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Afasias e construção de sentido: estudo com foco em história em quadrinhos

RESUMO

Objetivo

observar, na linguagem em afasia de sujeitos adultos, a constituição de sentidos, considerando a (re)organização enunciativa na leitura e na escrita.

Métodos

pesquisa qualitativa com método aplicado e exploratório e perspectiva de análise enunciativa sobre a linguagem, tendo as noções de forma e sentido como base analítica. Foi realizada uma atividade com três sujeitos com afasia (Bir, Cr e Aul), integrantes do Grupo Interdisciplinar de Convivência (GIC), formado por participantes com e sem afasia. Tal atividade consistiu em (re)organizar quadrinhos de uma história, visando constituir sentido, uma vez que a leitura/escrita de textos são habilidades comumente comprometidas nas afasias.

Resultados

a categoria de tempo crônico mostra-se fundante para elaboração das narrativas dos sujeitos com afasia. Entretanto, eles encontraram formas distintas de sustentação de sentidos, mas sempre atrelados a experiências provenientes da relação entre homem e mundo.

Conclusão

as narrativas foram organizadas/construídas pelos participantes, tendo por base as imagens (base formal) - uma vez comprometida a habilidade de leitura de textos verbais. Bir, Cr e Aul usaram o tempo crônico como eixo organizacional de suas narrativas e suas histórias em quadrinhos, demonstrando que promovem leitura e escrita ao se considerar o viés enunciativo de análise da linguagem.

Palavras-chave:
História em quadrinhos; Interpretação; Afasia; Escrita; Língua portuguesa

ABSTRACT

Purpose

to observe , in the language of aphasic adult subjects, the constitution of meanings, considering the enunciative (re)organization in reading and writing.

Methods

qualitative research with applied and exploratory methods and a perspective of enunciative analysis on language, using the notions of form and meaning as analytical base. From an activity performed by three subjects with aphasia (Bir, Cr and Aul), members of the Interdisciplinary Coexistence Group (GIC), formed by participants with and without aphasia, which constituted of (re)organizing the panels (frames) of a comic strip, in order to constitute meaning - since the reading/writing of texts are skills that are commonly affected in aphasia.

Results

the chronic time category shows itself to be fundamental for the elaboration of the narratives of the subjects with aphasia, however they found different ways of sustaining meanings, but always linked to experiences arising from the relationship between man and world.

Conclusion

the narratives were organized/constructed by the participants, having the images as a base (formal base) - since the ability to read verbal texts is impaired. Bir, Cr and Aul used chronic time as an organizational axis of their narratives and their comic strips show that these subjects with aphasia promote reading and writing when considering enunciative bias of language analysis.

Keywords:
Comic strip; Interpretation; Aphasia; Writing; Portuguese language

INTRODUÇÃO

A Linguística interessa-se pela linguagem em todos os seus aspectos -pela linguagem em ato, em evolução, em estado nascente e em dissolução(11 Jakobson R. Linguística e comunicação. São Paulo: Cultrix; 1976. Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia; p. 34-62). A partir dessa constatação, a observação sobre aspectos da linguagem em afasia tem rendido investigações interdisciplinares (Fonoaudiologia, Psicologia, Neurologia etc.) que, juntamente com a Linguística, complementam estudos sobre a natureza e o funcionamento desses distúrbios de linguagem.

Na perspectiva de observar as afasias por um viés linguístico, elegeu-se a Teoria da Enunciação(22 Benveniste E. Problemas de linguística geral. São Paulo: Ed. Nacional; 1976. 387 p.,33 Benveniste E. Problemas de linguística geral II. São Paulo: Pontes Editores; 1989. 294 p.) por se entender que comporta proposições conceituais que privilegiam a língua em emprego e subsidiam a análise linguística de manifestações singulares da linguagem. Nesse sentido, reporta-se ao aparelho formal da enunciação (33 Benveniste E. Problemas de linguística geral II. São Paulo: Pontes Editores; 1989. 294 p.), que é utilizado a cada ato enunciativo e operacionaliza as condições de emprego da língua. Cabe, então, o estudo da enunciação considerando as manifestações individuais e irrepetíveis que ela atualiza. Para tanto, nesse ato de apropriação da língua, as categorias de pessoa, tempo e espaço são mobilizadas.

