.17793
  • 6
    Dondis D. Sintaxe da linguagem visual. 3. ed. Luiz Camargo J, tradutor. São Paulo: Martins Fontes; 2007. 236 p.
  • 7
    Minayo MC. Pesquisa Social. Teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes; 2001. 80 p.
  • 8
    Silva CLC, Oliveira GF. Nos rumores da língua: a escuta entre as enunciações falada e escrita da criança. CONLET. 2021;16(25):166-90. http://dx.doi.org/10.22456/2594-8962.116837
    » http://dx.doi.org/10.22456/2594-8962.116837
  • 9
    Valerio P. A linguagem e a experiência humana em serviço de teleatendimento. RDes. 2018;14(3):480-9. http://orcid.org/0000-0003-4664-9625.
    » https://doi.org/http://orcid.org/0000-0003-4664-9625
  • 10
    Coudry MIH, Possenti S. Avaliar discursos patológicos. Cad Est Ling 2012;5:99-109. http://dx.doi.org/10.20396/cel.v5i0.8636629
    » http://dx.doi.org/10.20396/cel.v5i0.8636629
  • 11
    Silva CLC, Oliveira GF, Diedrich MS. A teoria da linguagem de Émile Benveniste: uma abertura para os estudos em aquisição da linguagem. Fragmentum. 2020;56(1):259-80. http://dx.doi.org/10.5902/2179219447445
    » http://dx.doi.org/10.5902/2179219447445

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    06 Set 2022
  • Aceito
    29 Nov 2022
Academia Brasileira de Audiologia Rua Itapeva, 202, conjunto 61, CEP 01332-000, Tel.: (11) 3253-8711, Fax: (11) 3253-8473 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@audiologiabrasil.org.br