A categoria de pessoa (33 Benveniste E. Problemas de linguística geral II. São Paulo: Pontes Editores; 1989. 294 p.) considera o par eu-tu, em que eu indica aquele que fala e que, necessariamente, enuncia sobre si mesmo. Ao falar, dirige-se ao tu, assim designado por ser a pessoa a quem o eu se reporta em uma situação proposta de comunicação. É nessa categoria que se concebe a experiência subjetiva dos sujeitos que se situam na e pela linguagem, pois, ao se apropriar da língua, cada locutor torna-se sujeito em seu dizer único e irrepetível. Quanto à categoria de tempo, este é estabelecido no momento da enunciação. No instante em que toma a palavra, o locutor estabelece um agora e é nesse momento que se localizam os acontecimentos, concomitantes, ou não, ao momento da fala, mas sempre a partir do presente do ato linguístico. A categoria de tempo (33 Benveniste E. Problemas de linguística geral II. São Paulo: Pontes Editores; 1989. 294 p.) é entendida em três noções diferentes: tempo físico (contínuo e irreversível), tempo crônico (sequência de acontecimentos) e tempo linguístico (exercício da fala). Assim, a categoria do tempo indica diversas maneiras de representar formas temporais. Quanto à categoria de espaço (33 Benveniste E. Problemas de linguística geral II. São Paulo: Pontes Editores; 1989. 294 p.), define-se como um conjunto de coordenadas organizadas no discurso, a partir de um ponto de referência - o eu. Os demonstrativos implicam algo e se designam na instância de discurso na qual são produzidos, sendo, portanto, dependentes do eu que enuncia.

É na perspectiva da singularidade da língua em emprego que se chega à distinção entre as noções de forma e sentido em dois modos de significância da língua: o semiótico e o semântico(22 Benveniste E. Problemas de linguística geral. São Paulo: Ed. Nacional; 1976. 387 p.,33 Benveniste E. Problemas de linguística geral II. São Paulo: Pontes Editores; 1989. 294 p.): enquanto unidade semiótica, o signo tem sua forma relacionada à capacidade de dissociar-se em nível inferior, em fonemas, por exemplo, e são esses fonemas responsáveis por atribuir ao signo forma sonora fixa, que o distingue dos demais e que faz, assim, com que se reconheça - o valor de um signo está em ser o que todos os outros não são. Ao compreendê-lo, no inventário de palavras da língua, seu sentido está no fato de existir e se encadear a outros signos para compor um discurso dotado de significação. Seu sentido está diretamente relacionado às intenções de um locutor em determinado ato enunciativo. É no uso da língua que o signo passa a existir.

Portanto, no âmbito do emprego da língua, o signo dá lugar à palavra, unidade semântica por excelência. Nesse domínio, enquanto a forma relaciona-se ao encadeamento sintagmático de palavras engendradas para dar conta de uma ideia, o sentido é a própria ideia que o discurso exprime, fruto da sintagmatização de palavras que definem a mensagem a ser semantizada por meio de frases - a expressão semântica e discursiva por excelência. É, então, nesse domínio que as formas adquirem sentido singularizado, em função do ato enunciativo proferido.

Assim, para esta pesquisa, adotou-se as noções de forma e sentido na linguagem, especificamente pelo domínio semântico, para compreender e interpretar uma atividade com história em quadrinhos (HQ), realizada com integrantes do Grupo Interdisciplinar de Convivência (GIC) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), composto por sujeitos com afasia, pesquisadores e profissionais de áreas como saúde e educação. O GIC é um projeto extensionista que visa proporcionar acompanhamento interdisciplinar aos sujeitos com afasia por meio de ações que contemplam situações reais e diversas.

Posto isso, o objetivo desta pesquisa foi analisar como a significação (forma e sentido) é (re)organizada enunciativamente na leitura de sujeitos com afasia. Considerou-se uma atividade com sequência narrativa de uma história em quadrinhos desorganizada em seus quadros, no intuito de observar, na linguagem em afasia, o modo de constituir os sentidos resultantes do diálogo palavra/imagem - uma vez que a leitura/escrita de textos são habilidades comumente comprometidas nas afasias.

MÉTODOS

Para realização desta pesquisa de cunho qualitativo, um dos métodos empregados foi a pesquisa bibliográfica - centrada em textos que discutem noções basilares e, portanto, indispensáveis para compreensão das construções narrativas diversas que a mesma história em quadrinhos suscitou em diferentes sujeitos com afasia. A adesão dos participantes se deu com a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da UFSM, sob o número CAAE: 46539421.8.0000.5346.

Constou, ainda, a investigação em situações reais e a formulação de hipóteses no desenvolvimento de teorias. Tal método exige sagacidade do pesquisador, que deve possuir habilidades analíticas que garantam qualidade dos achados. Assim, classificou-se esta pesquisa como aplicada e exploratória, uma vez que as (re)construções narrativas foram fenômenos observados em uma situação específica.

Quanto aos aspectos práticos, o estudo se desenvolveu por meio de três procedimentos: seleção de participantes da proposta; seleção e preparação do material para desenvolvimento da prática de coleta de dados (histórias em quadrinhos); aplicação da proposta e coleta dos dados.

Em relação ao primeiro procedimento, foram selecionados três participantes com afasia, doravante identificados como Bir, Cr e Aul, e que manifestaram diferentes distúrbios na linguagem: Bir, o primeiro, é um homem de 73 anos que não lê nem escreve voluntariamente e foi diagnosticado com anomia. Tem ensino médio incompleto, é divorciado e tem dois filhos. Antes de sofrer AVC, há 11 anos, Bir trabalhava no comércio. Hoje, mora sozinho e é responsável por suas atividades diárias básicas e complexas. Cr, a segunda participante, é uma mulher de 38 anos, com curso superior incompleto e que trabalhou no setor comercial antes do acidente de trânsito, em maio de 2009. Após o acidente - que resultou em um traumatismo cranioencefálico -, permaneceu quatro meses internada, sendo dois em UTI. Cr lê e escreve bem, embora sua escrita dependa de um tempo maior para elaboração e nela apareçam desvios ortográficos/gramaticais. Por fim, o terceiro participante eleito para este estudo foi Aul, um homem de 58 anos. Aul teve um AVCI em 2017 e ficou no CTI a maior parte do tempo em que esteve internado. Sua compreensão oral é mais preservada que a fala, que é não fluente, além de ter suas expressões gestuais comprometidas. Antes do episódio, trabalhou como motorista e marceneiro. Casado há 39 anos, mora com um dos dois filhos e a esposa, da qual está sob cuidados.

Os participantes frequentam o GIC, cujas reuniões acontecem semanalmente, com duração de duas horas e 30 minutos. Os encontros são divididos em dois momentos: hora da novidade, em que compartilham experiências, e hora da atividade, em que realizam atividades lúdicas num processo interativo. Esses encontros são promovidos no intuito de proporcionar cuidado interdisciplinar e ampliar o conhecimento sobre a linguagem a partir da contribuição de profissionais de diferentes áreas, como Fonoaudiologia, Terapia Ocupacional, Psicologia e Letras.

Foi definido o trabalho com histórias em quadrinhos por ser um modelo aceito em todas as faixas geracionais e por ser possível que, por meio das HQ, se observe a leitura e a escrita por um viés dialógico entre a imagem e o verbal. Salienta-se que a noção de escrita aqui refletida remete à linguagem interior, ou seja, é uma iconização do pensamento, remontando uma representação da realidade, não sendo, portanto, o ato em si de produção de grafemas(44 Benveniste E. Últimas aulas no Collège de France 1968 e 1969. São Paulo: Editora Unesp; 2014. 280 p.). Para a seleção da história em quadrinhos, o tema “amizade” foi definido com base em critérios como alcance, universalidade e, principalmente, representatividade do tema - já que é um dos pilares que sustentam o GIC, além de caracterizá-lo. Elegeu-se, então, a HQ de mesmo nome: Amizade (55 Sousa M. Amizade [Internet]. 1998 [citado em 2022 Maio 1]. Disponível em: https://arquivosturmadamonica.blogspot.com/
https://arquivosturmadamonica.blogspot.c...
), de Maurício de Sousa, que integra a edição “Cascão Nº 305” (Ed. Globo, 1998) (Figura 1).

Figura 1
HQ “Amizade”, de Maurício de Sousa (1998)

Com vistas a otimizar o trabalho de leitura e interpretação, assim como o manuseio dos quadrinhos (escrita), sintetizou-se a história ao selecionar-se oito dos 37 quadrinhos que compõem a HQ original. A adaptação manteve a essência da história, sem prejuízos que alterassem a proposta temática, resultando na versão final entregue aos participantes do GIC (Figura 2).

Figura 2
Adaptação entregue aos sujeitos da pesquisa

A coleta dos dados ocorreu no dia 06/05/2022, na sala 4018 do prédio 26D da UFSM, no espaço onde funcionam os cursos de Terapia Ocupacional e Fisioterapia. No local, são realizados, semanalmente, os encontros do GIC. Nessa ação, os participantes receberam impressa a história eleita e recortada em seus quadrinhos. Eles deveriam observar os quadrinhos desorganizados e constituir uma história, remontando a HQ e promovendo compreensão global da narrativa. Depois de organizada, a história deveria ser contada ao restante do grupo. As histórias resultantes foram registradas por meio fotográfico e identificadas para análise.

RESULTADOS

A Figura 3 apresenta as narrativas elaboradas por Bir, que propôs a leitura em colunas (aqui entendidas como arranjo formal de elementos linguísticos relevantes), dividindo os quadrinhos em três partes, de maneira que criou narrativas independentes (sentido), lidas verticalmente.

Figura 3
História proposta por Bir

Salientam-se, da esquerda para a direita: na primeira coluna, os dois personagens são bebês; na segunda, crianças; na terceira, jovens/adultos. Ao separar os quadrinhos pelas imagens cronológicas, Bir apropriou-se da língua, construiu três narrativas e estabeleceu sentido às três micro-histórias, que ganharam forma em colunas reveladoras da fragmentação do processo de leitura do participante.

A história de Cr, na Figura 4, diferenciou-se da de Bir por ter sido entendida como unidade, lida de cima para baixo e de modo horizontal. Embora tivesse pouca dificuldade para ler textos verbais, Cr recorreu às imagens para organizar sua história: mesmo reconhecendo a palavra “fim”, no terceiro quadrinho, ela seguiu a lógica de sua própria narrativa. O mesmo aconteceu com o título “amizade”, que mesmo em cor, tamanho e fonte distintos, não foi reconhecido como tal: não se trata mais, desta vez, do significado do signo, mas do que se pode chamar o intencionado, do que o locutor quer dizer, da atualização linguística de seu pensamento(33 Benveniste E. Problemas de linguística geral II. São Paulo: Pontes Editores; 1989. 294 p.). Ambos os marcadores textuais foram sobrepujados em nome de um sentido ao qual Cr buscou dar forma, encadeando unidades passíveis de serem reinterpretadas e, assim, formando novas relações sintagmáticas.

Figura 4
História proposta por Cr

Na Figura 5, observa-se que a história de Aul constitui-se em duas linhas horizontais: na primeira, constam três quadrinhos; na segunda, cinco. Supondo-se que a intenção de Aul fosse ordenar os quadrinhos em duas linhas de quatro quadros, uma barreira (formada por um amontoado de imagens, no canto superior direito) o impediu de seguir esta lógica.

Figura 5
História proposta por Aul

Com relação à forma como Aul arranjou os quadrinhos de sua proposta de narrativa, percebe-se que, na macroestrutura, a história não obedece à cronologia bem definida nas construções narrativas de Cr e Bir: do começo para o fim e vice-versa, não houve a progressão linear do tempo transcorrido em relação aos personagens. Observando, porém, as microestruturas, encontram-se indícios de temporalidade que separam e definem pequenas narrativas - e, então, entende-se que não houve uma, mas várias histórias independentes. Ainda, evidencia-se o fato dos aspectos formais estarem diretamente atrelados à significação de um sujeito que lê figuras e que a elas atribui sentido: ora o sentido está no encadeamento dessas figuras, ora algumas figuras retêm o sentido em si próprias(66 Flores VN. Problemas gerais de linguística. Rio de Janeiro: Vozes; 2019. 400 p.).

DISCUSSÃO

A organização das histórias produzidas por Bir mostra que o locutor, ao se apropriar da língua, utiliza, no intuito de promover sentido, o tempo crônico - noção essa crucial para o ordenamento e interpretação dos quadrinhos propostos por ele, já que esse tempo é o dos acontecimentos que abarca também nossa própria vida em sequência de acontecimentos(33 Benveniste E. Problemas de linguística geral II. São Paulo: Pontes Editores; 1989. 294 p.).

Na primeira coluna, o primeiro quadrinho mostra duas mães que se encontram com seus respectivos filhos, ambos em carrinhos e, no segundo quadrinho, os bebês dialogam. Ao produzir essa pequena história, Bir transformou os quadrinhos desorganizados em seu próprio discurso, fazendo-se sujeito ao mobilizar os quadrinhos e deles se apropriar. Parece fazer sentido que, para haver diálogo entre os dois bebês, as mães precisam se encontrar, e essa significação é fruto da subjetividade de um sujeito que não só lê, mas busca organizar, no tempo crônico, uma interpretação que garanta a intersubjetividade, já que é essa a única condição que torna possível a comunicação linguística(22 Benveniste E. Problemas de linguística geral. São Paulo: Ed. Nacional; 1976. 387 p.,44 Benveniste E. Últimas aulas no Collège de France 1968 e 1969. São Paulo: Editora Unesp; 2014. 280 p.,77 Flores VN, Cardoso JF. Estudos da linguagem e clínica dos estudos da linguagem. São Paulo: Pontes Editores; 2022. 146 p.) - um eu que, necessariamente, organiza seu discurso instaurando um tu.

O mesmo se observou na história construída na segunda coluna, quando Bir colocou em relação dois amigos em uma partida de futebol, evidenciando a intersubjetividade do sujeito marcada pela seleção das imagens. A preocupação com o ordenamento das figuras evoca o tu, para quem a história é proposta. Isso significa que o ato individual de apropriação da língua só é possível tendo um locutor como parâmetro, que se dirige a um ouvinte ao transformar a língua em discurso. O ato enunciativo, então, pressupõe diálogo: desde que o locutor se declara como locutor e assume a língua, assim implanta o outro diante de si(33 Benveniste E. Problemas de linguística geral II. São Paulo: Pontes Editores; 1989. 294 p.). Novamente, a cronologia foi base para a sustentação da narrativa, e a organização das imagens refletiu a leitura de Bir, que ordenou os acontecimentos, indicando que algo, para ser realizado, precisa ser antes pensado - e essa subjetividade ilustra um comportamento inerente à condição humana(22 Benveniste E. Problemas de linguística geral. São Paulo: Ed. Nacional; 1976. 387 p.,88 Naujorks JC. Leitura e enunciação: princípios para uma análise do sentido na linguagem [tese]. Porto Alegre: Programa de Pós-graduação em Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2011 [Internet] [citado em 2022 Dez 7]. Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/37440
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). Bir manifestou, por meio da linguagem, sua própria experiência(88 Naujorks JC. Leitura e enunciação: princípios para uma análise do sentido na linguagem [tese]. Porto Alegre: Programa de Pós-graduação em Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2011 [Internet] [citado em 2022 Dez 7]. Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/37440
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) e, com base no tempo crônico, deu sentido a sua narrativa.

Não diferente, na última coluna, o tempo crônico norteou a construção narrativa: no primeiro quadrinho, as cores claras sugerem o dia, enquanto a noite é identificada pelo predomínio da cor escura. A leitura do mundo, pelo sujeito Bir, foi traduzida pela imagem ordenada sequencialmente em dia e noite, pois os acontecimentos têm, nos pontos de referência, a posição objetiva e que definem também a situação em relação a esses acontecimentos(33 Benveniste E. Problemas de linguística geral II. São Paulo: Pontes Editores; 1989. 294 p.).

O sentido das micro-histórias construídas por Bir está na ideia que elas exprimem e são indissociáveis das escolhas de um sujeito que agencia elementos para promover significações em uma dada circunstância. Essas micro-histórias - como todo ato enunciativo - foram produzidas em um tempo/espaço específicos e, portanto, se referem a uma situação discursiva única, que não pode ser prevista. É aí que reside a singularidade de cada ato linguístico promovido por Bir, pois se entende que sua leitura está marcada no aqui/agora irrepetível da organização das histórias em quadrinhos. É nesse sentido que o enunciado tem existência no momento em que o locutor se apropria da língua e, em se tratando de leitura, esta somente existe quando o locutor produz leitura, mobilizando as noções de pessoa, tempo e espaço(99 Carvalho MWPL, Azevedo NPSG. A escrita na afasia: da perda à reconstituição da linguagem. Rev. GEL. 2017 Set;14(2):27-52. http://dx.doi.org/10.21165/gel.v14i2.1595.
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). Entretanto, as características do processo de leitura de Bir e de promoção de significação na construção das histórias em quadrinhos remetem para um sujeito que mobiliza a língua. Embora não reconheça muitos dos elementos linguísticos verbais, promove significação com sequências narrativas cronologicamente organizadas, considerando as imagens como subsídio fundamental e assumindo a posição de sujeito que diz eu - sujeito de sua linguagem, mesmo que desviante.

Na história proposta por Cr, o tempo crônico, novamente, serviu de base para a sustentação da narrativa, pois a mobilização dos quadrinhos e sua organização em pares (forma) marcou tanto a passagem do tempo para os personagens, quanto agrupou e delimitou suas ações (sentido). Essa organização em pares não diz respeito somente a uma divisão estética, mas, sobretudo, a uma forma que dá sentido a unidades menores para, então, fazer com que o conjunto dessas unidades menores expressem a ideia geral de seu texto. Cr, ao entrar em contato com um enunciado previamente produzido, assumiu a posição de um eu que se apropria da língua e que, assim, se coloca enquanto sujeito de linguagem, atualizando sentidos a partir de suas experiências. Pode-se considerar que na leitura está posta a questão do locutor que lê e, ao ler, torna-se sujeito, de maneira que a intersubjetividade é pressuposta no campo da leitura(99 Carvalho MWPL, Azevedo NPSG. A escrita na afasia: da perda à reconstituição da linguagem. Rev. GEL. 2017 Set;14(2):27-52. http://dx.doi.org/10.21165/gel.v14i2.1595.
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). É assim que a leitura é como ato interpretativo: a reconstituição de um sentido, sendo que o sentido derivado desse ato de reconstituição não coincide integralmente com as representações daquele que produziu o texto(99 Carvalho MWPL, Azevedo NPSG. A escrita na afasia: da perda à reconstituição da linguagem. Rev. GEL. 2017 Set;14(2):27-52. http://dx.doi.org/10.21165/gel.v14i2.1595.
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).

Algumas noções se repetiram: a lógica da conversa entre os bebês, que primeiro precisam se encontrar; o ato de jogar futebol, que precisa ser antes pensado; o personagem que primeiro aparece sozinho, de dia, para depois surgir acompanhado, à noite. Bir e Cr trabalharam com os mesmos elementos e se apropriaram do tempo crônico, mas se fizeram sujeitos ao ressignificarem a mesma história, cada um à sua maneira, colocando-se de maneira singular e, portanto, agenciando sentidos que imprimem a subjetividade de um eu instaurado na língua.

Percebeu-se, de imediato, que os quadrinhos que abrem e encerram a HQ proposta inicialmente foram postos, por Aul, em uma lógica inversa, fazendo parecer que a história dele começa no fim. No entanto, não há um diagnóstico que indique que Aul tenha invertido a orientação de sua leitura, nem de sua escrita. Sendo assim, considerou-se que ele tenha estruturado sua história no sistema convencional - da esquerda para a direita. A narrativa de Aul começou pela representação do pensamento, que encerra o sentido em si mesmo, com elementos suficientes e que dão subsídios para a interpretação(44 Benveniste E. Últimas aulas no Collège de France 1968 e 1969. São Paulo: Editora Unesp; 2014. 280 p.). Em seguida, foi arranjado o par de quadrinhos que representa os personagens em sua fase adulta: as dicotomias “dia/noite” e “sozinho/acompanhado” dizem respeito à ordem de ocorrência dos fatos e pareceram, também, dar sustentação à história de Aul pela perspectiva cronológica. O espaço maior entre o primeiro quadrinho e o par subsequente pareceu indicar, então, que se tratava de duas propostas independentes; é considerando os elementos disponíveis, arranjados em um determinado tempo/espaço, que a análise dessa significação é possível(66 Flores VN. Problemas gerais de linguística. Rio de Janeiro: Vozes; 2019. 400 p.,1010 Coudry MIH, Bordin SS. Ambientes discursivos na afasia e na infância. Estud Língua(gem). 2019 Mar;17(1):9-22. http://dx.doi.org/10.22481/el.v17i1.5295.
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) pois, como um ato único e uma situação irrepetível, o enunciado retém apenas parte do ato enunciativo(99 Carvalho MWPL, Azevedo NPSG. A escrita na afasia: da perda à reconstituição da linguagem. Rev. GEL. 2017 Set;14(2):27-52. http://dx.doi.org/10.21165/gel.v14i2.1595.
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). Ao organizar a HQ intersubjetivamente, Aul reafirmou a ideia de que é no uso da língua que um signo tem existência(22 Benveniste E. Problemas de linguística geral. São Paulo: Ed. Nacional; 1976. 387 p.,33 Benveniste E. Problemas de linguística geral II. São Paulo: Pontes Editores; 1989. 294 p.).

Na primeira imagem da segunda linha da narrativa, aparecem as mães com seus bebês. Em seguida, o quadrinho em que as duas crianças conversam. Notou-se, outra vez, o espaçamento entre um e outro, subentendendo-se que, no primeiro, Aul teve como referência a imagem representacional de duas mulheres adultas, assim como, no segundo, os bebês foram o foco de sua observação(66 Flores VN. Problemas gerais de linguística. Rio de Janeiro: Vozes; 2019. 400 p.,1010 Coudry MIH, Bordin SS. Ambientes discursivos na afasia e na infância. Estud Língua(gem). 2019 Mar;17(1):9-22. http://dx.doi.org/10.22481/el.v17i1.5295.
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). Aparentemente, o contraste entre os personagens fez com que Aul não os relacionasse em um mesmo contexto, dissociando os quadrinhos e formando mais duas histórias independentes. A significação atribuída por Aul a duas imagens únicas e independentes partiram da leitura de um sujeito que a elas empregou sentido ao se colocar em relação ao texto(1010 Coudry MIH, Bordin SS. Ambientes discursivos na afasia e na infância. Estud Língua(gem). 2019 Mar;17(1):9-22. http://dx.doi.org/10.22481/el.v17i1.5295.
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). Essas imagens, para Aul, tinham sentido completo e podiam, portanto, ser consideradas frases, que são a expressão semântica por excelência(33 Benveniste E. Problemas de linguística geral II. São Paulo: Pontes Editores; 1989. 294 p.). Ao semantizar, Aul submeteu os quadrinhos à sua interpretação e, assim, se colocou no domínio da linguagem em ação ao considerar um tu. Afinal, nos comunicamos por frases, ainda que truncadas, embrionárias, incompletas - mas sempre por frases(33 Benveniste E. Problemas de linguística geral II. São Paulo: Pontes Editores; 1989. 294 p.).

No último trio, em contrapartida, Aul aproximou as imagens para contar a história de duas crianças que jogam futebol. Todavia, de encontro às interpretações de Cr e Bir, Aul entendeu que Cascão vai embora depois da partida, levando a bola que seria sua. O quadrinho que ilustra essa ação encerrou a narrativa de Aul. Esse é um gesto claro da singularidade da leitura(99 Carvalho MWPL, Azevedo NPSG. A escrita na afasia: da perda à reconstituição da linguagem. Rev. GEL. 2017 Set;14(2):27-52. http://dx.doi.org/10.21165/gel.v14i2.1595.
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) de um sujeito que interpreta a partir das próprias referências e as sustenta, também, no tempo crônico, mas de modo contrário aos outros sujeitos, pois Bir e Cr entenderam que Cascão vai ao encontro de Cebolinha assim que a ideia do jogo surge - e, então, colocaram o quadrinho como ação primeira. Essas observações só são permitidas em função da indissociabilidade da forma e do sentido. O texto tem sentido dado pela ideia global; já a forma do texto é uma questão analítica, ocorre a partir da observação das unidades semióticas(99 Carvalho MWPL, Azevedo NPSG. A escrita na afasia: da perda à reconstituição da linguagem. Rev. GEL. 2017 Set;14(2):27-52. http://dx.doi.org/10.21165/gel.v14i2.1595.
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). O título “amizade”, da HQ original, serviu aqui, também, como uma espécie de palavra-chave que resume a relação entre os dois personagens.

Evidenciaram-se três leituras singulares de sujeitos que encontraram, em formas distintas, a sustentação de sentidos provenientes de experiências e de relações entre o homem e o mundo(44 Benveniste E. Últimas aulas no Collège de France 1968 e 1969. São Paulo: Editora Unesp; 2014. 280 p.,88 Naujorks JC. Leitura e enunciação: princípios para uma análise do sentido na linguagem [tese]. Porto Alegre: Programa de Pós-graduação em Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2011 [Internet] [citado em 2022 Dez 7]. Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/37440
https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/3...
,1010 Coudry MIH, Bordin SS. Ambientes discursivos na afasia e na infância. Estud Língua(gem). 2019 Mar;17(1):9-22. http://dx.doi.org/10.22481/el.v17i1.5295.
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). As características do processo de leitura desses sujeitos e de promoção de significação na construção das histórias em quadrinhos remeteram para sujeitos que mobilizam a língua (mesmo que alguns não reconheçam muitos dos elementos linguísticos verbais) e promovem significação com sequências narrativas (forma em imagens) cronologicamente organizadas. Considerando as imagens como subsídio fundamental, esses locutores assumiram a posição de sujeito que diz eu - sujeitos de sua linguagem, mesmo que essa seja desviante(88 Naujorks JC. Leitura e enunciação: princípios para uma análise do sentido na linguagem [tese]. Porto Alegre: Programa de Pós-graduação em Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2011 [Internet] [citado em 2022 Dez 7]. Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/37440
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).

CONCLUSÃO

No caso de Bir, Cr e Aul, as narrativas foram construídas tendo por base as imagens - uma vez comprometida a habilidade de leitura de textos verbais. Eles, então, usaram o tempo crônico como eixo de organização formal de suas narrativas. Esse é o tempo dos acontecimentos e da sua sequência. É no tempo crônico que se organizam os acontecimentos, a partir da definição de um ponto referencial que permite fazer alusão ao antes e ao depois. A percepção do tempo crônico pelos participantes foi compartilhada por eles: as fases da vida (bebê - criança - jovem/adulto) estão fortemente marcadas nas histórias de Bir e Cr, embora apareçam de modo sucinto na narrativa de Aul. Assim, o sentido manifesta-se de maneira livre e imprevisível, ao passo que os aspectos formais parecem mais concretos e descritíveis.

Nas três propostas, também, entendeu-se que o dia vem antes da noite, assim como o pensamento precede a ação. Isso diz não só sobre a organização dos fatos no tempo, mas como os sujeitos interpretam o mundo. Houve um ordenamento estabelecido que regeu essas ações. A organização (forma) dos quadrinhos em narrativas (sentido) evidenciou que os sujeitos com afasia mobilizam a língua e promovem significações (leitura/escrita), mas isso se torna compreensível quando se considera a perspectiva enunciativa para análise da linguagem em afasia.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001 que apoiou a execução desta pesquisa.

  • Trabalho realizado no Programa de Pós-graduação em Distúrbios da Comunicação Humana, Universidade Federal de Santa Maria - UFSM - Santa Maria (RS), Brasil.
  • Financiamento: Nada a declarar.

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  • 10
    Coudry MIH, Bordin SS. Ambientes discursivos na afasia e na infância. Estud Língua(gem). 2019 Mar;17(1):9-22. http://dx.doi.org/10.22481/el.v17i1.5295
    » http://dx.doi.org/10.22481/el.v17i1.5295

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    07 Nov 2022
  • Aceito
    07 Dez 2022
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